Transcrição - Mamilos 104: Síria, Torcidas organizadas e BBB • B9
Mamilos (Transcrição)

Transcrição - Mamilos 104: Síria, Torcidas organizadas e BBB

Capa - Transcrição - Mamilos 104: Síria, Torcidas organizadas e BBB

Jornalismo de peito aberto

Esse programa foi transcrito pela Mamilândia, grupo de transcrição do Mamilos

Programa transcrito por: Carla Rossi de Vargas, Luciana Machado, Carina Santiago, Tatiana Criscione, João Gentil, Camila Guimarães, Alan Bastos e Samuel Freire. Revisado por: Carla Rossi de Vargas.
Início da transcrição:

(Bloco 1) 0’ – 10’59”

[Vinheta de abertura]

Este podcast é apresentado por B9.com.br

[Trilha]

Ju: Mamileiros e mamiletes, chegou aquela hora gostosa da semana de conversar de peito aberto sobre os temas mais polêmicos! Eu sou a Ju Wallauer…

Cris: Eu sou a Cris Bartis.

Ju: E nesse cantinho gostoso das interwebs, não tem assunto que não possa ser discutido com muita empatia. Bora?

Cris: E tem beijo! Tem Beijo Para Natália Leite, feliz aniversário, obrigada por espalhar a palavra da polêmica!

Ju: Beijo pra Águas de Lindóia, em São Paulo.

Cris: Pra Belo Horizonte, Minas Gerais.

Ju: Pra Betim, em Minas Gerais.

Cris: Pra Natinha, que indica o Mamilos pra todo mundo.

Ju: Pra Ji-Paraná, em Rondônia.

Cris: Pra Toledo, no Paraná.

Ju: E um beijo pro Greg, o namorado da Carol.

Cris: E quem faz o Mamilos? Esse conteúdo gostoso é feito com amor e dedicação por uma equipe de voluntários. Quem faz a melhor edição do Brasil é o menino Caio Corraini.

Ju: Enquanto a Jaqueline Costa e sua equipe de pauteiros corre atrás de fatos e dados pra nos alimentar.

Cris: A nossa bailarina preferida, Lu Machado, junto com a Mamilândia, toda semana brilham demais transcrevendo o Mamilos pra [que] tudo que você escuta aqui esteja disponível também em leitura.

Ju: E finalmente, a Luanda Gurgel, o Guilherme Yano e a Luiza comandam a equipe de redes sociais, pra ajudar a conversa a continuar a semana toda. E, gente, essa semana esse time brilhou demaaaaais. Entre no facebook do Mamilos: A Luiza fez um teaser do último programa em vídeo! [Cris comemora] A gente sonha com isso há muito tempo. É um jeito legal demais de recomendar o Mamilos pros amigos. Corre lá e compartilha.

Cris: O mais legal desse vídeo é que não tem a nossa cara. [Risos] E vamo então pro Fala que eu Discuto.

[Sobe trilha]

[Desce trilha]

Cris: Vai lá no Facebook, toda semana a conversa continua com posts especiais. É facebook/mamilospod. Ah, o primeiro comentário é do Rodrigo Alves da Costa, que diz: “Concordando ou não com os todos os pontos apresentados, há de se admitir que ouvi uma conversa franca e educada sobre o tema. Um palco onde, ao mesmo tempo, os mais desfavorecidos foram lembrados sem que, no entanto, fosse desprezado o aspecto técnico-matemático necessário. Realçar a necessidade de seguridade social, mas pautada no realismo e com sustentabilidade nas contas públicas foi, a meu ver, ponto alto do programa.
Parabéns as meninas (posso chamá-las assim?) [Sempre!] e aos convidados. Fica a gostosa sensação de ter aprendido um pouquinho mais no caminho do busão!” Eu achei muito legal esse comentário aqui, que a Ju colocou, porque algumas pessoas falaram: “ai, não teve contraponto! Não teve gente que concordou e discordou.” E eu achei isso mágico, porque na verdade a Laura foi chamada porque ela é contra essa reforma.

Ju: E ela discordou bem. [Risos]

Cris: E o Márcio foi chamado porque ele é a favor dessa reforma. O que acontece é que como são dois profissionais técnicos e bem formados, nada mais natural do que eles concordarem em diversos pontos, porque eles tão partindo dos mesmo números; e as pessoas estão, eu acredito, mais acostumadas às pessoas discordarem o tempo todo. Então o fato deles proporem caminhos diferentes não quer dizer que eles não possam ter pontos em comum. E aí muitas pessoas falaram – eu ouvi, eu li um comentário falando: “parecia um discurso do governo” – sendo que, na verdade, a Laura é muito contra à reforma como ela tá sendo colocada. Então, gente…

Ju: [Interrompe] E ela fez vários questionamentos estruturais, né? Falar que a gente nem tem déficit é a primeira coisa; o programa abre com ela falando assim: “não existe déficit, existe investimento em seguridade social”. Assim, gente, se isso não é discordar, se isso não é uma questão fundamental, escuta de novo o programa.

Cris: Eu acho que a gente tá acostumado, quando as pessoas discordam, elas serem mais duras umas com as outras. E eles foram muito camaradas na discordância. A gentileza reinou, foi um programa muito fácil de conduzir. Então, gente, eu sugiro aí que sejam levantados os pontos, ou os argumentos sobre eles serem ou não a favor pra gente poder discutir mais na mesa a respeito.

Ju: Algumas vezes essa semana eu respondi comentários falando assim: “faça o exercício mamileiro de propor argumentos, contrapontos e opiniões complementares à discussão, reconhecendo o que você: a) concorda do que foi dito, primeiro. b) aprendeu com o que foi dito, ou seja, “primeiro: eu concordo que vocês falaram isso, isso e isso; B, eu aprendi absorvi isso, isso e isso; Porém, tenho para contribuir isso, isso e isso.” Esse é o objetivo de uma conversa mamileira. E jamais atacar as: pessoas! Isso a gente não faz aqui, amiguinhos! [Risos] A gente não faz! “Porque ele, como que ele pode dizer…” Essa brincadeira não é, não tem espaço aqui.

Cris: Vamos lá, tem coisa muito inteligente aqui sendo comentada. A Joana Borges, por exemplo, disse: “Nossa, estou ouvindo o programa com dor no coração, trabalhadores rurais estão muito ferrados, espero que alguma alteração seja feita para que eles não se prejudiquem tanto.”

Ju: É aí ó: não dá pra criticar, né? Pode sim! O Emerson Gomes disse: “Esclarecedor e tenho que admitir, me fez refletir muito, principalmente sobre a diferença de idade para cada gênero alcançar a aposentadoria. Parabéns por mais um excelente programa!”

Cris: O Twitter, segue a gente lá, é @mamilospod. O Antonio Amaral mandou uma sequência de tweets e parece até que você já tinha lido, olha só o que ele falou: “Moças concordo plenamente com muitas das coisas ditas no Cast. O ponto foi aquela última fala, que começa lá para 1:24:00, do Márcio me deixou bem incomodado, realmente é importante o Brasil começar a discutir as questões de trabalho a longo prazo. Porém o fato dele ter colocado isso como uma decisão individual me deixou estarrecido, pois essa decisão não é individual. O Brasil ainda tem uma taxa de formalização baixa. A população mais afetada pela reforma previdenciária, como dito no próprio cast é a que não é acomodada é a que trabalha em más condições. A que tem problemas graves de acesso a todos os serviços básicos. É a população que trabalha há 40 anos e não consegue se aposentar pois a formalização era ruim. O Brasil é muito amplo, você não pode formular seu pensamento com base em um setor mínimo da sociedade. O Brasil não é só uma classe média/alta. Meu pai trabalha há mais de 40 anos e não consegue se aposentar no atual sistema. Eu para cursar uma universidade pública e gratuita necessito de bolsas, senão não dá e a minha é a primeira geração a entrar em um curso superior na minha família. Sabe, meu ponto não é que a discussão inteira foi ruim. Pois ela não foi. Tem muitos pontos interessantes aí, exemplo: esclarecer a importância do social no nome da discussão, algo que eu nunca tinha me tocado, por exemplo. Porém, no final, entro no ponto de que eu sinto uma falta dessa visão mais por baixo do Brasil. O “Brasil real” é bem mais complicado. O Brasil real tem 1/3 da população que saiu da miséria extrema ontem! Eu adorei o Cast. Porém teve esse comentário do qual tenho uma impressão contrária, a discussão foi ótima. E gosto de momentos assim em que discordo da opinião de uma pessoa que tá ali, porém essa posição olhando de um certo ponto de vista faz sentido e é bem embasada. A riqueza do trabalho de vocês tá exatamente nisso. No bom embasamento da discussão.”

Ju: Bom, no site, a gente pinçou um dos comentários do site, se você quiser comentar, é só entrar no mamilos.b9.com.br, você encontra todos os programas que a gente já fez lá. O Karl Milla, o excelente Karl Milla, maravilhoso Karl Milla, um dos melhores comentadores da podosfera inteira, de todos os podcasts que existem, escreveu o seguinte comentário: “sendo pragmático, o melhor cenário para o Brasil é, para mim, a aprovação da dita cuja com o mínimo de emendas possível. Explico: se não aprovarmos alguma reforma agora, com um presidente interino, impopular e improvável candidato, não teremos uma nova chance tão cedo, com um presidente muito mais dependente da aprovação das urnas. E o ‘mínimo de emendas’ se justifica facilmente ao olharmos a composição do congresso. Tenho dificuldades em crer que alguma alteração feita pelo nosso legislativo atual tenha outro objetivo senão trazer algum privilégio ou regalia a algum grupo específico, reeditando os problemas atuais com novas distorções.”

Cris: O Adriano Br, também no site, disse: “Esse foi o episódio do dilúvio.”

Ju: Ah, porque chovia muito! Eu não tinha entendido. [Cris: chovia torrencialmente!] Chovia demais! De e-mails, se você quiser mandar um e-mail pra gente, a gente responde todos, um por um, pessoalmente, com muito carinho, com muito amor, é só escrever para [email protected]. Vou ler o e-mail do Pedro Cunha: “Eu sou militar do Exército e o nosso sistema de seguridade social é sim diferente da Previdência Social. Como, aliás, todo o nosso regime de trabalho durante toda a nossa carreira. O militar não tem direito a greve ou sindicalização, não podendo portanto reivindicar direitos como outras categorias. O regime de trabalho do militar tem uma dedicação diferente: ele está à disposição durante 24 horas por dia, sete dias por semana. Sem pagamento de hora extra, adicional noturno, risco de vida, periculosidade, NADA disso. Se o Comandante tem a necessidade e chama no fim de semana, você não pode não ir, não importando o motivo. Os serviços de escala que tiramos, de 24 horas de plantão no quartel, não são seguidos por descanso: há expediente normal no dia seguinte. O militar não pode se negar a cumprir a “missão” designada, seja ela no Haiti, no Complexo do Alemão, garantindo a realização das eleições e a segurança pública onde a polícia não consegue fazê-lo, patrulhando as fronteiras mais distantes desse enorme país, levando água no sertão do nordeste e em inúmeras outras missões para as quais a prontidão das Forças Armadas é necessária. Incluir as Forças Armadas “no mesmo saco” da Previdência significa também que os militares passariam a ter também todos os mesmos outros direitos dos trabalhadores, correto? Pois essa conta implicaria, no fim das contas, aumento de gastos para o erário. Só em hora extra e adicional noturno, iam fortunas TODOS OS DIAS. O General Villas Boas, homem muito inteligente e Comandante do Exército, recentemente em discurso bastante ponderado, colocou que é o momento do Brasil decidir que tipo de Forças Armadas quer ter. Cito um trecho: ‘Essa discussão deve ser mais aprofundada e não se restringir a uma questão numérica de simples redução de custos. Ela deve incluir, como questionamento, o que a sociedade deseja de seus cidadãos fardados: profissionais militares, com prontidão, motivação e dedicação exclusiva, ou milícias, cuja disponibilidade permanente à Nação ficaria limitada por direitos individuais regidos por legislação trabalhista.’”

