Transcrição: Mamilos 93 - Consciência Negra • Parte 2 • B9
Mamilos (Transcrição)

Transcrição: Mamilos 93 - Consciência Negra • Parte 2

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Jornalismo de peito aberto

Esse programa foi transcrito pela Mamilândia, grupo de transcrição no Mamilos

[Vinheta de abertura]

Este podcast é apresentado por B9.com.br.

[Sobe trilha]

Um desamor que mede medo escreve seu enredo um tanto irreal
moço cavalo branco
sombra de um ideal

[Desce trilha]

Ju: Mamileiros e Mamiletes, levanta a mão quem tá exaaaausto de 2016, quem tá com a cabeça cheia e não consegue nem mais acompanhar as montanhas russas que esse ano nos reservou. Vem com a gente, eu sou a Ju Wallauer e tenho o privilégio de ter comigo a…

Cris: Cris Bartis.

Ju: Relaxa o ombrinho que o papo tá gostoso.

Cris: Claro que nesse segundo programa sobre consciência negra, temos mais é que ouvir a diva que está aqui conosco, Xênia França. Toca aí no Som do Mamilos, Caio!

Caio: Olá, personas, Corraini aqui novamente para trazer para vocês os responsáveis por dar mais cor ao Mamilos dessa semana. Lembrando sempre que se você quiser colaborar com o conteúdo musical desse programa, pode nos recomendar bandas ou artistas independentes no e-mail: [email protected]. [email protected].”brrrrrr”. E facilita, e muito, a minha vida se vocês enviarem os links do site oficial do artista ou então onde nós podemos buscar os downloads direto das músicas dele, para utilizar no episódio. Nessa edição melhorando sua edição, não só com a sua participação na discussão, nós iremos receber a porcentagem artística da Xênia. Então fique aí com a Xênia França no Som do Mamilos.

[Sobe trilha]

Que tem todo o poder de verdade
E paga pra ver
de verdade
de verdade
Ser um mais um
de verdade
e paga pra ver
de verdade
ser um mais um

[Desce trilha]

Ju: E o Beijo Para:

Cris: Felipe, Ena e Josiane

Ju: Rebeca de Porto Alegre

Cris: Alan de Almeida, Léo Lopes, Jéferson, Nando, Bruno, galera do Scicast (Que é a Jujuba, o Guaxinim,…), Fernanda, Thiago, meninas do Ponto G e Rogério.

Ju: Todo mundo que encontrou com a gente na Comic Con que nos deu beijo, nos deu abraço, que nos encheu de amor… [strong>Cris: que tirou foto.] Que tirou muita, muita foto.

Cris: [ao fundo] a gente tá muito celeb, né? Fico até com vergonha.

Ju: Foi muito legal gente, foi muito amor, recarregou nossas baterias para o ano todo. Para 2017 vamos entrar bem. E um beijo pro Felipe que mora em Monte Mor, interior de São Paulo.

Cris: …que estava lá também, mandou até a fotinho por e-mail.

Ju: Olha aí, ó.

Cris: Fale com Mamilos a nossa ouvidoria cheirosa está à disposição. Você pode falar com a gente pelo no Facebook, pelo Twitter, na página do B9 e no nosso e-mail: [email protected]. A nossa equipe maravilinda que nos ajuda a fazer esse programa:
Edição e Som do Mamilos – Caio Corraini.
Redes sociais – Luanda Gurgel, Guilherme Yano e Luiza
Apoio a pauta – Taty Araujo e Jaqueline Costa
Transcrição dos programas – Lu Machado [e equipe]

Ju: E estamos recrutando. Vamos formar uma equipe de apoio à pauta, para que o Mamilos seja sempre cada vez mais completo, cada vez mais diverso. Se você tem alguma opinião que você não está vendo no Mamilos, se você tem algum ponto de vista muito diferente, se você é curioso, gosta de pesquisar, gosta muito de ler, então… Venha falar com a gente! Manda um e-mail pro: [email protected], com o título: Equipe de Pauta.

Cris: E não se esqueça, colabore com esse projeto no Patreon. Sabe por quê? Porque é assim que a gente consegue manter isso aqui funcionando. Mas eu acho que tem uma chamada especial para essa semana, né, Ju?

Ju: Vai ter festa da família B9 de podcasts exclusiva para os patronos.

Cris: [comemorando] Êêêê…

Ju: Vai ter Peu Araújo discotecando, vai ter show do Coronel Pacheco e vai ter muito karaokê depois.

Cris: [rindo] Ai meu deus!

Ju:Dia 15. Vem gente! Enviamos o convite por e-mail para todos os patronos, se você não recebeu, mande e-mail para o [email protected].

Cris: Bora para a festa!

[sobe trilha]

[desce trilha]

Cris: Vamos então para o Fala que Eu Discuto. O Felipe Bezerra escreveu:
“Voltando a ouvir o Mamilos depois de um tempo afastado, (nada contra meninas, mas é tanta coisa que a gente se dá conta que é, que acabo me sentindo sujo a cada tema abordado, então às vezes preciso dar um tempo), mas este tema me interessa demais. Este cast explodiu minha cabeça. Porra 35 anos nas costas, e jamais tinha ouvido (ou se ouvi, fingi que não ouvi) Machado de Assis negro, planejamento de embranquecer o país… UAU!!! Não vou comentar nada do Oga, pois esse já é figura carimbada aqui e é sempre ótimo. Agora essa mina… Sem palavras… Que poder, que intelecto, que argumentos… Tenho pena de quem bater de frente… rs. Parabéns a todos e obrigado, muito obrigado pelo conteúdo que trazem nesses casts. Mamilos deveria cair no ENEM, para fazer principalmente com que os jovens conheçam… Ansioso pela parte 2”

Ju: A verdade é que cai, né?

[risos]

Cris: Cai picado, né?

Ju: Todo ano cai uma pauta do Mamilos.
Highlander escreveu:
“Nunca tinha me dado conta o quanto o racismo no Brasil é estrutural. E ainda agora tenho apenas uma pálida ideia do que seja isso. Eu preciso fazer um esforço consciente pra notar o quanto os ambientes no Brasil são segregados sem que seja preciso nenhuma lei para isso. O quanto os shoppings centers, os congressos, os hotéis estrelados e os eventos de negócios são brancos e o quanto as prisões, os bairros periféricos e os ônibus lotados na hora do rush são negros. Só agora me toquei que foram 419 anos de escravidão no Brasil e apenas 128 anos de liberdade. Estamos ainda muito, mas muito longe, de superarmos a herança que a escravidão deixou na sociedade brasileira. Não são apenas cicatrizes, ainda é uma ferida aberta. E eu não tenho a mínima ideia do quanto essa ferida ainda dói e de quando será realmente curada.”

Cris: Tem um comentário que a pessoa pediu para não ser identificada, mas é bem legal o que ele colocou. Vamos lá: “O exercício de empatia mamileiro me deixou pronto para um momento de consolo que precisei aqui em casa. Minha esposa prestou concurso público e, há 2 semanas, recebeu a notícia de que teve nota aprovada, mas vaga negada pois a vaga foi preenchida por cota para negros. A pessoa que entrou tinha 15 pontos a menos. Este foi um momento muito bacana na relação pois o esforço e dedicação da minha esposa, com o vislumbre de oportunidade de pagar as contas que estão no vermelho há 9 meses por causa da crise, (desemprego) foi colocada na balança com a busca de empatia e o momento que a cota tirou isso tudo, que é legítimo. Foi triste ver o que nós perdemos (eu cuidei bastante das meninas para ela poder estudar, o que diminuiu a renda dos freelas), mas foi bom conseguir desconstruir e quero com isso contribuir com algo que vai de encontro ao que creio, e acho oportuno no momento, para ver mudança será necessário sacrifício, e o único sacrifício válido é quando sacrificamos a nós mesmos e nossos direitos em favor dos que merecem. Mesclar o momento de consolo da “perda” com uma desconstrução de meritocracia quando a própria carne estava sendo crucificada foi um exercício que dificilmente seria possível sem o mamilos.”

Ju: A Maria Teresa disse:
“Olá, meu nome Maria Teresa Arruda, tenho 26 anos e sou funcionária pública de Goiana-Pernambuco. Meninas, esse é meu primeiro e-mail pra vocês. Mas deixa logo eu dizer o quanto esse podcast mudou minha forma de pensar. E aumentou minha empatia com as pessoas. Sobre esse último programa, confesso que escrevi um textão no Facebook mas na hora de enviar me bateu uma dúvida. Por que o que eu tinha pra falar poderia machucar algumas pessoas. E a gente nunca quer isso, não é verdade?
Passei a me perceber como mulher negra há muito pouco tempo, uns dois ou três anos apenas. Óbvio que eu sempre enxerguei a cor da minha pele. Mas não compreendia a importância de afirmar essa identidade. Quando falei que podia magoar alguém é justamente por isso. Eu não fui criada com consciência negra. Minha mãe não é negra, também não é branca mas esse é o Brasil. O meu pai que era negro, morreu muito jovem e de forma violenta (olha aí, já entrei nas estatísticas). E eu não convivi muito com o lado paterno da família. Então eu não tinha, ao crescer, essa sensação de pertencimento que é tão importante pra formação da identidade. Eu apenas percebia que na minha família próxima eu não parecia com ninguém. E isso ia se repentinos nos outros grupos sociais, como ser a única negra na sala de aula de escola particular e depois uma minoria na universidade federal. Essa falta de representatividade e pertencimento afetou muito minha autoestima, coisa que só pude perceber quando decidi passar a usar o meu cabelo natural, crespo como eu não via desde os meus 13 anos. Passados dois anos dessa decisão pude perceber como assumir minha identidade negra mudou tanta coisa sobre o que eu sabia ao meu respeito. Ainda tenho muito a descobrir sobre minhas raízes, o cabelo é só o começo. Mas devo dizer que foi um passo primordial na descoberta da minha identidade negra. Desculpa pelo textão, mas perdoa aí porque é o primeiro. Um beijo no coração dessa equipe maravilhosa!”

Cris: Douglas Santos:
“Enfim o Nirvana chegou com o último Mamilos e eu me vi mais uma vez quebrando o meu próprio preconceito. Mesmo sendo negro, de origem pobre, vítima de preconceitos diários, eu não entendia nada sobre o Dia da Consciência Negra e como muitos brasileiros, era contra a data e a considerava segregacionista. Que bom que a cabeça da gente muda e que bom que existe o Mamilos. Recentemente eu já havia mudado de opinião sobre cotas raciais (culpa de um vídeo do Karnal) e agora estou ávido pela continuação do programa de vocês. Bem, meus parabéns a vocês duas e a todos os envolvidos nesse projeto ímpar. O mundo precisa de mais gente como vocês!”

Eu queria aproveitar para fazer um gancho sobre as ações afirmativas, que muitas vezes as pessoas acham que é um favor. E eu espero que esta contextualização, no quanto os negros foram prejudicados no Brasil, mostrem, na verdade, que as ações afirmativas é [são] uma tentativa mínima de reparar esse dano e faz parte do tratado assinado na ONU. Não é um favor. É uma tentativa de pagamento da dívida, de reinserção do negro na sociedade. É a mesma coisa que uma pessoa que te deve um dinheiro há muito tempo e quando ela finalmente resolve te pagar, cê se sente ofendido. Então a ação afirmativa é para trazer essas pessoas de volta e não é favor nenhum, não.