[Trilha]

(Bloco 2) 11’ – 20’59”

Cris: Vamos então para o Trending Topics? Quem tá na mesa hoje?

Ju: Primeiro, nosso convidado especial, Kaique Dalapola, estagiário do R7, colaborador da Ponte Jornalismo.

Cris: E o Peu Araújo que é já nosso véio de guerra, amigo da casa, também jornalista, atualmente no R7, nas horas vagas também pai da Betina.

Ju: A gente falou também com o Guga Chacra, comentarista de política internacional no Estadão e na Globo News. Vamos então para o Giro de Notícias.

Cris: Vamos começar com a notícia de número 3: A Lista de Fachin. O ministro Edson Fachin, relator da Operação Lava Jato, autorizou a Procuradoria Geral da República [PGR] a investigar 8 ministros, 3 governadores, 24 senadores e 39 deputados. O grupo faz parte do total de 108 alvos dos 83 inquéritos criados com base nas delações dos 78 executivos do Grupo Odebrecht. Além dos nomes, vídeos das delações também foram liberados e neles é possível ver diversos depoimentos, como um do Sr. Emílio Odebrecht onde diz: “O que nós temos no Brasil não é um negócio de cinco, dez anos. Estamos falando de 30 anos atrás. Então tudo que está acontecendo era um negócio institucionalizado, era uma coisa normal, em função de todos esses números de partidos. Eles brigavam era por cargos? Não, era por um orçamento mais gordo. Ali os partidos colocavam seus mandatários com a finalidade de arrecadar recursos para o partido, para os políticos. Há 30 anos que se faz isso.”

Ju: Número 2: O show de horror no voo da United. No primeiro momento, o presidente da United Airlines, Oscar Munoz, defendeu o comportamento de sua tripulação e da segurança do aeroporto na brutal retirada de um passageiro, segunda-feira. Quando a repercussão via redes se mostrou terrível e as ações da empresa despencaram no mercado, ele voltou atrás. “Ninguém deveria ser tratado daquele jeito.” O médico David Dao, retirado após ser escolhido aleatoriamente para ceder lugar a um funcionário da companhia aérea, tem 69 anos e foi ferido pelos seguranças. Após o incidente, as redes sociais americanas começaram a questionar duramente a prática do overbooking pelas empresas.

Cris: Número 1: A qualidade do debate político atual. O problema começou quando o secretário da pasta da educação da prefeitura de São Paulo, Alexandre Schneider, criticou a visita de Fernando Holiday (DEM), vereador e integrante do MBL, a uma escola municipal para “verificar se estava havendo doutrinação ideológica por parte de professores”. O secretário disse: “o vereador exacerbou suas funções e não pode usar de seu mandato para intimidar professores’, escreveu Schneider em uma rede social, o que provocou uma forte reação dos apoiadores do MBL, algumas delas agressivas com montagens de fotos do secretário. Em meio à polêmica, o vereador Holiday aproveitou para protocolar o projeto de lei “Escola sem Partido”, que, em linhas gerais, busca restringir opiniões políticas e religiosas de professores em sala de aula. O secretário, radicalmente contra essa ideia, esperava algum sinal de defesa da prefeitura, o que não aconteceu publicamente. Ele acabou pedindo demissão mas Doria o convenceu a ficar e sugeriu que Holiday procure diálogo com a prefeitura antes de sair publicando vídeos.

Ju: A gente tem uma preocupação quando a gente vai montar a pauta do pra tentar não ficar centralizado nas coisas que fazem muito barulho em São Paulo e que talvez não reverbere no resto do país, mas eu acho que esse tema se justifica no Giro de Notícias porque ele mostra um tendência extremamente perigosa e a gente tá se preparando para uma próxima eleição. O tipo de coação que as redes sociais do MBL fizeram com o Schneider foi um troço bizarro. Procurem, se informem, vão ver e eu acho que a gente tem tempo pra tentar pensar coletivamente como é que a gente vai se organizar pra filtrar, pra impedir o impacto desse tipo de coisa, pra responder à isso, como é que a gente vai reagir à essa barbárie; porque a gente fala bastante no que uma democracia é tão boa quanto a qualidade das informações que o cidadão tem pra decidir. Se democracia é escolha da maioria, só existe escolha quando você tem informação para poder decidir. O que essa galera tá querendo fazer e tá fazendo com muita eficiência é produzir um ruído tão grande que você não consegue chegar na verdade, você não consegue ter uma noção do que tá realmente acontecendo. Então assim, vamos pensar, vamos ficar atentos, vamos prestar atenção e vamos ter estratégia, a gente tá muito…
[Cris: Vulnerável a esse tipo de ação.] Vulnerável e muito passivo, sabe? Porque a gente tá vendo isso acontecer, a gente sabe o tamanho do dano e a gente só fica criticando dentro das nossas redes falando: “cê viu que que eles fizeram? Que horror! Abjeto isso.” E nada acontece, nada se faz, não há uma solução pra isso, não há um contra movimento, não há uma resposta. Gente, vamos pensar! A eleição é daqui a um ano e pouco e a gente precisa fazer alguma coisa. No mundo inteiro tem esse problema, não é um problema no Brasil, né…

Cris: è o cuidado com quem você tá apoiando. Vamos então para o Trending Topics.

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Caio: Olá personas, Caio Corraini aqui, editor do programa. Vocês sentiram saudade? Porque eu senti. Então, durante a gravação, que já estava gigantesca, a gente acabou esquecendo de puxar o gancho do primeiro Trending Topic, então eu vou fazer isso para vocês agora. Qual é o fato? Ataque na Síria mata 84 pessoas e deixa 546 feridas. Há fortes suspeitas de ter sido usado gás sarin no ataque, porém não há confirmação por parte da OMS, uma vez que nenhum agente da organização participou das necrópsias. Ativistas acusam o regime de Assad pelo ataque, enquanto o governo sírio refuta e alega que a ação responsável por matar civis partiu dos rebeldes. O governo russo, que apoia Assad, chegou a emitir nota através de seu Ministro da Defesa, informando que a nuvem de sarin se deu devido a um ataque aéreo do governo sírio a armazéns rebeldes que estocavam grandes quantidades do material tóxico, que seria enviado regularmente ao Iraque. Uma explicação sem sentido: gás sarin é uma arma binária: dois componentes que sao armazenados em compartimentos separados de um dispositivo (geralmente uma bomba) e no momento do lançamento se misturam, gerando o agente ativo. Dificilmente dois componentes de um sistema binário seriam armazenados em um mesmo paiol, e ainda que acontecesse, ao se explodir o paiol não seria possível permitir a reação dos elementos químicos. O governo de Assad fez uso de gás sarin em 2013, ataque que motivou Barack Obama ordenar ataques a alvos militares no país. Os ataques apenas cessaram após intervenção de Putin, que propôs que a Síria abrisse mão voluntariamente de seus estoques de armas químicas. Em 2014, a administração Obama declarou que os estoques do governo sírio de armas químicas havia sido reduzido a zero. Com a nova tragédia síria, parlamentares republicanos contestaram essa afirmativa, alegando que o governo Sírio nunca abriu mão de seu arsenal. Mesmo com as incertezas sobre de onde partiu o ataque, o atual governo americano já autorizou retaliação aérea à Síria.

–//–

Ju: Guga, quando leio as notícias da última semana e tenho a sensação de jogo de War, de que as peças se mexeram no tabuleiro. Primeiro eu acho legal a gente apresentar quem é que tá jogando, quem são os jogadores?

Guga: Olha, eu acho que os jogadores hoje, internamente na Síria, sem dúvida, o regime do Bashar Al-Assad, grupos rebeldes e quando fala de rebeldes tem que lembrar que são múltiplos grupos, centenas de grupos rebeldes dos quais os mais fortes seriam a antiga Frente Nusra, hoje a Frente Conquista do Levante, que é basicamente a Al-Qaeda na Síria, o Jund al Aqsa, Fateh al Sham, são esses grupos que são todos grupos super extremistas. Há grupos moderados sim, só que eles se enfraqueceram no decorrer da guerra civil e acabaram perdendo muito espaço para esses jihadistas, então o regime do Assad que controla ali os principais centros populacionais da Síria – Damasco, Homs, Hama, Costa Mediterrânea, Tartus que unificou Aleppo, né, no final do ano passado – então controla todas as grandes cidades sírias, enquanto os rebeldes hoje têm nas mãos a província de Idlib que fica ali na fronteira com a Turquia. Além deles você tem os grupos curdos e aliados de algumas facções árabes que operam na fronteira com a Turquia, dentre esses o mais forte é o YPG que é uma facção curda ligada ao PKK, que é um grupo curdo considerado terrorista pela Turquia e esses curdos do YPG são apoiados pelos Estados Unidos; aí há um conflito entre a posição americana e a turca. E além deles, claro, tem o grupo Estado Islâmico que está ali em Raqqa já em direção à fronteira com o Iraque, então esses são os atores internos. Os atores externos são muitos: tem o governo dos Estados Unidos, o governo Russo, o governo do Irã, o governo da Arábia Saudita (dos países do golfo como um todo) e a Turquia, além de outras milícias internas, claro, como o Hezbollah sendo a mais forte. Apoiando o regime a Rússia, o Irã e o Hezbollah, de uma certa forma o governo Iraquiano que o interesse do governo Iraquiano é aliado dos Estados Unidos mas é aliado do regime do Assad também, do Irã, claro, aí você tem apoiando os rebeldes acima de tudo a Turquia e os países do Golfo e, em escala muuuuito menor, os Estados Unidos, apoiando os curdos acima de tudo os Estado Unidos, e apoiando o grupo Estado Islâmico ninguém, nesse momento.

(Bloco 3) 21’ – 30’59”

Ju: É, então aí que a gente começa a entrar um pouco mais nessa bagunça, que assim: tem muita, muita gente envolvida nessa briga. Esse tabuleiro tá um pouco… superlotado. E são muitos conflitos de interesse. Qual o interesse de cada um desses grupos?