[sobe trilha]
[link: https://vimeo.com/174581861]

Quem clareia o breu
De sua nudez meia verdade?
Quem desmancha o véu e alveja a tez sem identidade?
Some o negro, ouro, betume, costume imposto, açoite
Suja outro nome, outro tato, mulata, aquela de cor
Vende-se o coito, a carne barata do dia pra noite
Outra mulher, outro fim
Mesma dor

[desce trilha]

(Bloco 2) 11’ – 22’35”

Cris: Bom, conversamos na semana passada sobre toda história e problematização; nessa semana a gente vem falar sobre o empoderamento do negro. E aí, acho que seria bem legal começar, Oga, falando sobre o que que é tornar-se negro. O que que é isso. O que que é essa descoberta.

Oga: Engraçado, eu já escutei várias histórias, principalmente no meu caso, ainda, que eu ainda tenho algo pra deixar mais complexo isso, né? Porque, como a gente disse na semana passada, ser negro não é algo avaliado positivamente pra nossa sociedade. Então ainda mais com o aumento da democracia racial e com a miscigenação, né? Negros com a pele mais clara como a minha sempre têm a oportunidade de fugir disso, né? Então, assim, durante uma boa parte da minha vida, eu fui estimulado pela sociedade a fugir disso. Eu contei uma alegoria num capítulo aqui…

Cris: Conta, porque eu acho bem legal, pra quem não ouviu o programa em que você falou isso.

Oga: Tá. Quando eu era moleque, na primeira série, tinha um amigo meu, putz, um brother meu, maior, repetente e tal, que ele me protegeu de um outro menino da sala que me chamou de preto. E o jeito dele me proteger foi assim “Não, mas ele não é preto” E foi lá e bateu no cara. E aí você fica em choque, porque você fala assim “Cara, tipo, dá vontade de bater nos dois”. E era um lance, que assim, eu não era uma criança mega empoderada, minha família é muito miscigenada. Então, essa questão era discutida na minha casa de uma forma relativamente rasa. Tipo, ninguém ignorava que o racismo existia, mas ao mesmo tempo assim, “Meu, mas todo mundo é igual” e essa coisa muito genérica, né? E assim, pra mim foi muito estranho, porque você começa a se descobrir negro, a maioria das pessoas, o segundo momento que eu confrontei com essa história, já era um pouquinho mais velho, quando eu tive minha primeira namorada branca e eu jogava no time de futebol do pai dela. Quer dizer, não era um time tão organizado assim, mas o cara gostava de mim. A partir do momento que eu começo a namorar com a filha dele, ele já me rejeita. Até eu aí achei “Ah, normal. Tá com ciúmes da filha, ok”. Só que aí chega o irmãozinho dela, que era uma criança, ele chega e fala, brincando, eu perturbando ele, ele chega e fala “Ah, meu avô não quer neto preto”. Aquelas coisas de criança, joga uma frase e sai. E aquilo bateu como uma bomba. E aí foi o momento, lá perto dos 16 anos que eu comecei a procurar me entender. Minha raiz de verdade, né? E aí, a minha porta de entrada foi o hip hop. Então, em algum momento eu tive um discurso muito nervoso, muito combativo mesmo. E que eu acho que é um processo que muitos negros passam. E por isso que às vezes é difícil explicar pra uma pessoa não negra, falar assim: “Calma, cara, tenha empatia”. Você está achando que a pessoa está sendo raivosa? Fala assim: “Cara, imagina o que essa pessoa sofre, então é um processo”. A gente espera que realmente chegue um dia que todo mundo tenha consciência, você nunca precise ouvir alguém gritando. Porque se tem alguém gritando é porque você não quer ouvir. Essa pessoa está tentando fazer. Então, passei por esse processo com o hip hop. Hoje em dia que eu estou um pouco mais velho, aí entendo que, sim, tem momentos que você tem que ser duro, mas tem momentos em que a gente… Fala tanto essa expressão, de agora, do hackeamento. Então é um meio de você falar “Cara, como eu emociono”? Então assim, e eu começo a ver umas coisas que pra mim são muito fortes, assim, e que hoje em dia eu fico brincando, né? “Agora é o lado positivo do programa”. Que eu digo assim “2016 é mais fácil você se tornar negro, porque você tem referência”. Então, assim, eu duvido que uma menina negra, 5 anos, vê a Xênia, no palco com Aláfia, no meio de tipo, meu, de um monte de homem bonito, meu, vira um sol ali. Vira uma coisa, uma força. Ela já tem uma referência. Ela fala assim “Cara, posso ser a Xênia, não preciso ser a Paquita”. Que era o que a menina negra tinha na minha infância. Então, assim, é muito forte o momento que a gente está vivendo e… Eu vou adiantar várias coisas, depois a gente vai aprofundando, tá, gente? Ouvintes, fiquem aí. [Risos de todas]
E eu acho que, de certa forma, as redes sociais, trouxe [trouxeram] um monte de ignorância, um monte de gente querendo fazer um debate vazio, um monte de gente tentando achar argumentos econômicos falhos, ou históricos, sem fonte, pra falar que tudo que a gente está falando é apenas um grande mimimi. Mas ao mesmo tempo, tem uma galera que não teve voz e que está usando essas redes sociais e conseguindo se comunicar e achando gente parecida, e aí criando esses termos. Eu não gosto muito de usar empoderamento, enfim, tem várias questões. Mas enfim, mas eu acho que, principalmente pra quem é da militância, isso faz um sentido. Mas eu digo, trocando referências, trocando informações sobre como é ser negro mesmo, né? Como é ser negro em 2016. E eu acho que ser negro em 2016, por um aspecto é mais fácil, porque você encontra outras, porque você forma seu grupo, porque você consegue trocar experiências, referências positivas. E ao mesmo tempo, eu acho que é mais difícil, por todos aqueles números que a gente tem. Então assim, ao mesmo tempo é mais difícil porque agora a gente tem completa noção do esquema inteiro que foi armado pra gente. Pra pegar a gente, pra segurar. Então acho que de certa forma, essa segunda parte do programa até, acho que é um pouco pra gente falar “Meu, e aí, onde estão essas soluções? Qual é o jeito da gente escapar? E qual é o jeito das pessoas que não tinham essa questão pra si, como você pode ajudar a gente criar algo”?

Ju: Eu queria perguntar antes pra você, Oga, já que a gente está falando de tornar-se negro… A primeira pergunta que a gente até não… partiu dela: Se existe raça? Então, assim, como é que você sabe, né? Porque nos Estados Unidos eles usam esse negócio da uma gota (one drop)… se você tem uma gota você já é considerado negro. Então, assim, se cientificamente você não consegue separar os humanos em raças, isso não tem amparo científico, como é que você se declara negro? Como que é isso?

Oga: Eu acho que justamente passa por todo esse processo. Porque no Brasil a gente acredita muito no processo da auto declaração. Porque realmente, é muito louco, né? A Xênia, acho que a vai concordar comigo nisso. Dependendo do lugar, principalmente por causa da miscigenação e desse mito que a gente criou. Dependendo do lugar que eu estou, porque eu sou negro com a pele mais clara, e no Brasil a gente se baseia no fenótipo. Então se você tem o nariz mais largo, seu cabelo é mais crespo, se você está longe desse padrão europeu… Dependendo do lugar que eu vou, na Bahia, eu entendo que em alguns lugares que eu estou lá eu não sou tão negro. Porque lá teve menos miscigenação. E em alguns bairros de São Paulo, eu sou muito negro. E aí, dentro do meu tornar-se negro, que a gente navega pela estética, eu com dread, eu sou negro. Meu dread fala muito, fala minha ancestralidade. Óbvio que também, por causa desse racismo estrutural, traz um monte de coisa negativa. Já associam… negativo também é muito relativo, né? Mas enfim, já associam à maconha, que pra muita gente isso é muito negativo.

Xênia: É negativo socialmente. Como a sociedade vê a pessoa que usa dread

Oga: Justamente. Então assim, eu acho que a gente tem que pensar muito na questão, que é um tema também muito discutido, que a gente quer: como a sociedade te lê. Porque também tem muito isso. Às vezes a pessoa, e eu acho que muita gente, as pessoas se descobrem negras vendo essa leitura da sociedade, que foi o meu caso. Eu tive uma leitura negativa. Então, assim, me leram como negro, né? Então menino chega e me xinga de “PRETO”! Tentando me ofender. E o outro tenta me proteger dessa acusação. O pai da minha ex-namorada não querendo essa miscigenação na família dele. Porque também é outra questão da miscigenação e que eu acho que também passa por tornar-se negro. Quer dizer, a gente valoriza a miscigenação só que é só quando você está clareando essa família. Quando você vai miscigenar só porque está escurecendo… isso também é visto como uma forma pior.

Xênia: É porque, ser negro no Brasil não é só considerada uma coisa ruim, mas ela é manifestada, de diversas maneiras, como uma coisa ruim, né? A representação do negro no Brasil, nas mais variadas formas midiáticas, enfim, ela é demonstrada dessa maneira, né? Então, à medida… eu posso falar por mim. Eu sou uma pessoa preta, né? E as pessoas ousam me chamar de morena.

Oga: É, isso é um absurdo mesmo.

Xênia: Morena também é uma tentativa de embranquecimento, sabe? [Oga: Justamente.] É a pessoa não me aceitando como ela está vendo. Ela quer encontrar uma maneira de ela lidar comigo. Eu já tive essa discussão várias vezes com algumas pessoas: “Onde você está vendo uma pessoa morena aqui”? Morena, se a gente for decupar o conceito de morena, é uma pessoa branca do cabelo preto e liso.

Oga: É o que eu brinco, eu sempre brinco, morena é a Branca de Neve.

Xênia: Branca de Neve. A Branca de Neve é morena. Agora você está vendo uma pessoa preta, do cabelo crespo, na sua frente, você vai me chamar de morena. Por quê? Eu rebato, porque eu ando bastante sem paciência, assim, nesse sentido. Não tenho mais. Ou às vezes fujo de determinadas situações que eu não posso lidar. Mas eu acredito que essa construção de imagem, de identidade, ela se dá também pelo autoconhecimento e os referenciais.

Cris: Pra resumir e enriquecer essa visão, vamos chamar uma fala do historiador, artista e pesquisador Salloma Salomão [link: https://www.facebook.com/salomaosalloma/], que fala sobre isso de uma maneira muito clara e eficiente.

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Salloma:: Ser negro ou negra nessa sociedade não é algo tão simples. Só os negros que têm um ambiente familiar de valorização do que é ser negro, têm experiências escolares positivas em relação àquilo que ele porta de imediato, que é, em primeiro lugar, o seu corpo, só esses conseguem construir uma percepção positiva do que é ter o cabelo crespo, a pele escura, os lábios grossos, o nariz alargado. Os demais, às vezes são educados de uma forma tão traumática, que eles preferem fugir de qualquer ideia de identidade negra e se refugiar em uma não identidade. O que é ser brasileiro? Ser brasileiro é aquela ideia construída pelos modernistas? Nos anos 1920, 1930? E depois é a política de identidade que eles desenvolveram durante o Estado Novo? Qual política de identidade? Uma política de identidade fundamentada em Gilberto Freire? A nação é a única possibilidade de identificação do indivíduo e das coletividades? Não há problema nenhum em haver um hospital israelita, não há problema nenhum em haver um hospital nipônico, ou um sírio-libanês. Um clube de armênios. Mas ai de você se aventar a hipótese de haver uma escola africana, ou negra. Há escolas suíças, suecas, estadunidenses, alemãs em São Paulo inteiro. São Paulo é eivado dessas instituições étnicas. Mas a sociedade se mobiliza contra as comunidades de terreiro, porque elas estão fazendo o mal, né? Tem o bem e o mal, o escuro e o claro. Tudo que é escuro está sempre ligado ao mal. E tudo que é claro está sempre ligado ao bem, né? Se os negros estão se reunindo em algum lugar, certamente coisa boa eles não estarão fazendo. Mesmo que esse lugar seja um lugar religioso. Ah, mas aquilo não é religião, religião são as formas filosóficas de origem cristãs brancas. O que os negros estão fazendo é macumba, é uma outra coisa. A abordagem é outra. A maneira de ver e de noticiar é outra. A maneira de ensinar sobre essas formas, negras, e que são negras porque são de origem africana, não são de outra região do mundo. Porque haviam padrões civilizatórios diferentes na África. Eram diferentes dos padrões civilizatórios europeus. Eram o resultado de um longo processo de convívio, de desenvolvimento tecnológico, social, cultural.

(Bloco 3) 22’35 – 30’59”

Salloma Salomão: Os povos africanos também eram diversos, tal como eram os europeus, mas não havia na áfrica no século XVI quando começa a expansão uma noção de africanidade, mas na Europa existia a noção de europeidade que vinha sobretudo do cristianismo, formas históricas elaboradas, na expansão do ocidente e da colonização, como isso ocorreu?
Ocorreu porque populações de origem branca e cristãs se espalharam pelo mundo, nos lugares onde elas se espalharam, eles se impuseram com classes ou etnias dominantes. Elas produziram formas discriminatórias muito específicas, atribuído em primeiro lugar, pelo tom de pele; os brancos europeus inventaram os negros remotamente, por contraste, porque os humanos são mesmo diferentes. São diferentes em tom de pele, em altura, em textura do cabelo, além de serem diferentes também do ponto de vista da construção da vida social que gera aquilo que nós denominamos cultura, sobre os africanos os europeus tiveram que elaborar explicações razoáveis que justificasse a sua venda, a sua compra, a… sua escravização e a sua morte, porque os portadores de pessoas, eles podiam matá-las quando elas não fossem adequadas, importantes ou eles podiam prescindir da vida daquela pessoa. E dentro da própria mentalidade europeia não se poderia fazer isso de uma forma simples, o que surgiu então pra justificar essa profunda desigualdade entre os europeus brancos e as populações de cor foi elaborar uma sofisticada rede de explicações pra dizer que essas pessoas mereciam ser discriminadas, mereciam ser escravizadas, nisso nasce o que a gente pode chamar de ideologia, ideologia da raça, que ainda não é o racismo tal como conhecemos hoje, mas é uma explicação ou são explicações sobre por que os negros são assim e por que os brancos são assados.
O primeiro fundamento pra isso foi a religião, buscou-se no velho testamento uma origem para os africanos. Nessa explicação no velho testamento, os africanos seriam descendentes de Cam. Quem é Cam? Cam é um dos filhos de Noé, no velho testamento esse filho de Noé teria sido amaldiçoado por Javé, já que a compreensão do mundo vinha da religião, buscou-se na religião. Mas no final do século XVIII os europeus modularam esse pensamento, emergiu uma nova maneira de pensar, onde a explicação religiosa já não se sustentava mais, então onde se busca explicação? Já que os europeus estão vivendo, as sociedades europeias naquele momento no século XVIII, algo que podemos chamar de iluminismo. São novas ideias, sobre a história, sobre as ciências, sobre a natureza, sobre o comportamento humano… a junção dessas visões iluministas pseudo-científicas, são falsamente científicas, porque não se trata de serem científicas no sentido da verdade, são arroladas, utilizadas. Essa ciência, que está nascendo na Europa, são utilizadas para explicar porque a condição de europeus e de negros são diferentes no mundo; é nesse momento que vai a noção de raça que é um pouco anterior à do século XVI, então nós estamos no século XVIII na Europa ocidental, na França, na Alemanha, na Inglaterra, que são donos do mundo, eles tem várias terras e várias populações de cor, não cristãos que estão sob seu domínio, qual será a explicação que se buscará neste momento? Sim, não é que os negros são inferiores e que não são filhos de Deus, é porque eles pertencem a um ramo da raça humana que perdeu a corrida para o desenvolvimento mental, cognitivo e civilizatório, as populações negras são populações selvagens que estão no estágio de desenvolvimento mental, comportamental inferior aos brancos, por que os brancos são superiores? São superiores porque hoje eles têm o domínio do mundo, ainda não é uma explicação darwinista, com base na ideia de evolução, tá ligado a uma ideia do comércio, da cultura, da tecnologia, que está muito presente no pensamento iluminista. Nesse momento o racismo, as práticas discriminatórias e as justificativas para a opressão das populações não europeias vai ganhar um cunho científico; um médico chamado Eugene Fischer, vai fazer experiências terríveis, vai pegar africanos e outras pessoas consideradas degeneradas, as colocará para conviver e procriar, vai pegar algumas dessas pessoas, vai cortá-las em vida, vai tirar parte do seu cérebro pra mostrar que o cérebro de pessoas degeneradas e de raças inferiores era menor que pessoas da raça superior. Foucault acha mesmo que o conceito de raça foi largamente empregado também na Europa, há um autor chamado Edwin Black que mostra como racismo científico foi largamente utilizado nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra e até na Dinamarca. Na Argentina que havia uma população de uns 20% de negros no início do século XIX, por volta de 1930, os negros haviam desaparecidos por completo. A noção que a gente tem de identidade cultural brasileira, ela é modernista, ela foi criada nos anos 1920, desenvolvida nos anos 1930 e imposta a sociedade brasileira ao longo dos últimos 50 anos, 50, 60 anos. Essa ideia do brasileiro mestiço, do mulato como valor estético, como valor genético foi uma criação e o mulatismo que é essa visão, ele não é entendido como um fim em si mesmo, não é um ser híbrido cultural e geneticamente de branco, negro e índio, mas é um estágio necessário pra se chegar à brancura, a mestiçagem foi política de estado.

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Cris: O que eu acho muito interessante nessa conversa sobre tornar-se negro é muito da Neusa Souza que é uma grande escritora, escreveu um livro que é um grande divisor de águas sobre isso, que ela fala que no Brasil todo mundo nasce branco, inclusive preto. Todo mundo nasce branco, então entender-se como negro quer dizer reconhecer o seu cabelo, os seus traços, sua boca, seu nariz, os seus quadris e eu acho muito interessante quando ela vai falando sobre esse reconhecimento, porque quando você entende quem você é, você passa a entender várias coisas que acontecem ao seu redor e aí a gente tem a experiência da Vivi que conta pra gente como foi esse processo pra ela.

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Viviane: Oi eu sou a Viviane Duarte, sou jornalista, fundadora do Plano Feminino que é um canal de conteúdo, consultoria e educação com foco em empoderamento feminino e trabalhar conteúdos e campanhas que tirem a mulher da objetificação, do estereótipo né, que a gente encontra aí na sociedade. E bem curioso[a] a minha descoberta como mulher negra, porque durante esses seis anos que eu venho trabalhando e construindo conteúdo com o Plano Feminino e construindo marcas com propósito pra falar com a mulher de uma forma relevante né, e menos alienada, eu ainda não tinha me descoberto como mulher negra. Bom, vou explicar um pouco por que não.

(Bloco 4) 31’ – 40’59”

Viviane: A minha família é uma família de cearenses, libaneses, portugueses e negros. Óbvio que a parte negra da família foi se esbranquiçando, né? Com a mistura, a miscigenação de raça. E eu fui a mais preta de toda família. Meus irmãos são brancos, minha mãe, meu pai, branco de olho azul, e eu nasci preta. Por muito tempo esse nascer preta foi uma incógnita, assim, na família. Todo mundo falava “Ai, ela teve um biso que foi negro, o biso dela era negro, a bisa dela foi catada a laço, era cabocla…” Tinha toda uma história que eu, quando criança, ficava imaginando “Por que que eu tenho que contar toda essa história quando me perguntam da minha cor”? Quando uma vizinha pergunta “Nossa, por que ela é dessa cor”? E ter de justificar tanto. Então, não. Não era adotada e eu tinha referências, né? Traços da minha raça, dos ancestrais. Isso é muito forte, isso se perdeu dentro da minha família e eu, depois de adulta, fui descobrir. Com algumas questões e também pela ajuda de algumas amigas que me mostraram que eu era uma mulher negra e que eu precisava, estando em espaços de poder como eu estava, em lugares de fala importante, reconhecer essa negritude. Pra mim tem sido muito importante, porque eu tenho trabalhado essas questões muito mais intensamente, dentro do Plano Feminino [link: https://www.facebook.com/planofeminino/], buscado essa diversidade nas campanhas de publicidade. Também com um olhar e um recorte muito mais especial pra mulher negra. Isso tem me trazido uma importância muito grande, como cidadã, como ser humano, e me descobrindo também como mulher negra. Tenho muito a aprender, mas tem sido incrível poder contar com outras mulheres negras, poder entender muito mais da cultura, dos desafios, das questões que tratam as mulheres negras. Então é muito importante a gente se descobrir, a gente se assumir, né? E entender quem a gente é dentro da sociedade, o que a gente pode fazer pra melhorar essa sociedade que é tão machista e racista ainda. Eu espero poder contribuir como jornalista, com o trabalho com o Plano Feminino, a disseminar mais conteúdo, a trazer mais questões pra que as pessoas possam pensar e repensar o que elas têm feito pra acabar com o machismo e o racismo no nosso país, no mundo. Então, uma questão muito importante que eu gosto de deixar sempre é: Quando a gente fala de mulheres na liderança, quando a gente fala de mulheres em mais cargos como CEO, quando a gente fala da luta pelas mulheres nos conselhos das empresas, de que mulher a gente está falando, né? A gente não está falando da mulher negra. Se você fizer hoje um teste que a gente chama do “teste de pescoço”, e olhar ao seu redor, dentro das empresas, olhar nas mesas de reuniões, as mesmas que eu frequento todo dia, na Vila Olímpia, na Vila Madalena… A gente vai ver que as mulheres negras não estão lá. As mulheres negras ainda são minoria nos cargos de analista, de gestão. Então, a questão da mulher negra é muito importante ser debatida. É importante a gente pensar pra que mulher a gente está lutando e incluir a questão da mulher negra nessa luta. Trazer essas questões pra dentro das nossas empresas, trazer essas questões pra junto do nosso dia-a-dia. Porque às vezes a gente não percebe, as pessoas não percebem, as pessoas se acomodam e não questionam. Então questionar isso, buscar onde estão as mulheres negras, é muito importante. Porque a gente começa a partir então de questões que vão fazer com que as empresas passem a considerar, a trazer diversidade, a pensar oportunidade para todas as pessoas.