Guga: Olha, o regime do Bashar Al-Assad é de estabelecer a Síria como a Síria era antes de 2011. Basicamente é uma ditadura de viés laico, né, sem ideologia religiosa, então era aquela Síria anterior, né, uma Síria arabista com os moldes de ditadura muito similar até à que a gente tinha na América Latina, mas colocando no contexto, similar à ditadura que era do Hosni Mubarak no Egito ou até a ditadura Al-Sissi no Egito hoje, uma ditadura laica, não religiosa. O objetivo dos rebeldes (quando falo dos rebeldes são os principais grupos rebeldes)
é ter uma Síria, derrotar o regime do Bashar Al-Assad e ter uma Síria mais religiosa, mais nos moldes de uma Arábia Saudita com lei da sharia, com uma coisa bem mais conservadora e restringindo o direito de minorias religiosas como os cristãos e os alaoítas, por exemplo.

Ju: Não tem nenhum rebelde que busca democracia?

Guga: Tem rebeldes moderados sim, mas eles são muito fracos. Muito difícil deles ganharem. Você tem, continuando nesse contexto, você tem fora da Síria, opositores como Ghassan Hitto, George Sabra, Muaz al-Khatib, você tem líderes políticos que são a favor da democracia, como aqueles grupos da oposição no exílio. O problema é que eles não tem força interna na Síria porque eles não estão lutando na Síria. Claro que os rebeldes que estão lutando ali não vão aceitar a chegada deles ao poder. Eles poderiam chegar ao poder dentro de uma transição junto com o regime do Bashar Al-Assad, que é o grande plano geral pra encerrar o conflito. Então, existem essas pessoas. E dentro da Síria você ainda tem também em Damasco, algumas figuras que são opositoras do regime do Assad que seriam um advogado, uma coisa assim, figuras como Michel Kilo, mas eles também não têm muita força interna, não bateram de frente com o regime. Então você tem essas figuras, sim, que são pró-democracia, mas eles não tem uma força muito grande. Os do exílio dependem de negociação com Assad.

Ju: E se você tiver, por exemplo, essa solução que o Ocidente espera uma transição então do Bashar Al-Assad para um governo democrático? Ainda que você tivesse isso, você não resolveria o conflito, já que a oposição, os rebeldes não são em relação ao regime, mas sim em relação à questão de orientação religiosa do regime. Ou seja, ninguém tá reclamando que é uma ditadura, pode continuar sendo uma ditadura, eles querem trocar o tipo de ditadura.

Guga: Eles reclamam que é uma ditadura, mas no lugar vão colocar um regime que talvez seja travestido de democracia, como a irmandade muçulmana no Egito, mas que não vai ser genuinamente democrático. Isso não vai ser. Pra ficar claro, não vai ter democracia na Síria, isso não vai acontecer nem com negociação, assim, não vai ter democracia na Síria. A guerra tá muito longe de acabar. Pode ser que tenha daqui a dez anos mas existem experiências fracassadas no Egito, que é um país muito mais simples do que a Síria, ou no Iraque que é bem similar à Síria em uma série de fatores. A gente observa que a democracia não funciona no Iraque, mas é mais democrático do que era o Iraque no Saddam Hussein. Então tem esses dois lados. Talvez seja mais democrático do que a Síria com o Assad hoje. Mas é uma coisa muito mais pra frente. Agora voltando aos atores, só pra complementar, você tem os curdos que querem basicamente o estabelecimento de uma federação que eles tenham uma independência similar ao Curdistão iraquiano e eles não têm problema com o regime do Assad e nem o Assad tem problema com ele. O Assad inclusive os usa pra provocar a Turquia. E o grupo Estado Islâmico, claro, que é aquele ideia do califado em todo o mundo islâmico. Então são esses os objetivos internos nesse momento. Do objetivo externo a Rússia quer a manutenção do regime Bashar al-Assad, o Irã também, o Hezbollah também.

Ju: Por que, qual é o interesse?

Guga: Aí são interesses diferentes. Bom, no caso do Irão e do Hezbollah, é porque o Assad é fundamental pra eles, num outro conflito contra Israel porque a Síria é uma aliada e também porque a Síria passa pra chegar ao Hezbollah, embora ideologicamente sejam totalmente distintos. A Síria é uma ditadura laica enquanto o Irã é um regime islâmico xiita. São bem distintos os dois regimes, o do Assad e o regime iraniano. O governo do Assad… quando eu ia à Síria, por exemplo, eu entrevistei uma vez o ministro da época, de informação de Osama Bin Laden, tomando whisky na entrevista durante o Ramadã. É algo inimaginável de se acontecer no Irã. Então ali você vê bem a diferença. A mulher do Bashar al-Assad nunca cobriu a cabeça, não cobre a cabeça de forma alguma, é uma mulher que cresceu em Londres, estudou no King’s College, anda de all star e calça jeans, trabalhou no J.P Morgan, foi aceita na Harvard Business School, tipo, imagina… No Irãs as mulheres estudam e tem uma elite sofisticada, mas nenhuma que tem o perfil da Asma. As meninas do Irã… tem aquelas baladas, mas na Síria é legalizado balada. Tem as boates em Damasco, em Aleppo, rave, então você tem essas coisas na Síria que você não vai ver abertamente no Irã, embora tenha clandestinamente. Mas o regime iraniano não aceita o regime do Assad. Antes da guerra tinha até uma certa tolerância com algumas drogas, o homossexualismo [homossexualidade] era crime, mas era aceito. Ainda é nas áreas controladas pelo Assad porque ninguém fala nada, embora na lei proíba. Enfim, tem várias diferenças nesse sentido, mas o Assad é visto como aliado.

Ju: Tá. “Meu Malvado favorito”.

Guga: É… Agora, no caso da Rússia, são vários fatores. Desde a época do Hafez, no começo dos anos 70, a Síria é um cliente russo, um cliente de compra de armas, é um aliado russo, uma zona de influência primeiro soviética, posteriormente russa, é o único lugar que a Rússia tem uma base militar literalmente, no Mar Mediterrâneo, então é fundamental pra Rússia nesse sentido a Síria. Há também muitos laços culturais entre a Síria e a Rússia, a começar pelo cristianismo ortodoxo, mas a maior parte dos cristãos da Síria é cristão grego ortodoxo, a Rússia é uma nação cristã grega ortodoxa, os cristãos gregos ortodoxos, os líderes religiosos grego-ortodoxos apoiam o regime do Assad lá na Síria, o patriarca russo esteve na Síria, se encontrou com Assad pra declarar apoio, então tem essa ligação pelo cristianismo, muitos filhos historicamente estudam na Rússia, também como brasileiros vêm pros EUA. A Rússia é um país que [onde] os filhos vão estudar, embora o Bashar, especificamente, tenha ido pra Inglaterra fazer a residência em oftalmologia, mas os filhos vão mais pra Rússia, então também tem isso e a Rússia tem uma visão ideológica do Oriente Médio de que líderes fortes laicos são melhores. Então, Sissi no Egito, por exemplo, e Bashar na Síria seriam esses exemplos; ou antes da queda, o Mubarak, no Egito, e Ben Ali, eles avaliam que foi um grande erro dos EUA deixar o Mubarak cair do poder. Então é uma coisa meio realista da Rússia, que teme muito o extremismo islâmico sunita, que eles enfrentaram na Chechênia e no Daguestão, e que eles vêem o Assad, que é muçulmano alauíta, mas isso não é o caso, que ele tem muita gente no governo dele que é sunita, só que são moderados, ele viu o Assad na luta contra esse radicalismo religioso. E daí pra completar, tem o outro lado, quem apoia quem…só pra não prolongar muito, os países do Golfo sempre viram o Assad com muita resistência, que é um inimigo, um adversário, uma figura laica e que é aliado do Irã. A principal questão é a aliança com o Irã, no caso do Assad. Se o Assad não fosse aliado do Irã não teria tanto problema assim como Sissi não tem tanto… Sissi é mais religioso que o Assad, mas é uma liderança laica de qualquer forma. Então a principal questão deles é a aliança com o Irã. A Turquia não, a Turquia era aliada do Assad, era a maior parceira do Assad até o início da guerra civil, só que daí o Erdogan fez uma aposta diferente, apostou que a oposição derrubaria o Assad, transformou o Assad num inimigo, fez um cálculo errado, totalmente errado, nesse sentido de achar que o Assad cairia facilmente e se tornou um inimigo dele da Turquia e ele se irrita muito com a questão dos curdos na fronteira da Turquia e ele acha que o Assad apoia esses curdos pra sabotar. Mais uma coisa interessante que os EUA, que são aliados da Turquia – porque é membro da OTAN – os EUA apoiam esses mesmos curdos que têm uma certa parceria com o Assad de manter a neutralidade, apoiam esses curdos na luta contra o grupo Estado Islâmico. O foco dos EUA, mesmo no governo Obama, sempre foi combater o grupo Estado Islâmico. No governo Obama eles armaram rebeldes pra lutar contra o Assad, só que aos poucos eles perceberam que não tava dando certo, visto a radicalização de muitos rebeldes na Síria, que inicialmente não eram jihadistas, pra ficar claro. Inicialmente eram milícias que buscavam sim lutar contra uma ditadura. Houve uma mudança ao longo da guerra civil e hoje, depois da semana passada, os EUA passaram a colocar na agenda, talvez, também dizendo que o Assad não teria lugar no futuro da Síria. Mas não há uma estratégia clara dos EUA que vai querer remover o Assad ou não. Aparentemente a única mudança foi deixar clara que o uso de armas químicas que segundo os EUA foi feito pelo Assad, não será mais tolerado. Mas fora disso, eles não fizeram mais nada. Então parece que o Assad pode prosseguir com a guerra dele, mas não tá claro qual vai ser a performance do Trump.

Ju: É isso que eu queria falar. Porque assim, o primeiro ponto de dúvida, de polêmica em relação ao que aconteceu semana passada, é que não existe nem a confirmação (porque a ONU não fez a autópsia dos corpos) pra confirmar que foi sarin e não se sabe quem que jogou. Se foram os rebeldes, se foi o governo, isso não está comprovado, certo?