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Cris: Então, eu acho que tem muitas pessoas despertando pra isso ainda hoje. Essas pessoas que são “os morenos”, que são “os mulatos”. Inclusive, essa palavra é uma palavra que machuca muito, né? Porque quando você pára pra pensar que mulato é um cruzamento de cavalo com mula pra nascer uma raça pior… Você já fala, “Putz, é muito ruim falar que alguém é mulato, não tem condição de falar isso”. Então, quando falar sobre esse descobrimento do corpo, da aparência, não tem como não passar pela hipersexualização do negro. E aí, antes da gente entrar nas experiências, eu queria falar só um pouquinho de história sobre isso, porque é muito triste, mas muito revelador, porque volta de novo pro negro como produto. Então, os senhores de escravos, eles alugavam os reprodutores. Eles locavam isso porque nasciam uma linhagem com qualidade, que trabalhava mais. Então qual que era a característica do reprodutor, do homem? Ele era um homem forte, com boa saúde, que era tratado diferente do resto, que ele não realizava trabalho pesado. Ele era mais cobiçado e mais valioso. O trabalho dele era estuprar outras escravas para que elas ficassem grávidas. E as características da reprodutora eram quadris largos, seios grandes, cintura fina, baixo teor de gordura, uma quantidade de músculo que determinava pra ela esse papel. Só que as mulheres, ao contrário dos homens, elas faziam trabalhos pesados. Porque eles entendiam que a criança já nascia forte. E algumas mulheres chegavam a dar à luz a 20 filhos. Pra todo esse papel de desempenhar essa mão-de-obra escrava. E até dentro desse contexto, o aborto de mulheres negras escravas, eles não eram só pra não ter o filho. Era pra livrar o filho de cativeiro, pra não colocar outros escravos no mundo. Então, toda essa parte de reprodução, parece que a gente tá falando de cavalo, né? Quando fala isso. Não pessoas. Parece que está falando de um cavalo. Olha, pega aquele cavalo e cruza com aquele que vai nascer uma raça boa e vai trabalhar pra você durante muitos anos. Então, a partir daí, nasce essa sexualização over, porque ela também é usada em outra área, que é diversão. Então os escravos negros, eles também serviam para a luxúria das senhoras e dos senhores. E eles apresentavam os órgãos sexuais em festas. Eles eram forçados a participar de orgias com homens e mulheres. Então já vai pra essa mercantilização do corpo, onde os próprios senhores e senhoras usavam isso aí. Então, hoje em dia, quando a gente vê essa hipersexualização, do que a gente está falando? “Ai, é o homem, é o homem preto é superdotado. Ai, mulher negra é fogosa”. É desse passado remanescente que vem essa história.

Ju: Como que é que você ouviu na minha casa? No meu aniversário?

Cris: Uma pessoa falou comigo muito sinceramente, é uma pessoa do nosso convívio, uma pessoa querida. E aí, tô conversando sobre esse assunto, ela falou assim: “Mas não é verdade? Mas eu ouvi. Eu acho que foi minha ginecologista que falou que mulher negra tem as partes quentes”.

Oga: Nossa…

Ju: “A minha depiladora diz que é verdade isso, porque elas têm realmente. Assim, fato científico, sabe?” E a pessoa ela não falou… ela falou de boa-fé, sabe? Ela falou acreditando mesmo.

Oga: E às vezes, o que eu acho mais…

Xênia: [Interrompe] O que eu posso dizer é: Gente, isso não é verdade. Qualquer pessoa que estiver ouvindo esse programa, isso é um mito.

Cris: Não tem nenhuma comprovação…

Xênia: Sabe a expressão papagaio de pirata? Ou aquela brincadeira que a gente fazia quando a gente era criança? Que chamava telefone. Que a pessoa pegava, contava uma história no ouvido de… ia passando numa roda e no final, o que foi dito pela primeira vez, no final, não tem nada a ver? Nesse caso, ela só se amplia. Imagina, a gente tem 128 anos de abolição da escravatura, onde tudo isso que tem sido falado aqui no programa até agora, se mantém intacta [intacto], com suas versões, tipo 2016. Aplicativo vai atualizando, mas a essência da parada é a mesma. E a gente chegar em 2016, a gente ainda ter a visão de que o corpo negro tem determinados tipos de especificações… tem gente que diz que o corpo negro aguenta mais dor, baseado no fato desses seres humanos escravizados passarem por todo tipo de tortura e a gente ainda tá aqui. A lógica das pessoas é essa. Tipo, ainda existem pessoas pretas no Brasil, depois de terem passado tanta coisa porque eles suportam mais dor e tudo o mais. E essa é a lógica usada nos hospitais, no tratamento à mulher negra. A mulher negra é tão maltratada, minha gente, nos hospitais públicos. Tão maltratada. Tantas mulheres negras morrem nessas situações de parto porque simplesmente elas são desumanizadas, entende?

Oga: É muito complicado esse ponto, que assim… da objetificação. É que fazem acreditar que é um elogio. Então, cresci em vários momentos achando que essa coisa de ser o cara, dotado, era um elogio. Aí você fala assim “Cara, não é”. Não é. Porque todo esse tipo de objetificação e de imaginário, né? Então assim, isso acontece até hoje. Eu era goleiro. Pra quem sabe, manja um pouco de futebol, goleiro é quem joga mal quando você é criança. Vai pro gol. E assim, em qualquer partida de futebol, eu não jogo futebol, eu jogo bem pouco. Mas em qualquer escolha de time de futebol, me chamam primeiro. E eu sei que em algum momento eu devia [deveria], eu devia [deveria] ficar orgulhoso, porque, “Pô, esse cara tá achando que você joga bem bola, porque negão joga bem bola”. E aí você fala assim “Cara, você vai nascendo dentro desses padrões, e que as pessoas acham que é um elogio”. Você tem… comece a entender que não é. Porque todos eles vão principalmente, tirando essa intelectualidade. Que é aquela história que a gente vê muito, né? Então, japonês é inteligente. E eu sei que até japonês fica perturbado com isso. Porque olha a pressão que ele tem. Ele vai ter que tirar dez.

(Bloco 5) 40’30 – 50’59”

Xênia: Japonês é inteligente, logo tem o pinto pequeno.

Oga: Justamente. Então pra eles fazem o inverso, né? E aí, pra gente, já… o negro, ele é transformado nessa coisa viril, nesse cara com força…

Xênia: Saúde.

Oga: E eu acho uma coisa assim, agora falando muito especificamente sobre o homem negro e é uma discussão também, no coletivo, porque, maioria ainda do coletivo é de homens. Essa discussão do homem negro… porque também assim, esperam que o homem negro seja muito mais viril, mais braaaaavo, resolva mais… já teve briga que eu ganhei só gritando. Porque acho que os caras esperavam uma raiva, uma força, uma energia sobre-humana e muito mais animalesca do que eu tinha. Óbvio que em alguns momentos da vida eu tive que usar isso a meu favor, mas assim, é assustador. Porque, meu, olha a pressão que você já sai. Por isso, Cris, quando você fala do tornar-se negro, é muito louco, né? Porque tem todo um aspecto positivo de você se descobrir. E aí que eu entendo da palavra empoderamento. E eu só não gosto dela por causa disso. Porque ao mesmo tempo, assim, poder nativo todo mundo tem, é uma posição meio discutida. Mas assim, eu só fico com medo porque às vezes as pessoas acham que eu estou falando que eu estou num poder acima do que eu tenho… não. [Xênia: Com certeza não.] Tá todo mundo normal. Só que muito louco, quando você começa a romper com esses padrões dessas coisas que esperam. E, principalmente, dessa sofisticação do racismo… por isso que eu quis pegar sua fala. Você fala assim “Meu, olha como é cruel. Porque eles transformaram isso em elogio”. Eles transformaram todo esse molde que puseram pra mim. Falaram “Ah, por que você não está feliz com isso”? Sabe, tipo, essas pessoas estão falando que negro é lindo. Por que você não está feliz com isso? Falei, velho, não… porque a gente é normal.

Ju: Romper com essas expectativas não é fácil. Ainda incomoda. E o empreendedorismo tem se mostrado uma saída profundamente transformadora na vida do negro no Brasil. Vamos ouvir agora uma fala da empresária Ana Paula Xongani.

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Ana Paula: Eu sou a Ana Paula Xongani. Eu sou sócia do Ateliê Xongani [link: http://www.xongani.com/] junto com a Cristina, minha mãe. E também sou do canal do Youtube Ana Paula Xongani [link: https://www.youtube.com/user/xonganiartecomtecido], que lá a gente discute várias coisas, partindo principalmente da moda afro. Eu sou uma empresária, uma empresária que fala de moda afro. A Xongani, ela surge num momento perfeito. Eu percebo que o mercado, né, o mercado, ele abraçou a Xongani muito bem porque estavam acontecendo coisas ao nosso redor. Aconteciam muitas coisas ao mesmo tempo. A Xongani começou numa época, que junto com a Xongani, começou [começaram] também as ações afirmativas. Então é meio que um ciclo. As pessoas estavam estudando mais, consequentemente estavam trabalhando mais, estavam empreendendo mais. E também queriam comunicar, a partir do que elas vestiam, tudo isso que ela estava aprendendo. Precisava, de alguma forma, isso também se transformar em discursos estéticos. O empreendedorismo, eu vejo como dois pontos, assim. O primeiro, é que ele sempre foi libertador. Se a gente pensar que o processo de escravidão acabou só há 128 anos atrás, e que o negro sempre empreendeu, tanto na escravidão, quanto no pós [escravidão]. E que isso era uma forma de você sobreviver, uma forma de você conseguir. Porque é bom lembrar que, nesse período, o negro empreendia porque ele não era absorvido pelo mercado de trabalho. Se a gente voltar pra hoje, as coisas acontecem mais ou menos pelo mesmo caminho. Nossa primeira motivação é isso. A gente não é absorvido pelo mercado de trabalho. Por isso que hoje a gente tem um número super grande, gente, a maioria de microempreendedores aqui no Brasil. Isso tem dois reflexos. O primeiro é esse negativo, né? Que a gente pergunta porque que esse negro está empreendendo. É uma forma de subsistência. É uma forma de se sustentar, sustentar sua família. Mas por outro lado, deu pra esse negro uma liberdade, uma liberdade criativa. A liberdade de empreender. A liberdade de fazer seu próprio negócio. Principalmente, a liberdade de criar um mercado que parte a partir do seu ponto de partida. A Xongani é mais ou menos a mesma coisa. A gente brinca que a Xongani sempre existiu nas nossas vidas. Porque a gente nunca teve acesso a uma moda que contemplasse o meu corpo negro, que contemplasse o meu cabelo crespo natural. Então, a gente sempre fez a nossa própria moda. E se a gente for falar de criatividade, criatividade é um dos grandes pontos dessa população preta. Aí a gente começou a perceber que essa demanda não era só minha, era uma demanda do mercado, que estava carente, que alguém tinha que cuidar. E que junto com isso estavam acontecendo movimentos sociais que favoreciam muito o mercado pra isso. É nesse momento que a gente empreende. E tem toda essa possibilidade de ter essa capacidade de expressar essa inteligência, essa inteligência criativa. Nesse momento, eu vejo o mercado empreendedorismo negro muito positivo. Porque assim como no processo de pós-escravidão, ainda hoje, ele é um processo de liberdade. É libertador você ser dono do seu próprio negócio. É libertador você poder criar um ambiente seguro. O que que eu chamo de um ambiente seguro? Um ambiente onde você pode criar, falar sobre você, falar sobre as pessoas parecidas com você. Empregar pessoas que vão se sentir confortáveis, por exemplo, com seu corpo natural. Tem uma experiência recorrente no meu ateliê, que são mulheres negras chegarem no meu ateliê e falar [falarem] “Caramba, essa é a primeira loja que não sou seguida”. Então, empreender, ele gera uma transformação social muito maior. Porque a gente cria poder. A gente percebe que a gente não vai conseguir fazer nenhuma mudança sem conquistar poder. E o que que eu chamo de poder? Não só poder econômico, a gente também tem esse desejo de diminuir a diferença entre o poder econômico da população negra com a população não negra. Mas também, poder de autoestima. Poder de transformação, poder de você se sentir seguro pra criar outras coisas, pra fazer novos negócios. Poder de você criar suas próprias histórias, ser protagonista. Essa é a grande palavra. Protagonismo. O empreendedorismo negro dá pra população negra protagonismo. E o protagonismo é libertador. O protagonismo te dá possibilidade de transformar não só sua vida, mas a vida dos que estão próximos de você e, principalmente, a vida das pessoas que são iguais a você. É se tornar referência. A gente tem um grande desafio. Eu digo sempre que a população preta tem um estigma. Que é um estigma pouco discutido, que é o estigma da miserabilidade. As pessoas não estão acostumadas a ver uma mulher negra empresária. Eu acho que até por isso que o mercado chama a gente de empreendedores. Pra nos distanciar de outros empresários. Eu me considero uma mulher negra empresária. Mas infelizmente a sociedade que eu vivo e o meio que eu vivo não me considera igual. Ser empresária negra é um desafio muito grandioso. Porque você precisa fazer transformações ao seu redor. É muito doloroso, por exemplo, você entrar num banco e precisar de estímulo financeiro, que é uma caminhada normal de qualquer empresário, e a pessoa que está na sua frente, ela não te reconhecer enquanto empresária. Então também é um caminho muito solitário. Os empresários negros, eles têm que trabalhar com seus próprios recursos. Se a gente pensar a população negra, esses recursos são muito menores. Ou seja, a gente começa na caminhada de uma forma muito desigual. Qual que é a solução pra isso? É claro que a gente diminuir os impactos do racismo institucional é a primeira solução. E pra isso a gente precisa de todos, negros e brancos. Mas também a gente precisa estimular principalmente essa população preta a consumir desses pretos. Porque a gente precisa entender que a gente é maioria dessa população. E também maioria econômica. A gente é a grande massa que manipula a economia desse país. Eu sempre falo que mais do que produtores conscientes, a gente precisa de consumidores conscientes. E o que que é consumidor consciente? É ter noção que quando um empreendedor negro, por exemplo, compra um pedaço de tecido, esse pedaço de tecido já é o valor final de uma peça que está numa grande magazine. Ou seja, é uma concorrência extremamente desleal. Mas no momento em que a gente tiver consumidores conscientes, a gente vai conseguir, de fato, criar uma massa econômica que vai fazer transformações. Então, eu percebo que esse empresário negro que está em ascensão, hoje ele… É muito positivo se a gente olhar pra um negro, mas se a gente pensar que a minha bisavó era escrava e eu sou empresária. A gente vê evoluções acontecendo gerações após gerações. Mas o grande desafio agora é a gente ultrapassar esse teto. Estourar essa bolha. E não ser só considerado a maioria de microempreendedores negros. A gente precisa ultrapassar essa bolha e ser reconhecido como um mercado em geral. E pra isso a gente precisa de todos. Principalmente, essa percepção e esse entendimento de como funciona a economia. Como funciona o racismo institucional que nos limita nesse processo. E entendendo, percebendo, a luta e as conquistas diária [diárias] da população negra no empreendedorismo. A Xongani hoje é considerada um dos maiores ateliês de moda afro do Brasil. E aí a gente percebe que tem um nicho de mercado gigantesco. Aí a gente vai se perguntar “E por que que eu não vejo? Onde tá tudo isso”? As barreiras que impede [impedem] muitos de ver é exatamente esse racismo. Foi nesse momento que eu criei o canal do Youtube, que foi minha forma de extravasar e de perceber que eu não estava fazendo uma moda esvaziada. Que a partir da moda que eu estava fazendo, eu estava abalando, tentando abalar várias estruturas. Tentando abalar o status quo. Nesse canal a gente discute como que é estar nesse mercado de moda. Como que é ser empresária negra hoje. A gente discute o que que é a moda afro. Quais são esses impactos na economia. E quais são os impactos que a gente falta, quer atingir. Esse é meu trabalho. É um trabalho de moda. É um trabalho de arte. Mas é, principalmente, um trabalho de ativismo, um trabalho de mudança social. E a moda, é a minha isca, é minha plataforma de transformação social.

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Oga: Enfim, tem uma galera que descobriu, né? Que entrou na estética, descobriu-se negro pela estética. Foi a porta de entrada. E aí, dentro dos movimentos negros, tem uma discussão toda se isso é válido, se não é. Eu acho que a gente vai até ter uma fala…

Cris: Vamos chamar então?

Oga: Pode ser.

Cris: Vamos ouvir agora então a fala da Luna.

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Luna: Meu nome é Juliana Luna, trabalho com cultura, arte, mídia, como apresentadora de TV… Tenho um trabalho também que é no campo do social, onde eu sou coordenadora de um projeto de um artista de Paris, que chama JR, que é a Casa Amarela [link: https://www.facebook.com/favelarte.casaamarela/], no Morro da Providência. Escrevo para a revista AzMina [link: http://azmina.com.br/], que é uma revista digital, feminista. Pra mim, sinceramente, a questão da estética, ela é uma questão muito óbvia. Porque é isso, a gente já teve diversas formas com que a gente se manifestou ao longo dos anos, cada década teve a sua expressão, a sua característica estética. Os anos 70, por exemplo, né? Aquela coisa do black power, das mulheres assumindo aquela identidade do cabelo natural e usando acessórios que remetessem à origem daquelas pessoas, daqueles negros. Isso nos Estados Unidos foi muito forte. E é engraçado, né? Porque aquilo representa toda uma linguagem estética, todo um código cultural que foi definido a partir de um movimento de resistência, mesmo, né? De como as pessoas gostam de dizer, empoderamento.

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Luna: Mas é isso, assim, eu acho que a questão da militância estética é sim importante, só que eu também acho que não pode parar nesse layer, né? Porque a gente tem muito mais pra descobrir, né? Por exemplo, eu conheço muitas meninas aí da geração, que dizem “Geração Tombamento”, né, que estão realmente experimentando muito com o cabelo colorido, sabe, com roupas sem gênero, com umas referências dos anos 90 e tudo misturado, assim, todos os códigos ali presentes. E eu acho muito incrível, porque pra mim é uma, na verdade, é um exercício de criatividade, que nos foi negado por muito tempo, sabe? Por muito tempo a gente tinha que ser estéril, se enquadrar ali, no padrão lavado, né? Limpo. E pra mim é uma revolução no sentido de desafiar essa ótica antiga, né, que é a ótica do “ah, mas seu cabelo não vai passar nesse teste”, “com essa roupa você não vai conseguir chegar nesse lugar”. Sabe, assim? Eu acho que a gente tinha sempre uma limitação muito grande em todos os níveis e isso era refletido a partir da lavagem, né, que existia assim, da uniformização da nossa etnia, assim. Então eu acho importante sim a gente ter esse movimento que tá experimentando, tá criando e tá se vendo, né, de diversas formas e também decidindo se aquilo serve ou não serve. Diz muito sobre explorar a identidade e também se auto conhecer. Mas, ao mesmo tempo que isso vai acontecendo, eu vejo um foco muito grande só nessa questão, né. De buscar referências visuais, de ousar mais, e de quem é mais ousado e quem tem o cabelo mais colorido, e pra mim, a gente já chegou nesse lugar, a gente tá explorando esse lugar, e esse lugar é muito importante, mas eu acho que a gente também tem que começar a olhar pra onde a gente vai, né, com isso que a gente tem descoberto a partir dessas experimentações.

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Xênia: Eu acho que tudo que a gente tem vivido, e tudo que a gente ainda vai viver, os personagens que ainda vão aparecer, isso vai se dar com o decorrer da nossa história mesmo. A minha história individual é que eu sou baiana, aí eu vim pra São Paulo pra trabalhar como modelo e alguns anos depois eu me tornei cantora. O hip hop, que é o veículo que eu acabei me aproximando que é um pouco do trabalho do Aláfia, acabou também me dando, aprofundando e abrindo um pouco mais a minha cabeça a respeito das questões sociais e tudo mais. E assim, na minha cabeça, não tem como uma pessoa parar em um ponto. Se a porta de entrada, como o Oga falou, de determinadas pessoas nessa Geração Tombamento foi a estética, ela vai ter a estética como aliada, vai somar a mais coisas que ela vai aprender no decorrer da vida dela. Tipo assim, a gente tá falando aqui, mas a maioria dessa galera tem 16, 17, 18 anos, [Oga: Exatamente.] sabe, é uma galera muito jovem. E assim, na minha cabeça, nós estamos vivendo um processo extremamente recente de poder de fala, de portal de divulgação que é a internet, é o Facebook, o Instagram, enfim, como tantas outras, o Twitter, a gente tá num processo tão, mas tão engatinhando, não sei nem se a gente é um embrião, nem é um embrião nesse sentido, pra quem quer que seja, comunidade negra que se sente mais evoluída, ou mesmo as pessoas brancas que não entendem. Porque, inclusive na própria questão da estética, se você não toma, não se apropria disso, não fala que isso aqui é isso aqui mesmo e a gente que tá ditando… que agora são essas pessoas que estão ditando a moda, vem uma galera mal intencionada… teve um Lollapalooza aí no ano passado, que uma menina branca fez box braids. Pra quem não sabe o que é box braids, são as tranças compridas meio grossas, assim, que é usada pelas mulheres, pelas meninas negras. E essa menina fez box braids e apareceu numa foto numa matéria dizendo assim “A irreverência e a originalidade de fulana de tal”, como se essa pessoa tivesse criado isso e não dando a nota, olha, isso aqui é assim, assim, assado, como a história dos turbantes, que a gente vê muitas meninas, mulheres brancas usando turbante e não se dão o trabalho de se aprofundar e dizer “ó, eu uso isso aqui, mas isso aqui pertence a tal, tal cultura, assim, assim, assado”. Então se a gente não se apropria, e aí que tá o lance do empoderamento, e não é só o empoderamento “ah, porque eu tenho o poder”. Todo mundo tem poder.