(Bloco 4) 31’ – 40’59”

Guga: Certo. O que já se sabe, assim, os Estados Unidos dizem, tem a informação de Inteligência de que foi a Síria pelo regime do Bashar al-Assad que teria bombardeado com arma química Khan Sheikhoun, que é a cidade que foi bombardeada, a vila, né, ali na província de Idlib. E a Turquia diz que teria sido gás sarin. A Rússia, a gente já sabe que a Rússia já diz que não teria sido isso, que na verdade o Assad teria bombardeado um armazém de armas químicas da própria oposição, o Assad nega que teria bombardeado. Assim, a gente tem várias versões, é muito complicado. Até versões alternativas que deveriam ser observadas, por exemplo de o Assad não ter dado a ordem, mas o regime ter bombardeado com arma química. Porque também, o que mostraria que talvez o Assad não tivesse todo esse controle. A gente também tem que observar a lógica. Não era lógico que o Assad… por mais que a gente veja análise, eu vi muita tentando ver uma lógica que o Assad usou porque é mais fácil pra conquistar Aleppo… isso não é verdade. O Assad não usou arma química pra reconquistar Aleppo, que é muito mais fácil tomar uma vila minúscula que é a província de Idlib. Aleppo era muito mais complicada, era metade da cidade. Era metade não, mais que a metade, basicamente uma cidade controlada, que seria a zona sul do Rio de Janeiro, enquanto a oposição controlava toda a Baixada Fluminense, Zona Norte, Zona Oeste. Então, a reconquista de Aleppo que é uma cidade grande, era muito mais difícil, e ele reconquistou com armas convencionais, na qual ele matou cem milhares de civis. Está claro isso daí, que as pessoas parecem se importar muito com isso, menos com as mortes convencionais. Pra quê que ele usaria armas químicas, se com armas convencionais não reclamaram tanto, ele não sofreu bombardeio, ele não sofreu nada? Essa é uma pergunta que tem que se fazer. Por que que a Rússia que gastou, que está gastando bilhões e toda a reputação dela, permitiria que o Assad fizesse uma coisa dessa? Ou o Irã, que fez o acordo nuclear com os Estados Unidos? Faz questão de dizer que não quer arma de destruição em massa, enfim. Até quer, mas enfim, faz isso, aceitaria isso do Assad. O Hezbollah, que perdeu milhares de membros pra lutar contra a oposição na Síria, lembre-se, poderia usar na luta que eles têm lá contra Israel, vai aceitar um negócio desse? Então, pela lógica não teria. Só que ao mesmo tempo, por que que o governo Trump (a outra lógica, né) acusaria… o governo Trump não, o serviço de inteligência americano, que muitos não gostam do Trump, acusariam o regime do Bashar al-Assad de ter feito esse ataque? A troco do quê que eles teriam feito isso? Também não tem muita lógica. O Assad não é prioridade dos Estados Unidos, então por que que eles inventariam? Aparentemente, eles têm informações de que teria sido o regime, então, é algo, que olha… é tudo muito estranho. Então, o que a gente sabe, é que é tudo muito estranho, e que os Estados Unidos fazem essa acusação, por meio do seu serviço de inteligência e outros países do Ocidente também…

Ju: Mas não tem uma terceira possibilidade, que fossem os rebeldes que tivessem usado pra creditar o ataque ao Bashar al-Assad e diminuir o apoio internacional a ele?

Guga: Isso teria lógica também no sentido de eles fazerem isso, especialmente depois que o governo Trump tava deixando claro que não se importava com o Assad, tem lógica nisso. Agora, por que que os Estados Unidos cairiam nessa armadilha deles? Pra mim, se eles montassem tudo isso, talvez, eles descobrissem, seria até pior pros rebeldes, então pode ter acontecido, eu não descarto nenhuma possibilidade nesse momento, do que tenha sido. Eu acho que o Trump genuinamente acredita que foi o regime do Bashar al-Assad.

Ju: Então, mas Guga, a questão é: se tem tantas dúvidas, não foi precipitada a atitude de já bombardear? Em face de que não se tem informação?

Guga: Pode ter sido precipitada, mas pela lógica, daí pensando como o Trump, pra ele, faz sentido. Porque vê como mudou completamente a narrativa aqui nos Estados Unidos: Trump fantoche do Putin, agora o Trump adversário do Putin. As investigações que o FBI e o congresso fazem, só se falava disso, ninguém quase comenta mais, perderam totalmente a força. Segundo ponto: o Trump se fortaleceu com establishment de política externa, não digo só republicano, republicano e democrata. A Hillary concorda com essa ação dele, então isso também o fortaleceu. Terceiro: ele mostrou uma posição ali americana que vale pra outras questões internacionais como da Coreia do Norte. Então, nesse sentido um bombardeio isolado ali, que também não afetou a direção da guerra civil da Síria na prática; a base já tá dando pra ser usada, pro Trump tem total lógica ter feito esse ataque. Não tem muita lógica é o que aconteceu não do Trump, mas de alguns membros do governo dele, especialmente… Tillerson menos, mas os ataques que eles fizeram um pouco vocalmente à Rússia. O Trump mantém os ataques ao Bashar.

Ju: Mas eu não entendo isso diante da postura dele durante a corrida presidencial. Porque qual era o grande discurso dele: a gente tá drenando os nossos recursos e a nossa população numa briga que não é nossa, a gente tem problemas nossos pra resolver. Então um dos grandes motes da campanha dele foi “America First”, que inclusive gerou todas aquelas brincadeiras de, dos outros países fazendo vídeo dizendo, tudo bem você dizer “American First”, eu quero ser o “second”. Se você me deixar ser o ”second”, eu já to bem feliz. Então, essa nova postura dele, embora faça sentido pra se defender dos ataques que inviabilizariam, cancelariam a eleição por interferência externa, que era uma conversa que se estava tendo, embora faça sentido pra responder isso, não faz sentido pelo posicionamento que ele teve, que as pessoas elegeram ele por um posicionamento de não se meter mais em brigas que não são dos Estados Unidos. Então assim, apesar de ser controverso, entre republicano e democrata, nessa eleição, a candidata democrata, ela era mais pró-guerra do que o candidato republicano, nessa situação esdrúxula que foram as últimas eleições. Nesse sentido, ele ter uma posição intervencionista, em que não só ele age, dizendo que, quando a promessa era ele não agir, mas ele age num momento em que A) não tem nem certeza do que ele tá fazendo e B) não tem consequência, não vai resolver nada. Isso não deixa ele numa posição delicada em relação aos eleitores? Ao público, né?

Guga: Deixou o Trump super, numa situação delicada com a base dele, a base nacionalista, que votou nele, né, que concordo, mais isolacionista, e que foi quem colocou o Trump, que fez o Trump ganhar as primárias, sem dúvida alguma, foram fundamentais, e nas eleições foram as pessoas que mais o apoiaram. E que, na Casa Branca, é a ala de Steve Bannon. Porém, que tinham o Michael Flynn, que era o assessor de segurança nacional dele, que caiu até com a ligação com a Rússia. O que aconteceu – isso foi muito rápido, nas últimas duas semanas, três semanas – a ala do Steve Bannon perdeu muita força porque o Bannon começou a bater de frente com o genro, com o Kushner, que é o genro do Trump, que é uma pessoa que é mais internacionalista, né, mais próxima ao establishment, inclusive era democrata, e também por outras figuras do governo ali ligadas a Wall Street, que não concordam com essa visão nacionalista de mundo, não só na questão de política externa, mas em outros pontos também, de política comercial. Por exemplo, o Trump passou a campanha dizendo que a Rússia era manipuladora do câmbio, pra agora dizer que não, não vai classificar mais a China como manipuladora do câmbio, voltando atrás nessa questão também. De duas semanas pra cá, houve uma mudança completa em muitos temas do Trump, e um deles é justamente a Rússia e essa questão que ele era isolacionista, pregava isolacionismo completamente, e agora passou a ter uma postura mais similar à própria Hillary Clinton, que daí não entra tanto, exatamente como você falou, de democratas e republicanos, e sim visões de mundo e de política externa diferentes. E ele concorda com a Hillary Clinton, mesmo o John McCain; não totalmente. Assim, ele tá mais próximo do establishment, isso aumentou o respeito dele dentro do establishment, sem dúvida, mas tá fazendo ele ser ultra criticado pela base dele. Isso traz muitos riscos, especialmente se o Steve Bannon for afastado do governo. Ele já foi retirado do Conselho de Segurança Nacional, e se ele for retirado do governo, a gente pode ver daqui a pouco a base dele começar a se voltar contra ele. Talvez ele amenize essa questão com a política de imigração dele, que vai ser muito dura aqui nos Estados Unidos. Então ele dá uma guinada em política externa, mas continua bem duro na imigração, então isso talvez ocorra. Talvez ele dê uma guinada em alguns pontos em política comercial, mas mantenha um protecionismo em outras, um discurso protecionista em algumas outras questões, acho que talvez ele ainda vá pra aí, mas é completamente imprevisível, o Trump… essa guinada que ele deu na Rússia. Algumas pessoas falavam que em algum momento haveria atrito, entre ele e a Rússia, porque claramente há interesses que são distintos entre os dois países, mesmo entre ele e o Putin. Mas ninguém imaginava que fosse ser uma guinada tão radical dessa forma, foi muito de repente, chama muito a atenção, o que até assusta pela imprevisibilidade dele. Outra coisa que assusta, é que algumas pessoas vêm com medo, é que ele observou como as críticas a ele diminuíram depois de um bombardeio, né? No geral, assim. E isso pode levá-lo a pensar, que “opa, funciona”, né? Agora, uma coisa é um bombardeio isolado, similar ao que o Reagan também tinha feito contra os Kadafi nos anos 80.

Ju: O Obama mesmo fez também, né? O Obama agiu na Síria em relação… só quando houve uso de arma química, então assim, é a mesma coisa: “Eu não vou interferir no conflito, mas existe um limite. Arma química não é pra usar. Usou arma química, bombardeia.”

(Bloco 5) 41’ – 50’59”

Guga: O Obama não chegou a bombardear, né? Ele queria bombardear mas na época ele queria autorização do Congresso, os republicanos na época deixaram claro que não dariam a autorização e alguns democratas também, ele viu que ia perder, o parlamento britânico também votou contra e aí o Lavroga apareceu com aquela proposta né, o chanceler russo, pro Ker da Síria entregar as armas químicas e o Obama achou uma alternativa melhor, ele entrou pra bombardear daí no caso do grupo Estado Islâmico sem falar também que ele retirou o Kadafi do poder, né? Ele fez uma mudança de regime com bombardeios na Líbia né, além dos bombardeios de drones na Somália, Iêmen e no Paquistão. Então ele fez esses bombardeios e os bombardeios no Iraque também no grupo Estado Islâmico.

Ju: Bom, e quais são os próximos passos desse jogo que você enxerga? Como é que cada player vai pressionar? Você acredita que o Trump encerrou a sua participação, ele fez essa incursão e nao vai mais se meter ou esse resultado que ele teve em termos de apoio público de crescer na avaliação do establishment incentiva ele a ter novas incursões, a ter novas intervenções nesse conflito?

Guga: Eu acho que o Trump vai observar o que vai ocorrer na Síria, por enquanto ele pára com isso e talvez faça ou continue com pressão diplomática se voltar a ter diálogo talvez ele dê um pouco mais de suporte para os líderes opositores no exílio, mas enquanto isso ele vai continuar focado em combater o grupo Estado Islâmico, se o Assad, surgir mais uma informação de que o Assad teria usado armas químicas segundo a inteligência americana ele talvez volte a agir, mas acho que por enquanto agora ele vai deixar nisso observando o que vai acontecer na Síria. A Rússia vai seguir apoiando o Bashar, o Irã também vai seguir apoiando o Bashar, o Bashar vai seguir lutando contra a oposição, os rebeldes vão seguir lutando contra ele e isso vai prosseguir e a luta vai continuar concentrada em Idlib, talvez em alguns outros momentos chegue em outras áreas da Síria, mas eu acho que o foco aqui dos Estados Unidos vai ser sem dúvida alguma continuar no combate ao grupo Estado Islâmico porque seria uma tremenda vitória pro Trump e é possível derrotar o grupo Estado Islâmico e uma vez derrotado o grupo Estado Islâmico – derrota territorial né, porque é capaz de dois dias depois ter um atentado em algum lugar do mundo – mas ele pode vender que não tem mais território ganhar em Mossul e depois em Raqqah, é uma tremenda vitória e aí depois ele pode observar o que vai se fazer na Síria, mas uma vez ganhando aí, estabelecendo uma zona de influência americana fica tudo mais, não mais simples né, mas o Trump fica numa posição mais forte.

Ju: E no meio de tudo isso tá a população que quer sendo – independente de quem a gente atribui o ataque – são eles que indiscutivelmente estão sofrendo o ataque. Esse bombardeio, embora ele tenha tido alvo militar, ele feriu civis também, né?

Guga: Feriu alguns civis, aliás é importante frisar que nesta quinta-feira os Estados Unidos matou num bombardeio, os próprios Estados Unidos admitiram, que bombardeou sem querer 18 rebeldes treinados pelos Estados Unidos, aliados americanos, que lutam contra o grupo estado islâmico e todos morreram. Eles também bombardearam um prédio que tinham civis fugindo do grupo Estado Islâmico, morreram mais de 40, então isso já aconteceu, então isso tudo acontece. A população da Síria dividiria assim: nas áreas controladas pelo Assad elas têm uma vida normal dentro do limite porque elas não tão sendo alvo de bombardeio, visto que tão em áreas do regime, mas quem vive nas áreas do rebelde são alvos de bombardeios e também muitas vezes eles não concordam com os rebeldes, não concordam com o regime e são prisioneiros dessa situação. Alguns fogem pra área do regime outros fogem como refugiados e muita gente tá na área do regime e nao quer ficar lá e também vai embora como refugiado, né? Você tem daí continua esse movimento muito grande, mas é importante frisar que a guerra ainda nao chegou nos principais bastiões do regime, se tivesse chegado, o número de refugiados seria ainda maior.

Ju: E a gente não tem nenhuma previsão de solução do conflito, uma vez que nenhum dos lados tem força suficiente pra uma vitória definitiva.

Guga: É que nem falar como solucionar a criminalidade no Brasil. Assim, não tem, a guerra da Síria não tem solução no médio, curto/médio prazo, talvez não tenha no longo, pra guerra civil é um período curto, por enquanto – seis anos – o Afeganistão tá na prática desde o início dos anos 80 com a invasão soviética, depois a luta do Taleban contra o regime, o regime do Taleban, a entrada americana em 2001, tudo continua, então cê vê quantos anos, já são quase 36 anos. A guerra civil do Líbano foram 15 anos, a guerra civil da Colômbia, 50. Então cê começa observar Sri Lanka, guerras civis duram muito tempo. Algumas duram menos, mas é comum durarem bastante tempo. O Iraque, na prática, tá em guerra civil também desde 2003. Então, assim, teve momentos que pararam os conflitos no Iraque. Então cê tem essas situações que são bem complicadas, então pode acontecer muita coisa ainda na Síria. Então é uma guerra que aparentemente estava diminuindo de intensidade, mas talvez volte a crescer em intensidade. Tava diminuindo porque aparentemente o Assad vinha ganhando turco na unificação de Aleppo, tudo, mas mudou, então vamos ver como vai ficar agora.

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Ju: Vamos então pro Trending Topics número 2, falar de torcidas organizadas e de violência no futebol. Música, festa, a pressão que define um clássico e a certeza de apoio nos jogos sem qualquer glamour. Brigas, confusões, ameaças, morte. Apaixonados. Bandidos. Loucos. Fanáticos. Falar de torcida organizada é transitar entre extremos. O Peu e Kaique fizeram uma reportagem profunda e complexa, ouvindo todos os atores do conflito e vão conversar com a gente pra contar um pouco da origem das torcidas organizadas em São Paulo, a relação delas com o crime organizado, a importância para o futebol e a formação de jovens e sua responsabilidade pela violência nos estádios ou fora deles, em dia de jogo.

Peu: A gente fez um texto bem crítico assim com relação aos clubes, porque nós tentamos entrar em contato com o Corinthians, o Palmeiras, Santos e São Paulo e nenhum dos clubes nos respondeu, nenhum dos clubes…

Cris: [Interrompe] Eles não reconhecem?

Peu: … se prestou a colocar porta voz, um diretor, alguem pra falar sobre. Há uma relação inevitável da torcida com o clube; não tem como falar que não há relação. A torcida só existe porque existe o clube, mas pros times de São Paulo, pelo menos, que a gente falou nesse momento, você tem uma delicadeza para lidar com isso, não dá pro clube virar e falar: “nós apoiamos nossa torcida organizada”.

Cris: Se responsabilizar?

Peu: É. Os clubes fogem das torcidas, basicamente foi isso que a gente percebeu, mas há uma inevitável relação, por quê? Se alguém joga algum objeto no gramado, quem é punido? Com mando de jogo, com multa?

Cris: O time.

Peu: O time. Se a torcida apronta no aeroporto, dentro do estádio, fora do estádio, quem fica sem a torcida, num jogo fora de casa? O time. Então há uma relação também muito promíscua do clube com a sua torcida. A gente tá num momento em que eles não se falam, não há uma relação…

Cris: [Interrompe] Uma relação meio marginal, né?

Peu: A gente sabe de relatos até, a gente não colocou na matéria, no especial, porque são coisas que não são comprovadas, são boatos, mas a gente ouviu algumas histórias de que as diretorias de alguns clubes chama a torcida pra fazer pressão interna, pra pressionar treinador, pressionar jogador, por exemplo…

Ju: Um jogo político, né? São manobras pra jogo político.

Peu: Quando um jogador tem uma rescisão de contrato muito cara, isso aconteceu algumas vezes, eles chamam a torcida pra botar uma pressão no cara no vestiário ali entre quatro paredes botar uma pressão pro cara ir embora sem ter que pagar essa rescisão, então há esse jogo também de interesses, assim, mas hoje, oficialmente, nenhum clube falou com a gente, então…

Cris: Então é uma relação ao bel prazer, né? A torcida é fruto do amor pelo clube e o clube tem uma relação meio abusiva aí com isso, usa quando é necessário, mas também não assume aquilo como parte…

Peu: Mas ao mesmo tempo eu entendo o clube também não virar e falar: “nós apoiamos”.

Cris: Por quê?

Peu: Porque a gente vem num histórico de longos anos de criminalização da torcida. Então o clube afirmar que apoia uma torcida é muito perigoso pra ele.

Ju: Não, e é complicado porque eles não têm controle, né. Porque uma coisa é dizer que eles vão lá e destilam ódio na torcida pra que a torcida seja massa de manobra pros interesses políticos deles, isso é uma coisa. Outra coisa é publicamente abraçar a torcida e falar que “não, essa torcida representa o clube tal”, quando eles não tem o menor controle e não sabem o que vai acontecer.

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Peu: Recentemente, os Gaviões fizeram uma nota quando teve a invasão, acho que foi isso, né? Invasão não, quando o Alexandre de Moraes quando era Secretário de Segurança Pública aqui do Estado foi à quadra dos Gaviões fecharam lá, lacraram, o Corinthians fez uma nota apoiando a torcida e isso pegou muito mal, principalmente na Imprensa e a gente tem que fazer também, voltar tá aqui e ir pro nosso lado, meu e do Kaíque, e ver também o papel da Imprensa nessa história e nesse histórico. Desde 95, foi a briga que teve no Pacaembu entre torcedores do São Paulo e do Palmeiras, a gente vem nessa, nessa história da criminalização da torcida. As torcidas foram banidas e começou um levante anti-torcida organizada. É bom lembrar que naquela ocasião, o Pacaembu estava em reforma – não que isso justifique -, mas você sabe quando você junta dois grupos grandes de jovens, pessoas jovens e que têm interesses opostos, você tá arriscado a ter um conflito. A quantidade de pedaço de pau e pedra que tinha no Pacaembu numa das áreas ali, a gente vendo nas fotos depois que a gente tava fazendo o especial – eu era nascido e o Kaíque tinha só um ano -, mas a gente vendo cê vê que [Ju: Tava com a faca e o queijo na mão, né?] era uma bomba-relógio e muitos torcedores até hoje alegam que foi uma armação. A gente fala com muitos torcedores e é nítido que todo mundo sabe que uma arma não dispara sozinha, que um pedaço de pau não acerta a cabeça de ninguém sozinho, mas quando você favorece o confronto, quando você negligencia a segurança esse confronto vai existir.

Ju: Então eu queria dar um passo para trás e, antes de falar sobre a responsabilidade das torcidas na violência, conversar um pouco sobre a importância que a… pra quê que existe torcida? Então a relevância que eles têm para o futebol como espetáculo, para experiência de ir para o jogo e sentir a vibração, a música, o quanto eles contribuem para a festa e pro quanto eles contribuem como senso de comunidade para formação de jovens principalmente de periferias.

Kaique: Os jovens, os adolescentes gostam de estar em grupos, eles se sentem bem em grupos de outros jovens, enfim, sempre querem pertencer a um grupo. Outro ponto é que culturalmente no Brasil você nasce, principalmente quando é menino, você já tem que ter um time de futebol, você já tem que gostar de futebol e ser apaixonado por futebol. É muito comum isso, sobretudo nas periferias que não tem muita opção assim, a não ser o futebol na rua. O futebol, de qualquer jeito: assistir, jogar, tudo. Então você nasce apaixonado por futebol e querendo pertencer a grupos, então você vai se aproximar das torcidas organizadas. Muitos jovens se aproximam por causa disso. Por querer estar com outras pessoas que são apaixonadas pela mesma coisa que ele é. Ele é apaixonado pelo São Paulo, no meu caso, querer está próximo de pessoas que também eram tão apaixonados quanto eu, que queria xingar o jogador quando o time tava ruim, que queria comemorar. E é uma emoção muito grande assim, ir para o estádio conforme a gente vai crescendo e vivendo…

Ju: É uma catarse, né?

Kaique: É.

Ju: É muito louco, cara.

Cris: Kaique, você concorda ou não que as torcidas são sociedades patriarcais e quando a gente vai para questões mais periféricas a gente tem pouca presença paternal e que isso acaba atraindo muito esses jovens buscando esse reforço do paternal que pode estar ali?

Kaique: Sim, e a gente também falou dessa questão da ausência da família também né, da ausência, alguma ausência da pessoa que ela encontra, o jovem encontra na torcida, o jovem da periferia. Então são várias ausências, assim na vida dele que encontra na torcida. Isso é fascinante, é magnífico, assim pro jovem. Ele ama aquilo.