Oga: Não, acho até que essa questão é semântica mesmo, a gente entende qualquer…

Xênia: Saca? Se eu não me aproprio, se eu não tomo posse de mim mesma, e logo das coisas que estão à minha volta e me pertencem, eu to fazendo aquilo de uma maneira tal desleixada, que eu dou vazão para aquilo não existir mais daqui a um tempo, passar desapercebido, outras pessoas se apropriarem daquilo que tá acontecendo agora, tratarem isso como uma moda. Ser preto não é moda, né, como eu ouvi recentemente “ah, ser preto tá na moda”. Ser preto não tá na moda, porque a moda passa e eu vou continuar sendo preta, [Oga: Justamente.] entende? Então, nessa coisa estética, eu defendo isso, eu defendo porque a gente tem um problema, digo a gente em geral, de se reconhecer como pessoas bonitas. A sociedade imprimiu isso na nossa cabeça, e imprime isso na nossa cabeça, diz que nós somos feios e feias, que nós temos que seguir o padrão de beleza X, Y, Z pra poder a gente tá incluído. Dentro da nossa bolha, que é o negócio do empoderamento, de usar o cabelão e não sei o quê, isso cola. Mas você vai chegar aí no corporativo e ainda tem um monte de mulher preta alisando o cabelo, não só porque ela acha que é o momento dela alisar o cabelo, mas porque ela considera feio, e muitas vezes, na maioria das vezes, porque a empresa que ela trabalha impõe que o cabelo dela, o cabelo original dela, não está de acordo com a política da casa. Eu tenho um exemplo recente de uma amiga minha, Linda Marxs, que foi demitida do emprego dela depois de ter sido agredida pela chefe, que eu não vou me lembrar o nome agora, se eu lembrasse eu ia falar o nome dela. Ela estava com as tranças, a chefe grosseiramente e racistamente chegou e falou “Tira isso”. E ela rebateu, e chamou a chefe de racista, não sei o quê, e a chefe deu um jeito de demiti-la e tal. Ela criou uma página, inclusive, todo mundo pode entrar, uma página no Facebook, chama “Tira Isso”, que expõe relatos de pessoas que passam por isso diariamente, nós sermos o que nós somos, podermos ser exatamente quem nós somos, então a questão estética, ela é muito mais abrangente. A polícia, quando a gente fala “ah, não sei se eu sou negro”, a polícia sabe se você é negro, entende?

Oga: É, eu sempre fico brincando com essa questão. Assim, se você tem dúvida, pára na frente do PM. [risos]

Xênia: Então, não é que a polícia vai educadamente, vai saber se você tem antecedentes criminais ou não, a polícia já pára você na rua, seja você mulher, homem, já pára, já te aborda agressivamente. Isso se não acontecer coisas piores. Então assim, a figura do preto, ela ainda está muito ligada à questão negativa em todos os sentidos. Então porque não a gente fazer disso uma plataforma cada vez maior de que os pretos precisam ser sim, exaltar sim a sua imagem, serem quem quiserem. Não é ninguém que vai dizer se tem, se não tem. Quem não conseguir lidar com isso, é um problema dessa pessoa. Entende? Porque a gente, assim, não tem como parar, depois desse fluxo de empoderamento, de tombamento, a gente tem uma secretária de Direitos Humanos preta, entende? Não tem, não há condição…

Cris: Não tem volta, né?

Xênia: Não tem, não há condição disso parar na estética. E não significa que, ah, porque ela é secretária que ela não é bonita, a gente não pode descolar uma coisa da outra. As pessoas são maravilhosas! As pessoas pretas são maravilhosas! Elas são esplêndidas, e elas têm que ocupar… e sabe que, na minha opinião, precisa ter, cada vez mais? Oportunidades dos pretos conseguirem avançar, entrar e estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Fala de a presença negra, tem que ser a onipresença negra, onde você vai chegar e vai ter preto em todos os lugares, em todos os lugares. Entende? Então, pra mim, não é muito coerente, as pessoas que querem estar num lugar diferenciado, já querem ser vistas, não só como um corpo. Entenda: a Oprah Winfrey, o Morgan Freeman, a Beyoncé, sei lá, qualquer personalidade americana de poder aquisitivo alto, com intelecto alto, não é por causa dessa questão que eles estão fora da mira do racismo. A Beyoncé acabou de lançar um disco importantíssimo pra comunidade negra americana e do mundo e ela foi extremamente achincalhada pela própria comunidade negra, que queria deslegitimar a capacidade que ela tem de falar sobre esse assunto ou não, entende? Concomitantemente, tem o Kendrick Lamar, que também está fazendo a mesma, indo na mesma, porque existe uma coisa programada e simultânea nos Estados Unidos dos artistas negros se mobilizarem por causa do Black Lives Matter e, não, o Kendrick Lamar pode, não sei o quê. Porque ele é homem! Entende? Então, existe uma falta de largar, vamos deixar ser, vamos deixar fluir, vamos ver no que que vai dar, porque o tempo vai dizer quem é intelectual, quem é intelectual e bonito, e quem é tudo ao mesmo tempo. As pessoas podem, as pessoas pretas podem ser várias coisas ao mesmo tempo.

Ju: Vamos chamar novamente o pesquisador Salomão, porque ele tem uma visão muito interessante dessa organização e acho que pode agregar muito na nossa visão de como funcionam esses movimentos negros.

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Salomão: A mim, não parece que haja o movimento negro. Não há um bloco de pessoas organizadas no país inteiro, que seguem uma cartilha de comportamento político, de ideologia e de prática. Eu utilizo o termo “movimentos negros”. Pra mim, o que são movimentos negros? São grupos, pessoas, instituições, organizadas ou não, que procuram, na sua prática e no seu discurso, na sua produção, a valorização dos descendentes de africanos, visto que eles são socialmente e politicamente desvalorizados.

(Bloco 7) 1:01’00” – 1:10’59”

Salomão: Discriminados, através de práticas racistas interpessoais e institucionais. Então, essa é a primeira coisa. Eu vejo esse universo composto de pessoas, instituições, práticas, narrativas, discursos como algo extremamente rico e positivo. Por que é positivo? É positivo porque oferece uma alternativas às relações históricas de poder nas quais os descendentes de africanos têm sido mantidos de forma totalmente subalterna, economicamente, politicamente, juridicamente, culturalmente. Então, vejo os movimentos negros como grupos, atitudes, práticas, valores, conceitos, disseminados no Brasil inteiro e sem um centro organizativo. Então, um exemplo é o movimento hip hop, que é uma parte do movimento negro, mas que não usa a cartilha trotskista, por exemplo, de que os negros têm que ter uma visão de esquerda, de que os negros têm que militar nos partidos de esquerda. O movimento hip hop é extremamente autônomo, ele tem dimensão nacional. Em cada geografia que você observar no país, você vai ver jovens, negros, mestiços, brancos, falando de coisas muito similares, quais são essas coisas similares? Falando da violência de estado contra a juventude. Falando da discriminação da mulher negra. Falando de práticas discriminatórias da escola. E ao mesmo tempo, construindo ferramentas de enfrentamento do racismo. Quais são essas ferramentas? São pedagogias populares, extraescolares, que ajudam a preservar a vida dos jovens negros urbanos. Com que? Misturando o hip hop com a capoeira, fazendo práticas de dança, mas não apenas prática, eles estão teorizando sobre o corpo negro, sobre as danças negras urbanas. Eles estão intervindo na paisagem urbana e preservando a vida de crianças que são, estão em perigo porque o Estado as mata. O hip hop é movimento negro, eu entendo dessa forma. E como o hip hop se constituiu em movimento negro? A partir do espaço urbano, sobretudo São Paulo, depois Rio de Janeiro; produziu primeiro uma máquina ideológica que, através da canção, mas não só da canção, através da organização, através das práticas de música, através do breakdance, através do discurso visual, do espaço urbano, construiu uma série de saberes, de tecnologias que podem ser oferecidas pros jovens e que fazem sentido. Fazem isso melhor do que a escola poderia fazer, porque não tem o tempo da escola, não tem as regras da escola, não tem o aparato da escola, mas tem muito mais liberdade organizativa e criativa.

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Cris: Quando a gente pára pra ver essa questão da estética, e falando um pouquinho em números, 89% das mulheres brasileiras já fizeram alguma coisa pra alterar sua própria aparência. E isso vem de uma pesquisa da OMS (Organização Mundial de Saúde), justamente porque os produtos, eles trazem risco à vida das pessoas. E aí quando a gente pensa sobre clarear a pele e alisar cabelo e mudar os traços, a gente não tá falando sobre vaidade, a gente tá falando sobre um projeto perverso de inclusão. De que pra se sentir parte, você tem que parecer com aquilo que não é você. E aí, quando a Xênia falou, e é muito importante isso, sobre nenhuma identidade ser construída no isolamento. Ela é construída a partir do que é valorizado e tá à sua volta, e daí tem uns números bem interessantes pra falar sobre isso. Nas novelas, das 162 novelas brasileiras que foram ao ar na TV Globo de 1984 a 2014, 90% dos personagens centrais são atores e atrizes brancos. 10 novelas apresentam mais de 20% do seu principal elenco composto por atores classificados como pretos ou pardos. 8% dos protagonistas foram interpretados por atores negros. Apenas 11 novelas foram protagonizadas por atrizes ou atores pretos ou pardos. Apresentadores de televisão como um todo, 5% são negros ou pardos. Jornalistas, 22% se declaram pretos ou pardos. Na publicidade, apenas 12% dos comerciais são protagonizados por negros. Na moda, desde 2009, o Ministério Público orienta que desfiles tenham ao menos 10% de modelos negras, porque antes eram 2%. Ainda com esse acordo, o São Paulo Fashion Week do ano passado, 2015, das 344 modelos presentes, apenas 8 eram negras. Então, aqui agora, quando a gente vem com esse mundo da estética, esse mundo da representatividade, da mídia, e a gente coloca esses números que a gente entende de onde é construída essa identidade, essa identidade do querer se parecer. Com essa baixíssima presença em diversos campos, nada mais justo que, a partir do momento que você se entende como ser humano e entende o seu valor, você querer gritar isso pros outros, querer colocar isso pros outros. Querer falar, sociedade, engole meu cabelo sim, sociedade, essa roupa colorida eu vou usar sim. E eu vou usar esse cabelo, não é só pra eu ir pra festa. Eu sou advogada e vou usar esse cabelo, eu sou executiva e vou usar esse cabelo. E eu acredito que esse movimento que as mulheres negras protagonizam, ajudou muitas mulheres pardas e as mulheres brancas que não tem cabelo liso. Vem toda uma escala, aí sim protagonizada pelas mulheres negras, de tipo, você pode ser bonita com o seu cabelo do jeito que ele é.

Oga: Valorizar a beleza natural, né.

Xênia: E tem uma coisa muito importante a respeito da aparência da mulher negra, principalmente as mulheres negras de pele escura como eu, se sentem rejeitadas, gente! Se sentem à parte. Existe um mundo, é como se a gente vivesse num mundo paralelo, e isso é um exemplo até engraçado, no meu dia-a-dia assim, de viver a minha vida normal, eu saio pouco na rua, se eu não tenho nada pra fazer na rua eu não saio. Mas quando eu saio na rua, vou viver, vou numa padaria, vou num supermercado, o espanto das pessoas em verem aquela pessoa, bem resolvida, né, tipo, bem vestida, fazendo suas compras, vivendo sua vida normalmente como qualquer uma delas, né, e perceber o estranhamento de todos, de quem está trabalhando e de quem está consumindo.