Ju: Eu acho que assim, o poder, do que você tá falando, o espetáculo em si, só o espetáculo do futebol, a experiência do espetáculo do futebol no estádio, daquelas pessoas ao mesmo tempo cantando a mesma coisa. Isso aí, independente do seu momento de vida, da sua história, é inescapável. Você chegar num estádio lotado, cantando a mesma música, a vibração que aquilo dá, o que ele faz com você. E assim, não precisa ter ligação com o futebol, não precisa ter ligação com time. Você pode chegar, sei lá, caí na Terra agora, entrei aqui, as células do corpo vibra na mesma vibração que a de todo mundo, é um negócio muito louco, o estádio é uma coisa muito louca. Então assim, considerando que para qualquer pessoa isso é uma experiência superlativa, pensar o impacto disso num jovem e pensar o impacto disso não só do espetáculo, mas de pertencer a um grupo de pessoas que têm um objetivo e, como você falou, de pertencer a um grupo em que você funciona porque você gosta das mesmas coisas que aquelas pessoas, vocês são apaixonadas pelas mesmas coisas, então o senso de pertencimento, de que você tem um lugar no mundo não é uma coisa pequena ou que se possa ignorar.

Cris: É o sentimento de turba. Você sente a mesma coisa que todo mundo que tá ali está sentindo, a hora que perde um gol você sente a dor igual todo mundo que tá perto e a hora que faz um gol ou que faz uma arrancada, você abraça um estranho com o mesmo carinho que você abraça um familiar, então você tem um senso de comunidade, um sentimento de turba que ele não é explicável, ele não é logicamente explicável. De repente todo mundo ali é uma família. Vocês tão compactuando do mesmo sentimento. Então quando faz um gol, a alegria, o choro, o abraço faz parte de um senso comum. Você perde o seu senso de individualidade e ganha um sentimento da massa. É muito poderoso isso e muito gostoso. Se tem alguém muito estressado, inclusive eu acho que muita gente vai no estádio porque isso é uma descarga de energia absurda. Você chega lá, você grita, você chora, você xinga, você fica muito feliz, você abraça e quando aquilo vai para um sentimento de violência, você também não é mais um indivíduo, você faz parte daquele todo, é uma massa que tá se movendo, não é você enquanto pessoa.

Peu: Para quem tem nada ou muito pouco, a torcida se torna muito. Acho que esse é o lance. Tem um trecho da versão de Umbabarauma que fizeram mais recente que tem uma letra do Brown e tem um trecho que ele fala: “meu time é quem me inspira por falta de alguém”, e aí você pensa como um garoto periférico… ou não.

Ju: A gente tá bem carente de inspiração, viu Peu? Não precisa ser periférico, não. Você vai ter qualquer menino com ausência de figura paterna, com ausência de inspiração, com ausência de “para onde eu vou, quem é minha turma, quem sou eu nesse mundo muito doido, né, que que eu tenho pra oferecer?”

Peu: Nessas conversas que a gente teve, nós falamos com alguns líderes de torcida e eles acabam tendo a representação dessas figuras paternas assim; e talvez eles não estejam preparados para serem pais não de um, não de dois, mas de milhares. E talvez eles também não tenham essa representatividade, essa figura. Nós não estamos julgando se o presidente de uma torcida deve ou não ser presidente de uma torcida – isso é uma coisa muito interna – mas o que a gente está falando é isso, é você, às vezes, não tem nada e você encontra ali. Como tem gente que encontra na religião, tem gente que encontra no esporte – praticando e não torcendo – tem gente que encontra nos estudos, tem gente que encontra [Cris: no tráfico] no tráfico, [Ju: no amor, na família] na desilusão amorosa.

Ju: É, mas é um caminho, uma inspiração, é um objetivo, né?

Peu: E eu entendo uma coisa assim, por exemplo, no amor: se você tem uma desilusão amorosa, às vezes seu amor não continua ali, ele vai embora. A torcida, não. O time, não. Cê perde hoje, semana que vem você tá lá para recuperar isso.

Cris: E outra coisa, você pode mudar de tudo na vida, você pode mudar de orientação sexual inclusive, você pode se descobrir outra coisa, você pode mudar de profissão, você pode mudar de parceiro na vida sexual, mas você não muda de time. É a única coisa que não dá para mudar. Nasceu ali, amigo, esquece. Você vai ser daquele time. Você pode mudar tudo, cê pode ser PT hoje e PSDB amanhã… time não.

Peu: Eu tenho… recentemente tenho assistido os jogos do Santos, todo mundo sabe que sou santista, e uma coisa que me desagrada muito é a torcida gritando “bicha” quando o goleiro adversário vai bater o tiro de meta. Eu fico com muita raiva mesmo assim e me incomoda e é uma das coisas que eu repenso em levar a minha filha ao estádio, por exemplo. Eu levei a Betina já aqui no Pacaembu, ela gostou, choveu muito e a gente foi embora [risos da Cris e da Ju]. Foi a primeira vez na minha vida que eu fui embora antes de acabar um jogo, mas não tinha lugar para ficar, assisti 45 minutos com ela no meu colo e não tava rolando mais braço para aguentar, mas eu fico pensando, porque ela agora tá com 3 anos, e se ela ouvir uma torcida inteira gritar “bicha” ela vai… isso vai virar um questionamento. O problema não é eu ter explicar para ela o que é “bicha”. O problema é a motivação assim que faz essas pessoas gritarem isso como uma questão ofensiva…

Ju: E o problema maior é você dizer que você faz parte desse grupo, que eles te representam de uma certa maneira.

Peu: E eu tô pensando que talvez eu tenha que demorar um pouco mais para levar ela para uma hora eu gritar: “Filha, olha é legal estádio, mas essa parte aqui não é legal de você incorporar na sua vida, entendeu? Mas eu não vou deixar de ser Santista por causa disso.”

Cris: Não, não dá pra deixar, mudar de time.

Kaique: Só quanto a esse grito aí, mostra também como a Gaviões está avançada politicamente em relação às outras torcidas organizadas de São Paulo, principalmente, porque eles estão deixando, não sei se já deixou totalmente, mas eles estão deixando de gritar isso no tiro de meta que se tornou muito comum em toda América Latina, né?

Peu: Essa babaquice é uma babaquice sulamericana, né? Não, no México também, né? Então é uma babaquice latino-americana [Cris: latino-americana]. E a gente entrou no ponto também que eu acho que é importante frisar. As torcidas têm muitos problemas e como a gente tava falando da falta de representatividade, da falta de não sei o quê. A gente tem que entrar numa questão: A torcida geralmente é muito homofóbica, é um lugar repleto de preconceito, é um lugar em que [Cris: Machista, também né?] Machista. É um lugar em que a mulher para ser respeitada ela precisa se comportar [Cris e Ju: como um homem] como um homem. Enfim, tem uma série de coisas, tem alguns exemplos de torcidas que são menos ou… que não são, não posso dizer, porque não tem como você controlar milhares de pessoas e falar que todas aquelas pessoas não são machistas ou homofóbicas, mas tem algumas coisas que são potencializadas, assim e a homofobia, na torcida organizada, é uma delas. Esse é um simples detalhe da gente falando do grito de “bicha”. Pode parecer triste o que eu vou falar, mas é um simples detalhe, porque acontecem coisas muito piores. Mesmo dentro de campo, eu lembro quando eu tava na Vice ainda fiz um especial sobre homofobia no futebol.

Cris: A gente conversou sobre isso aqui, né? Você veio para falar. Uma pessoa foi perseguida porque descobriram que ele era gay.

Peu: [Interrompe] Exatamente. Um torcedor do Gaviões.

Cris: E aí a gente teve uma situação completamente ali cheia de violência [Peu: Exatamente] e é um assunto pra se pensar, né?

(Bloco 7) 1:01’00” – 1:10’59”

Peu: O cara pode ser, nesse ponto… é aquele discurso do cara que a gente condena, reacionário que fala: “Prefiro um filho bandido do que viado”. Então, a torcida ela tem isso. Ela não expulsa da torcida um membro que ela sabe ou que ela desconfia ou que ela tenha certeza que é ligado ao crime, mas ela expulsa se ela descobrir que ele é homossexual. E isso é uma coisa que acontece muito e ela não expulsa porque… ela expulsa porque… pelo que os outros vão falar [Cris e Ju: pela imagem que leva] a imagem que aquele cara por ser gay vai trazer da torcida.

Cris: Tá, mas eu queria perguntar, Kaique: a torcida é uma coisa ruim? Quem tá lá na torcida hoje? Ela é prejudicial? A gente deveria combater isso?

Kaique: Não acho que seja uma coisa ruim, apesar de ter muitas coisas ruins nela… como isso da homofobia. E só porque eu falei da Gaviões tá um passo à frente nessa questão de homofobia, mas ela está longe de não ser homofóbica. [Ela] é muito homofóbica também, como todas as outras, mas isso do parar de gritar bicha no tiro de meta foi só um ponto.

Peu: É um, é um…

Ju: É um passo de conscientização, né?

Peu: É um passo, mas ainda é um grão de areia no deserto.

Ju: O Artur falou uma coisa que eu acho muito legal que é “gesto”. É um gesto no caminho certo, né? Porque assim, cê não move um transatlântico do jeito que cê move uma canoa. Então, demora, é mais complicado, você tem que convencer todas as pessoas, as pessoas tem que entender, não adianta ser top down e tal, mas é um gesto importante. Ele mostra para onde você quer ir, né?

Kaique: Eu não acho que seja algo ruim, mas porque eu acho que faz parte do espetáculo futebol. A gente ama futebol e a torcida faz parte do espetáculo para ficar bonito. Então, eu acho que tem que trabalhar dentro das torcidas, digamos assim, pra acabar com esses pontos ruins e punir os criminosos que estão dentro das torcidas, como estão dentro dos partidos políticos, como tem criminosos no trânsito, como tem criminoso em tudo quanto é lugar, então não acho que torcida organizada seja ruim.

Peu: O crime não pode ser/pertencer a algo.

Ju: Tá, mas, uma coisa que eu acho interessante polemizar aqui é a gente pensar assim, essa solução de que: “Não, pera, a torcida não é criminosa, os atos são criminosos, você pune quem fez os atos e tá resolvido”. Isso não considera o comportamento de massa. Se eu considerar que o problema não são as pessoas, são como elas agem em conjunto, aí eu acho que o problema é ter conjunto. Porque se elas não estivessem organizadas, elas não agiriam dessa forma. E aí a gente volta… eu achei sensacional, o Guga quando estava conversando comigo antes de começar a gravar sobre a Síria, ele tava falando que essa questão de torcida organizada ser problema, está longe de ser um problema brasileiro [ Cris: contemporâneo]… Está longíssimo de ser um problema atual, então ele voltou para as torcidas da Constantinopla, que na época da corrida de… bigas? [Peu: de biga]. De biga, é isso? Tinha a torcida azul e a torcida vermelha. Muito me identifico. E eram torcidas muito fanáticas e chegaram a quase derrubar um Imperador. Desse ponto. Destruíram uma cidade, era assim, ele tem uma matéria sensacional sobre isso [ Cris: Vida lôca]. “Vida lôca, Jão”. E aí cê pensa o seguinte, se é o comportamento de manada que leva à violência que a gente teve – na matéria de vocês tem todos os números da quantas pessoas morreram, quanto cada torcida matou – aí você fala: “Desculpa, faz parte do espetáculo do futebol”. Não se tiver morte. E aí assim, se a questão é que isso vai dar morte, o espetáculo do futebol tá muito bem, obrigada, sem torcida, se o preço é esse, entendeu?