Oga: Então assim, como a gente não detém o protagonismo nesses canais de mídia, muitas vezes você vê a pessoa até chegar, não acho que o caso de Sexo e as Negras, mas enfim, a pessoa chegar com uma boa intenção, mas como, se você não tem negro como protagonista produzindo isso, e que possa apertar aquele botãozinho vermelho de tipo, vai dar merda? Você perguntou pra essas mulheres se elas não se ofendem com isso?

Cris: É forçar a hiperssexualização depois de isso tudo, cê tem certeza?

Oga: Entendeu? É por isso que eu digo assim pras pessoas, pros brancos empáticos, pros negros que já estão começando a ocupar esses lugares ainda numa escala menor, pra gente sempre ter essa preocupação de dividir o protagonismo quando você não tem alguém ali que você possa, enfim, que conseguiu chegar pela estrutura convencional naquilo, dividir esse protagonismo pra você ter verdade na sua ação mesmo assim, né? Porque às vezes você pode estar bem intencionado e estar fazendo uma besteira gigante.

Xênia: As pessoas brancas que estão do nosso lado, que estão aliadas com comprometimento de mudar a cabeça, as suas próprias cabeças, o seu próprio comportamento e melhorar a sua vida em volta e, consequentemente, porque isso é uma energia e a gente acaba reverberando, é saber que nada tem que partir do achismo, ou do ”my only black friend”, como uma amiga minha, essa mesma amiga, a Linda Marxs tem uma página que chama “My Only Black Friend”, que ela fez um Tumblr [Oga: Isso.] que mostra várias imagens, de diversos exemplos, de universidades a, sei lá, escolinhas de criança que, aquela única criança negra, ou aquela única pessoa negra na universidade, na turma de amigos, que faz essa pessoa achar que é legítimo ela falar sobre o assunto, ela tomar a fala, ela dizer que não é assim, que não é assado. Então, esse bom intencionamento, muitas vezes me parece maldoso, sabe por quê? Porque quando uma pessoa vai fazer uma obra, ela pesquisa, ela faz de tudo. Ela vai escrever Hamlet, sei lá, qualquer tipo de escritor europeu, ela tá, ela vai falar com pessoas que provavelmente conhecem, que sabe do assunto. Ela não vai dar, como a gente fala, não vai dar um milho de fazer uma coisa errada. No imaginário das pessoas, a gente é tão ignorante, que a gente não vai nem questionar, entende? A gente não vai nem questionar. Então não há uma preocupação de fazer uma pesquisa de fato, de fazer uma entrevista, com muitos tipos de mulheres de diferentes setores.

Oga: E sabe por quê, Xênia? E o que eu acho interessante nisso é, como a gente não é enxergado como alguém com poder de compra, [Xênia: Sim.] você não faz esse caminho normal de pesquisar. Então, a gente sabe que, muitas vezes, mesmo quando o produto é destinado pra alguém branco também não fazem, mas no caso do negro, é mais assustador ainda, né. Essa ausência, de encarar a gente como consumidor e alguém com poder, enfim. Então, como o produto não é destinado pra gente, não é alguém que conhece nossas necessidades, a chance dele sair errado é imensa. E eu gosto muito do que você fala, tem um vídeo do… eu já indiquei esse canal em outros programas.

(Bloco 8) 1:11’00” – 1:20’59”

Oga: tem uma programação da MTV Decoded, da MTV americana, tem um canal no youtube que é bem interessante, que ele tem uma descrição que eu acho que é legal que é isso assim, um negro, eu não falo por toda minha raça e às vezes eu vejo muito isso né, então assim aqui a gente tá dando uma opinião, é óbvio que vocês devem ter percebido que a gente… somos negros que gostam de falar sobre isso e se preocupam muito com isso, mas obviamente a gente não responde por todos os negros, mas por outro lado a gente sabe que a gente tem que ter empatia com esse negro que tá menos empoderado, tem essa auto imagem um pouco mais fraca, pra justamente também a gente não dar um discurso pro inimigo. Então aqui é um momento que a gente tá sentindo nessa mesa discutindo entre amigos mesmo assim, a gente tá soltando informações pra você que tá do outro lado que são mais empáticas mesmo e a gente toma cuidado pra também não fazer esse fogo amigo sabe!? Que isso eu vejo que acontece muito, como Fernando Holiday: assim, eu não acredito nele em muitas coisas que ele fala, mas eu entendo que, muita gente se apoderou desse negro, porque não é fácil ser negro, então muito fácil ele, ele foi criado numa estrutura que ele quer fugir disso então… E também não quero infantilizar ele não, acho que ele sabe o que está fazendo, ele não é um coitado, [Xênia: [concordando] já é adulto.] ele não é um coitado, mas eu entendo que nós temos que ter um discurso que também não demonize esse cara pra gente não ficar sabotando, então assim a gente sabe que tem uma maioria que acredita nas ações afirmativas que acredita que o dia da consciência negra tem que ser um feriado ou pelo menos um dia celebrado…

Xênia: [interrompe] uma maioria dentro da nossa bolha né, eu acho…

Oga: [interrompe] eu acho, é… Então, mas digo assim dos negros né?!

Xênia: Sim!

Oga:agora, eu acho que a gente tem que entender também que vai ter negro que pense diferente e conseguindo um debate questionar essa pessoa, não demonizar né, que eu acho que é um momento… [Cris: nem infantilizar…] nem infantilizar e também não achar que ele é só uma vítima, não, a gente sabe que sim é difícil ser negro e cada vez mais vão ter dos nossos captados para fortalecer uma outra linha de pensamento…

Cris: [interrompe] Essa é uma conversa que eu já tive com algumas pessoas quando elas falam assim: “ah, mas eu conheço preto racista”…

Xênia: uhum…

Oga:[interrompe] é… todo aquele discurso…

Xênia:[interrompe] é como dar munição pro racista…

Cris: [interrompe] vamos partir, porque tem duas coisas, é tem duas coisas muito simples de conversar sobre isso, primeiro não tem como um preto ser racista, [Oga: É.] porque um preto não consegue oprimir uma sociedade nem…

Oga: [interrompe] A gente já falou bastante desse lance do racismo reverso que é absurdo…

Cris: [interrompe] ele pode ser preconceituoso… é, ele pode ser preconceituoso e aí eu fiz até uma conversa com um colega meu que tava falando sobre isso, assim tipo, magina, e aí é infantil a parábola mas ela ajuda a entender, se todo mundo vira e fala quem tem olho azul não presta, quem tem olho azul é feio, quem tem olho azul tem que ser preso, quem tem olho azul só é mendigo, é serviçal, é pessoa q tá à margem da sociedade, quem tem olho azul rouba, quem tem olho azul mata, na cadeia tem um monte de gente de olho azul, você vai querer ter olho azul? Então não, eu quero distância disso [Xênia: é um auto-ódio.] eu não gosto de negros [Xênia:o auto-ódio.] é o auto-ódio, muita gente nem se reconhece negra e ainda há quem reconhece e fala: “mas eu não gosto de preto”. Eu tava fazendo pesquisa pra pauta…

Oga: [interrompe] Até essa questão do “eu gosto” é foda né, porque a gente fica naquela questão de tipo não é só uma questão de gosto.

Xênia: É…

Cris: Exato! Mas eu não sou obrigada a gostar de uma ruiva que… Engraçado que recentemente, eu li isso num post, o cara falando assim: “se tem uma ruiva no bar eu falo “puxa, não gosto muito de ruiva”, qual que é a diferença de quando entra uma negra num bar e falo “ah, mas não me sinto atraída por preta”? Então não tem uma base de comparação quando as mulheres ruivas não passam por todo um processo de desumanização, [Oga: e de opressão] ela é historicamente humilhada, degradada…

Xênia: Chega aqui em condições… chega no país em condições sub-humanas.

Oga: É, a gente sempre brinca, ninguém foi em Amsterdam e sequestrou ruivos e trouxeram pra cá e falaram que eles não tem alma.

Xênia: [interrompe] A M.I.A tem um clipe maravilhoso, né, sobre os ruivos, [Cris: isso… isso] fazendo essa analogia com os ruivos, é incrível!

Cris: A M.I.A é muito boa com isso e porque essa analogia ela acaba sendo muito feita, inclusive eu ouvi isso de uma pessoa que trabalha com publicidade né, então… significa! mas essa falta de percepção tipo “puxa, mas eu não me sinto atraída por pessoas negras”, você se sente atraído por aquilo que lhe é visto como ideal de beleza; se aquilo não é colocado para você como… o ideal de beleza é Brad Pitt né? E aí qualquer coisa que circula minimamente ali perto te chama atenção, como o homem negro, a mulher negra não é colocado no ideal de beleza é natural que você olhe pra aquilo e fala “desgosto, não me sinto atraído”. Será que você não se sente? Que te faz pensar dessa maneira? Então assim todo esse processo ele acaba circulando em diversos universos e esse momento desse branco entrando mais dentro dessa sociedade, empurrando essa margem pro lado pra poder entrar, eu acho que traz esse questionamento ao centro, principalmente da beleza, principalmente da beleza da mulher negra, porque ainda hoje a mulher negra reconhecida como bonita é que minimamente ela tem traços brancos, ela é bonita, essa negra “puxa ela nem parece negra, né”, porque o nariz dela é mais fino, a boca dela é mais fina, então ainda é uma mulher e um homem negro que tem uma proximidade que flerta com o branco; então toda essa discussão leva prum outro lado que são conversas que eu tenho muito com a Juliana sobre a exotificação, que é a pessoa supervalorizar uma condição que não existe, só pra deixar muito claro que ela gosta do negro, então a pessoa chega, ela fala “nossa, mas meu Deus, que coisa linda, que coisa espetacular, nunca vi nada tão lindo, é incrível” aí você fala, gente mas não é, é uma pessoa, ela é bonita, tem toda razão, mas não tá parecendo um pouco exagerado isso, não parece meio over? A falta de convivência é tão grande que quando a pessoa convive, ela tem que falar “eu tenho que deixar claro que eu tô feliz com isso, então peraí, deixa eu deixar claro aqui que eu não tenho nenhum problema”.

Xênia: A Grada Kilomba tem uma, um trechinho do plantation memories que é fantástico que ela cita isso assim, mas de uma maneira… o fetiche faz com que essa, parece que de centenas de pessoas que tem no ambiente uma pessoa preta tá lá e acende um foco de luz nessa pessoa preta, praticamente um túnel do tempo que essa pessoa está expondo a outra vive, é um deleite, é um prazer de… ela não sabe disso, mas naturalmente ela vive isso, esse túnel do tempo racista de tudo que já foi feito de tudo que já foi martirizado, ela é teletransportada nessa atitude dela em se sentir melhor expondo essa pessoa preta, fazendo ela se sentir diferente dos demais, sabe? aqui você é diferente, você é exótico e eu vou ficar repetindo isso tantas vezes porque isso me causa um prazer, tipo inenarrável. Isso é uma coisa tão clara nas minhas vivências, nos relatos dos meus amigos, das minhas amigas, essa falta de… de tudo, né? Não é falta de uma coisa, é uma falta…

Cris: [interrompe] é difícil lidar com isso, ele vem disfarçado de elogio, então você tem todo o estranhamento com a situação, mas você não sabe muito bem o que tá acontecendo, mas aquilo tá te incomodando… então é um tempo pra você entender que na verdade a pessoa tá lidando com o próprio senso de culpa que ela tem, e o Mamilos ele tem esse pressuposto de não partir das pessoas estarem agindo consciente ou deliberadamente de forma má, mas é importante entender isso, sabe, que muitas vezes essa mágoa também ela é muito difícil de lidar e a pessoa sente, não pensa que ela não sente não, que ela tá sentindo ela entende isso que tá acontecendo.

Oga: Só voltando à questão da música, a música enquanto protesto acho que a força que a música tem, pra você que ouviu a gente até aqui, é isso né, através da poesia e da subjetividade consegue simplificar tudo isso que a gente diz, tocando no emocional, então às vezes o poder da música pra te botar naquele ambiente pra falar “eu sou parecido com você” e o poder da arte em si, não só da música, acho que a música é a arte mais fácil né, sei lá tem quadros de arte contemporânea, às vezes uma fotografia, a pessoa fala “ah, eu não tenho sensibilidade pra absorver isso”, agora a música não, a música assim…

Xênia: [interrompe] a música é uma onda né, a música é um fenômeno da natureza [Oga: é físico] o som viaja [Oga: é físico] o cosmos…

Oga: E ao mesmo tempo tem a subjetividade que eu acho que pega muito. Então isso é muito bacana, o hip hop muito claro, ele é usado como protesto, ele foi usado como protesto, hoje em dia talvez menos, hoje em dia o hip hop se libertou até desse estigma e “cara eu posso falar besteira, eu posso falar coisa engajada, eu posso falar do que eu quiser”, mas ele no propósito, no início, ele teve esse engajamento, uma parte dele teve esse engajamento.

Ju: Se você é negro e nos ouviu até aqui deve estar se perguntando “o que eu faço pra mudar essa realidade?”

Cris: a gente consultou todo pessoal aqui da mesa, sobre como a gente poderia trazer essa fala aqui e temos algumas dicas. A primeira delas é esteja consciente do problema, faça sempre o teste do pescoço, aquele lá que a Vivi citou, ao entrar em um lugar gire o pescoço 360° e veja quantas pessoas negras estão ali servindo e quantas estão sendo servidas, isso é necessário para manter o seu olhar atento.
Estude o tema! Existe uma infinidade de conteúdos na internet que pode te ajudar a saber mais sobre racismo e a questão negra no Brasil. Faça um esforço consciente pra buscar e incluir pessoas negras nas suas redes sociais pra que você consiga ler e entender um pouco mais dessa realidade. Ó, tem um monte de canal no youtube de pessoas negras, tem tanta gente que dá pra você seguir, o Oga, a Djamila, a Xênia, a Diane o Saloma, tanta gente maravilhosa, a Ana Paula, todo mundo aí conversando sobre esse tema.

(Bloco 9) 1:21’00” – 1:30’59”

Cris: Escute pessoas negras, todas elas. Escute rap, entenda o que os negros estão falando nessas músicas rap, hip hop. Se você tem alguma dúvida sobre questões dos movimentos negros ou queira conversar com alguém sobre questões raciais, faça uma abordagem humilde a essas pessoas, seja sincero e diga o que que deseja aprender e gostaria de ouvir a visão dela sobre um assunto, então realmente ouça o que a pessoa tem a dizer mesmo que você não concorde com tudo o que ela diz, mas lembre-se: nenhum negro é obrigado a te ensinar nada, ninguém pode exigir que uma pessoa que sofre a discriminação no seu cotidiano tenha sempre paciência e acolhimento para oferecer. No seu dia a dia não fique calado diante da discriminação racial nem no seu trabalho, nem na sua família, nem na sua roda de amigos. Explique para as pessoas brancas o quão danoso e covarde o racismo é para a nossa sociedade, diga que isso é crime. Não compactue nem reproduza piadas racistas, elas não são inofensivas, existe um propósito ali que é afirmar que os negros são inferiores e que devem ocupar um lugar de subalterno na sociedade. O racismo não deve encontrar uma casa no humor, piada é reflexo da moralidade de uma nação, elas apontam quem merece respeito e quem não merece respeito. Você não precisa tocar em uma pessoa pra elogiá-la, muito menos no seu cabelo, é uma atitude extremamente invasiva e desrespeitosa. Quando for elogiar uma pessoa diga que ela é bonita e não só uma determinada parte do seu corpo ou do seu rosto, é a mesma coisa de dizer pr’uma pessoa gorda que o rosto dela é bonito. Não é legal chegar numa pessoa negra e falar “seu cabelo é lindo, seu corpo é lindo”. Seja sincero no elogio e não passe a impressão que está exotificando a pessoa. Se você tem filhos, leia para eles histórias onde negros são protagonistas, tenha bonecas e bonecos negros para que eles brinquem, diga pros seus filhos o que que é racismo, como isso é errado e ainda como ele pode ajudar um colega que esteja passando por isso. Mostre pros seus filhos a diversidade da beleza, dos diferentes tipos de cores de peles, de cabelos, de narizes, de bocas. Se você está em posição de poder, contrate pessoas negras, converse com pessoas negras mesmo que elas não cumpram todas as exigências da vaga, entenda como sua empresa pode abraçar a diversidade, proponha programas de inclusão. A ideia, gente, com esse programa e com toda essa lista de dicas de convivência é que as pessoas reflitam, desconstruam e mudem o micro universo que existe à sua volta, se cada um fizer um pouquinho desse trabalho aqui a gente tem um conjunto de pessoas conscientes e trabalhando para mudar.

Oga: Então acho que um pouco do que a gente discutiu nesse bloco foi um pouco isso assim. Acho que todo mundo tendo do princípio que todo mundo entendeu essa necessidade de discutir esse problema eu acho que a gente pode focar nessa imagem do negro mais positiva, nessa imagem do negro que colaborou, faz parte e colabora e botou muita coisa interessante na cultura brasileira, na culinária brasileira, quer dizer, a gente não negar isso, a gente entender isso, entender como positivo, entender que a gente só vai ser uma nação mais completa, mais inteligente se a gente realmente esquecer esse mito da miscigenação e aceitar de verdade a diversidade né, eu acho que é o caminho, é o jeito da gente…

Ju: [interrompe] abraçar as nossas heranças , entender as nossas heranças, abraçar as nossas heranças, né, e fazer as pazes com o nosso passado pra que a gente possa ter um futuro, né? Eu achei muito legal quando eu tava falando sobre o mito da democracia racial falando que como uma verdade hoje ela é muito danosa porque ela nos impede de buscar ações reparativas, ela nos impede de enxergar o problema e agir sobre ele, mas como um ideal de futuro ele é muito poderoso. Então tudo o que a gente faz hoje é pra que a gente possa chegar nesse lugar, pra que a gente possa realmente… isso não ser uma questão pra que isso possa realmente ficar no passado a gente não que isso sempre seja presente, vamos abrir essa ferida [Xênia: Não é nada prazeroso falar disso, né] vamos falar, vamos lidar com o problema pra que a gente de fato não precise mais fazer isso, pra que de fato não seja mais uma questão, né? Pra que a gente possa se beneficiar da nossa história, pra que a gente possa, aquela coisa que a gente tava falando, olhar, crescer, aprender, mudar, se transformar e ser maior a partir disso, né.

Cris: Esperamos que os ouvintes nesses dois programas tenham refletido sobre o Dia da Consciência Negra, entendam porque a gente entende esse dia como importante. Esse programa não teria acontecido sem o Oga que foi de uma infinita paciência e entusiasmo. Oga muito obrigada, muito obrigada mesmo.

Ju: Obrigada, Oga.

[Sobe trilha]

[Desce trilha]

Ju: Vamos então pro Farol Aceso? E aí Cris, o que que cê vai indicar?

Cris: Só tem nós duas essa semana, amiga! Bom, eu vou ficar na pauta, vou indicar um especial que o YouTube promoveu agora em novembro, é a #youtubenegro, tá por todos os lugares, assistam os vídeos ali, a Natalie Neri, em especial, do Afros e Afins, ela recebeu muita gente e esteve em muito podcast. Ela é uma menina super jovem, muito bonita que tem uma conversa muito legal. E você Ju, o que que tem de bom?

Ju: Eu assisti o season finale do Westworld, a última série da HBO, que bateu recorde né, foi a série mais… a primeira temporada mais assistida da HBO. [Cris: Sério?] Foi! Cara, assim, eu vou falar pros mamileiros que talvez estejam com um pouco de preguiça, porque a série ela é um pouco arrastada, ela é um pouco lenta e no início ela pode irritar um pouco porque ela explica demais né, mas cara… cê achou também né? A Cris ta fazendo SIM. [Cris: Eu tô no terceiro né.], não, mas até o terceiro é custoso.

Cris: Não eu já tô assim ‘migo eu já entendi, e agora?’. Mas a premissa é muito boa.
Ju: É, mas assim, eles realmente desenvolvem bem assim. É uma série que começou a fazer a mesma coisa que Lost, a mesma coisa que Game of Thrones, é uma série que ela permite conversas, ela começa conversas. Então o episódio termina, você pode ir por café com o seu amigo no outro dia e passar 45 minutos falando o que você entendeu, o que que ele entendeu, por onde vocês acham que a série vai, enfim. É muito gostoso e a gente tá planejando fazer um episódio sobre a série, faz tempo que a gente não fala de filme e de série né. [Cris: Boa ideia, Juliana.] Só que pra gente fazer vocês tem que assistir

Cris: Ai né… senão vão começar a xingar a gente que a gente tá dando spoiler.

Ju: Então vamos dar um tempinho pra vocês, a gente vai ser legal, a gente não vai fazer durante o trem do hype, até porque o interesse do Mamilos não é pauta quente, é fazer análise. Então a ideia é que a gente traga aqui um neurocientista e um psiquiatra pra conversar sobre as temáticas da série. E, pra fechar, vocês sabem que eu tô em forte clima natalino, né? Eu adoro natal, adoro o clima natalino, enfim, e eu sugiro pra vocês um disquinho, um álbum que tem no Spotify, que eu acho que já indiquei no ano passado, mas muita gente chegou nesse meio do caminho, que chama “É Natal”. Todo ano a gente escuta assim 300 vezes por dia e a gente sabe todas as músicas e é um daqueles álbuns que quanto mais você escuta, melhor ele fica, pra entrar no clima né, gente? Tá custoso, tá difícil, foi um ano pesado, tá todo mundo muito cansado e acho que assim: põe uma luzinha na sua janela, canta uma musiquinha de natal, compra um presentinho, pensa na ceia, o natal tem coisas muitos legais que é da gente pensar no ano que foi, ser grato pelas pessoas que a gente tem, lembrar das pessoas que passaram, fazer rituais, fazer uma comida especial. Natal tem cheiro, natal tem cor, natal tem luz né, vamos apreciar o natal que a gente tá precisado.

Cris: Vamo nessa, então? Temos um programa?

Ju: Temos um ótimo programa.

Cris: Um segundo programa né, Ju, com essa experiência de dividir o conteúdo em dois.

Ju: Contem pra gente o que vocês acharam disso.

Cris: Botem na vitrolinha da família e a gente quer retorno, tá bom?

Ju: Beijo!

Cris: Beijo gente!

[Sobe trilha]