Peu: Mas aí eu vou te fazer um comparativo assim, a gente tá falando de cento e poucas mortes desde 95, por aí. Se a gente pegar a Marginal com a velocidade a 90 quilômetros por hora, a gente vai ter mais mortos do que em torcida.

Cris: Eu entendo, Peu.

Peu: [interrompe] Não. Não. Eu só tô dando um ponto, porque assim…

Cris: Eu entendo, mas a questão é: o que move a violência?

Peu: Eu não… eu não quero, eu não quero diminuir cada uma dessas mortes. Não me entendam mal, mas a minha questão é assim: cê tem cem mortes em vinte e tanto anos; nas cadeias, você tem muito mais; em alguns bairros de São Paulo, você tem muito mais; e em outros… cê mudando o seu foco, você vai ver que – e é uma coisa que as torcidas defendem e eu não estou defendendo as torcidas, mas estou defendendo um argumento – a torcida é um reflexo da sociedade e se você tem uma sociedade violenta, você vai ter uma torcida violenta.

Cris: Mas a gente tem na Inglaterra, uma sociedade não violenta com uma torcida organizada violenta que são os Hooligans.

Peu: Mas quem falou que na Inglaterra não há violência?

Cris: A gente tem um índice de violência criminal infinitamente menor, tanto de violência urbana, quanto de violência de trânsito.

Peu: Mas isso não significa que não seja violenta. Por quê?

Cris: [interrompe] Aí cê tá levando não [em conta] as violências de fato.

Peu: Há uma cultura da violência, principalmente na Inglaterra, pro torcedor organizado. E toda a cultura Hooligan europeia, ela é muito enraizada na Inglaterra. Então,você tem [Cris: Seria um canal?] Você tem uma cultura violenta de torcidas na Inglaterra. Assim como na Alemanha, assim como na Turquia, se a gente for… na Escócia, então você tem torcidas organizadas em todos os lugares e torcidas organizadas violentas em todos os lugares.

Cris: Mas o que você tá querendo dizer é que mesmo que sociedade não seja violenta, as pessoas podem canalizar essa violência via torcida?

Peu: A torcida pode ser um canal para a violência.

Ju: Eu fiquei com essa sensação quando eu li a matéria de vocês, tá? Porque assim, quando eu vi que um dos membros da Tup tava no hospital e que foi o cara que bateu nele da Gaviões que foi o único que foi visitar ele no hospital, eu falei: “Cara, esses dois eles não têm uma rixa que é uma rixa de sangue [Cris: Pessoal], [Peu: … não é pessoal] pessoal e ‘bábábá’”. Assim, nitidamente, quando você vê os depoimentos de todos eles, é… existe uma consistência nisso. É assim: “A gente não quer parar de brigar porque isso é importante para gente. É importante como jeito de se afirmar no mundo, é importante como é… jeito de extravasar, é importante como… uma série de coisas, a gente quer brigar”, mas aí gente, [Cris: … não é o veículo] UFC taí, Judô taí, dá um canal pras pessoas terem, entre aspas, civilizadamente boxe taí pra isso, “pó” bater. Por quê? Porque quem entrou dentro dessa arena aceitou que vai apanhar. E assim, eu achei legal demais porque, eu nunca gostei de boxe, até o momento que eu pratiquei boxe. E quando eu pratiquei boxe, eu passei a amar a assistir luta de boxe e eu não conseguia conciliar isso com a minha cabeça. Eu falava: “Como eu posso gostar?” E eu entendi que o boxe não é violento, porque quando quem entrou naquela arena, aceitou o jogo, queria aquilo. Violência é outra coisa. [ Peu: Durante…] Violência é quando você não concordou com esse pacto e alguém fez alguma coisa que você não concordava, então, se você – eu acho isso forte – a gente… a sociedade tentar conter impulso. O impulso sempre vai existir. Para onde tão as nossas vazões? Como é que a gente consegue dar vazão? Pro futebol ser vazão de violência, isso é problema, Peu.

Peu: Ô, mas a gente…

Ju: [interrompe] Vai morrer gente, Peu.

Peu: Arenas, você tava falando de Arenas. Um tempo atrás, as torcidas tinham um acordo de brigas, briga certa. Então, tinham os bondes das torcidas e se juntava 20 de um lado e 20 do outro, se encontrava e brigava. Teve um acordo disso, então, os Hooligans também tem, em alguns lugares, tem isso também, cê briga, você sai na mão, cê sai na porrada como no Clube da Luta. O cara tá no chão, ele não pode ser [Ju: … chutado] agredido no chão… tem uma série de regras. [Cris: Na guerra tem regras]. Esses acordos foram quebrados por algumas torcidas, que não sou eu que vou levantar aqui essa questão, mas esses acordos foram quebrados por algumas torcidas que introduziram armas de fogo. A mancha verde, por exemplo, é uma torcida que é contra armas de fogo, inclusive nos bonés, nas coisas, na divulgação eles deixam isso claro. Torcidas introduziram barras de ferro e outras armas. Aí foram quebras de acordo, mas naquele momento aquelas 30 pessoas de cada lado, elas estão cientes do que elas estão fazendo.

Ju: Eu… eu não consigo achar que tudo bem.

Peu: Olha…

Ju: [interrompe] Vai pro boxe, vai pro judô.

Peu: Não, Ju, mas a questão…

Ju: … mas sair na mão, se encontrar pra bater.

Peu: Mas a questão é que… é sim,…

Ju: [interrompe] … isso não é do futebol, cara.

Peu: Não é do futebol.

Ju: [interrompe] Não fala que isso é… faz parte do espetáculo do futebol.

Peu: Mas a gente não está falando do futebol.

Kaique: Mas isso não acontece nos estádios, também. Acontece fora.

Peu: É o ponto onde quero chegar. Exatamente. Essas coisas não são combinadas para serem feitas dentro do Estádio. Quando acontece no estádio, é o acaso; mas quando você vai na Jair de Sousa que fica a mais de cinco quilômetros de distância do Pacaembú e você vê duas torcidas com mais de cem pessoas de cada lado, aquilo não é por acaso. Aquilo foi combinado. E as pessoas assim como um lutador de boxe, elas estão ali na Jair, elas sabem que elas vão bater e apanhar.

Cris: É uma cultura tribal.

Peu: Exato.

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Cris: Eu acho que é uma canalização de violência, eu entendo essa canalização, eu sei que não é fácil canalizar isso pra outra coisa, principalmente se você – eu vou falar de centros periféricos que é onde a gente não tem uma cultura de saúde, nem de esporte, nem de nada desse tipo, embora eu acredite que torcidas organizadas não são compostas única e exclusivamente por pessoas periféricas, a gente sabe muito bem que tem pessoas [Peu: e nem por pessoas que brigam] exato! E aí que as coisas se misturam: cê vai ter pessoas com alto poder aquisitivo e com boa formação que brigam e pessoas que são periféricas e que não brigam…

Peu: [Interrompe] E pessoas que… e o oposto também, mas questão é essa. E a gente volta a fazer isso e é uma coisa que a gente tentou não fazer no especial a gente tá fazendo aqui hoje, que é: a gente fez um especial de quatro dias com muito conteúdo e a gente… e a briga foi um dos dias, foi 25% do que a gente produziu. Hoje já, já ta sendo a maior parte da nossa conversa, por quê? Porque é o que se fala sobre torcida.

Cris: O que que não se fala?

Peu: A gente não fala sobre outras coisas que não sejam violência – a gente eu falo como repórter – a gente não fala de torcida quando não é pra criticar ou apontar as mortes ou as agressões, a gente não fala… [Ju: Mas isso é um problema né?] e, e… além disso, a gente não fala com torcida sobre os problemas de torcida; é muito raro você ver entrevista com torcedor, pra defender [Cris: saudável, uma entrevista saudável] ou pra, ou defender um ponto de vista, ou falar o seu ponto de vista sobre determinada coisa.

Cris: Mas o que que isso é de organização social que foge desse estereótipos?

Kaique: Só em cima da fala do Peu, ficou claro assim que existe uma divisão nas torcidas, de partes de grupos que brigam fora do estádio está dentro da torcida e a torcida que faz a festa no estádio, são duas divisões da torcida, a que leva, faz parte do espetáculo, o poder público está punindo, está proibindo a parte da torcida que faz festa no estádio, mas isso não acaba com a parte da torcida que briga nas estações de trens, etc. [Peu: e não pune também, quem briga. Essa é a questão] É! E a imprensa, nós jornalistas, a imprensa no geral, não fala que estão proibidas a parte da torcida que faz festa e só fala da parte da torcida que briga então tá indo num rumo errado, eu acho que tem que tentar acabar com esse lado das torcidas que brigam, tentar punir de alguma forma pra acabar com isso, mas sem acabar com a festa que faz no estádio com o espetáculo, que é a parte boa, a parte bonita das torcidas organizadas.

Peu: Eu sei que…

Ju: [Interrompe] Existe um sem o outro?

Peu: Acho que sim!

Ju: É uma boa pergunta!

Peu: É!

Ju: Existe? Você consegue? São irmãos siameses, dá pra separar?

Peu: A violência e a festa?

Ju: Se você… Porque é o que ele tá falando, são duas torcidas separadas, tem quem briga na rua e tem quem ta no estádio fazendo festa com bandeirão…

Peu: [Interrompe] Oh, eu vou dar um exemplo de como [Ju: se pudesse…] de como o poder público lida com as brigas de torcida: ano passado teve uma briga muito grande que foi a cereja do bolo do fim das organizadas que foi entre Palmeiras e Corinthians e aconteceu em três lugares completamente distantes do estádio e teve uma morte, de uma pessoa que não tinha nada a ver. Na sexta-feira, dois dias antes do clássico, a polícia prendeu um membro da mancha verde, acusado de ter agredido o presidente dos Gaviões da Fiel; a delegada que cuidava do caso falou pra mim, numa coletiva de imprensa, que isso vai, ia acalmar os ânimos do clássico e eu perguntei de novo: “você tem certeza que prender um torcedor do Palmeiras acusado de agredir um torcedor do Corinthians dois dias antes vai acalmar os ânimos?” Enfim, eu tive inclusive nesse momento uma uma… [Cris: um embate] um embate ali. No dia do jogo aconteceram três brigas, a briga do Brás que foi a briga filmada, que tinha as câmeras de segurança do metrô mostravam quem estava na briga e daria pra identificar; a polícia expediu os mandados de prisão, de busca enfim, pra um cara que tava morando na Austrália. [Ju: Sim] Isso que eu falo “ah, é só um detalhe”, não é só um detalhe, esse cara que tava na Austrália podia ser extraditado, ter feito qualquer coisa e tava morando lá há quase um ano, pelo simples fato dele ter assinado uma ata anos atrás quando ele estava na torcida [Cris: A gente tem pouca inteligência em cima disso] é, e, e não acho também que a gente tem que mobilizar um exército pra isso, mas eu acho que as coisas precisam… o que a gente tá falando é assim: as pessoas tem que ser punidas! E se uma pessoa atirou em outra e matou essa pessoa, seja por motivações ludopédicas, religiosas ou simplesmente sociais, ela precisa ser punida, e não é você virar… todos hoje, praticamente todos os líderes de torcidas não podem entrar no estádio, ou não podem… Eles têm algum B.O. [Ju: uhum] alguns casos de coisas, lugares em que eles não estiveram, sabe? A gente tem exemplos assim de: porque o cara era líder da torcida, a torcida brigou ele é punido. Não tô defendendo também, simplesmente defendendo líderes de torcida organizada, mas há que ter um critério, a gente tem critério pra tudo, tenta ter pelo menos, avaliando agora mesmo presos em primeira instância, segunda instância, política, lava jato, há um critério, há uma lógica e uma linha de raciocínio pras coisas serem apuradas, investigadas. A torcida organizada não pode ser diferente, não pode ser colocada como um apêndice da sociedade e ser julgada de outra forma.

Cris: Eu acho que, pra encerrar essa discussão, é um pontapé nessa historia que eu acho que é uma história muito longa, as torcidas organizadas elas são uma associação política, assim como são as associações religiosas, as políticas de fato, as estudantis e qualquer outra aglomeração de pessoas que acreditam num bem comum. A gente tem essa tendência de criminalizar as associações que a gente não entende muito bem, isso não acontece só com a associação de torcida, a gente vê muitas religiões afro que também são criminalizadas de alguma maneira né, marginalizadas, porque a gente entende muito pouco sobre aquilo. Eu acho que como um pontapé inicial é interessante a gente entender que entendimento faz parte do processo de saber lidar. Então essa discussão, é óbvio, a gente mega recomenda a matéria do Kaique e do Peu, pra entrar um pouco nessas outras histórias que fazem parte dessas associações, mas a gente já entendeu que até mesmo pra combater você precisa compreender né, se a gente decidir combater ok, é um acordo social, a gente vai entrar nisso, mas a gente precisa compreender. Hoje o que eu entendo dessas aglutinações é que a gente simplesmente tem pavor, tem muito medo, ou se sente atraído ou a gente tem muita repulsa e a gente vai precisar conversar um pouco mais sobre isso, vocês concordam?

Peu: Sim! E é normal que se tenha medo também, porque quando você vê as imagens na TV, essas imagens não são bonitas, assim como você… recentemente teve aquela briga do… do argentino que tomou um soco e morreu com um soco, não é bonito de ver aquilo, a violência não é bonita, mas tem o outro lado fetichista também da imprensa que é o de exibir isso, que o de mostrar isso e o de dar, ganhar audiência com isso. Então é muito difícil você ver… a torcida ela criminalizada, ela é usada pela imprensa de várias formas né, porque quando a gente vai falar do crime a gente vai lá e mostra e repete essa imagem mil vezes e quando a gente vai fazer a vinheta do jogo que vai acontecer à noite, que que as emissoras mostram? Principalmente a Globo que é enfim, que é a que mais passa jogos [Cris: Detentora de jogos] ela mostra a torcida [Ju: Sim!] mostra aquela imagem bonita da libertadores, com sinalizador, com bandeiras, com bexiga, com tudo que a torcida não tem mais hoje em São Paulo…

Kaique: [Interrompe] A letrinha da música bonita cantada na arquibancada [Peu: É!] feita pela torcida.

Peu: É essa torcida que a gente tá falando e é essa torcida que eu e acredito que o Kaique também defenda; não a torcida que bate, que mata e que agride, é… a gente tá falando…

Ju: [Interrompe] Não a torcidas com válvula de escape [Peu: Exato!] pra violência. Vamos encontrar outra válvula pra isso…

Cris: [Interrompe] A questão é… A questão é que se hoje você tem uma polícia que bate e mata, se você tem religiosos que batem e matam, se você tem familiares que batem e matam, é óbvio que você vai ter uma torcida que bate e mata né, essas pessoas antes de serem torcedores, eles são membro da sociedade e a gente sabe que a gente tá sofr…. Vivendo numa sociedade muito violenta hoje e a torcida é um reflexo disso.

Peu: E eu acredito que quem foi ao estádio uma vez na vida vai entender a importância da torcida pro espetáculo.

Cris: Quem nunca né, daqui a cruzeirense pra falar disso, já fui de torcida, já fui muito no estádio, saudade do tropero no Mineirão [Peu: [risos] tá vendo] muitos anos sem ir lá, mas eu sei o valor que isso tem e é uma delícia! É isso então, vamos pro próximo tema.

[Trilha]

Cris: Vamos então pro nosso terceiro tópico, vamos falar sobre Big Brother, o Marcos expulso do BBB. O fato é o seguinte: essa semana o Big Brother, em sua décima sétima edição (parece que esse trem não vai acabar nunca) mostrou detalhadamente o escalonamento da violência que é típico de relacionamentos abusivos ao exibir discussões entre o médico Marcos Reiter, de 37 anos e a estudante Emilly Araújo, de 20 anos; e o fez diante dos olhos de milhões de espectadores, enquanto uma minoria engajada fez muito barulho e cobrou atitudes da emissora, a maioria do público assistiu sem entender tamanha repercussão falhando em encontrar erros em um comportamento tão difundido e corriqueiro. Os episódios chamaram a atenção da delegada titular da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher, Viviane da Costa, que visitou a casa para pedir as imagens da discussão entre Marcos e Emilly. No primeiro momento a Globo apenas chamou os participantes separadamente para o confessionário, para por um lado chamar a atenção de Marcos e por outro reforçar o apoio à Emilly caso ela quisesse prestar queixa, mas após a visita e o laudo médico a emissora assumiu que houve agressão e, atendendo ao regulamento do programa, expulsou Marcos. O fato de um comportamento abusivo ter gerado consequências e discussões em rede nacional deu a oportunidade a milhares de mulheres de colocar um nome para violência que sofrem e entender que existe um amparo legal e social para sair dessa situação. Vamos então aproveitar esse exemplo tão didático do reality show, que o reality show proporcionou, e polemizar um pouco sobre o que é agressão e abuso em relacionamentos.

Ju: Sabe aquele aulão que a gente faz pra revisão antes da prova? Vamos só revisitar os temas? Porque o Mamilos já fez vários programas. Tem um sobre relacionamento abusivo que é muito bom [Cris: que é o programa 49] [Peu: Que é muito bom], tem um programa sobre violência contra mulher, tem programa sobre feminismo, tem programa sobre slut shaming, então assim, a gente já falou bastante sobre esses temas.

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Cris: Antes da gente entrar no “recap”, no mesmo sentido de fazer raciocínios um pouco mais amplos, né? Do mesmo jeito que o confinamento pode ou tende a levar a comportamentos surtados mesmo, né? Tem uma diferença de idade ali muito séria. [Peu: Sim] Ele tem 37 anos, ela tem 20 e, assim, é mais fácil intimidar quando tem uma diferença de idade tão grande em situações de poder e a pessoa fala que você está errada e ela é muito incisiva em falar isso e além dela ser maior e ser mais forte, ela deu poder… [Peu: E nesse caso é um cara estudado, um cara bem sucedido] ela tem a força… Ele é um médico, né?

Peu: Tem uma série de questões ali que colocam ele num pedestal, num patamar, num degrau acima que são bem delicadas. Eu acho que há uma semana quando o Ilmar ainda estava na casa, a gente tinha a discussão sobre o comportamento dele já. Que ele já vinha demonstrando uma… um nível de agressividade. Teve um dia que o Ilmar chamou a Emily de “verme”, teve uma discussão ali. Aquela noite que ele não dormiu. Ele para justificar o absurdo que foi o Ilmar chamar… agredir a Emily, chamá-la de “verme”, ele [Marco] agrediu quatro mulheres na casa: a Emily, inclusive, a Marinalva, que é a que não tem uma perna, a Ieda que é idosa e a Vivia que, de certa forma, se colocou ali no meio, então foram todas as mulheres agredidas ali nessa situação. Isso para ele [Marco] justificar uma agressão de outra pessoa. Então, acho que desde aquela época já, a Globo já tava passando, “cortando um dobrado” ali com o cuidado que ela tinha que ter em relação a isso.

Cris: Não e eu acho muito interessante. Teve um post sobre isso muito legal de… – não lembro se era twitter ou facebook – mas a pessoa colocava assim: “Num ano a gente viu sexo não consentido, né?” Que o cara transou com uma menina que estava desacordada debaixo do edredom, “no outro ano a gente teve um cara falando abertamente das novinhas”, né? Um comportamento que a gente poderia chamar de pedófilo. Daí esse ano a gente vê uma escala de violência muito psicológica, não só física e aí a pessoa conclui falando assim: “Eu concordo que é um reality show, porque essa é a realidade de muitas casas que não estão sendo filmadas”. Então, quando a gente coloca pessoas que reproduzem esse comportamento que a gente tem na sociedade, a gente fica escancarado e fala: “Nossa, olha como isso está acontecendo!” e você se esquece daquele seu amigo que às vezes esta numa festinha, num churrasco e ele está falando: “Ah, fulana é muito burra. Você não sabe o que ela fez. Isso é uma tapada”. [Peu: Sim] E aí você começa a recobrar lembranças do quanto você presencia pequenas violências psicológicas no seu dia a dia e é um gatilho, né?

Ju: Quando a gente começa pelo lado mais de fora, cê começa falando assim: “Pô, não é abuso. É preocupação o que ele tem com ela. É cuidado”. E aí você vê, por exemplo, uma frase que ele fala assim: “Você não vai mais beber ou se beber, eu que vou controlar. Você pode substituir no teu vocabulário as palavras: Ice, Vodka, Champanhe por outras como: profissão, carreira, estudo, faculdade. Mulher não tem que beber. É feio pra caramba ver uma menina da tua idade fazendo isso”. Então assim, se eu não fosse eu, se eu fosse outra pessoa eu ouviria isso e falaria: “Bom menino esse. É um menino pra casar, sabe? Porque esse menino tá cuidando dela. Ele tá preocupado com ela, vai botar a mina no caminho certo da vida. Ô, que menino bom, né? Agora fala para mim, Kaíque, explica para mim por que talvez isso não seja tão legal esse menino assim. Quando fala uma coisa dessas, assim.

Kaique: Bom, ele quer impor não só isso, né? Que ele quis impor nela, mas também o fato de não conversar sozinho com a leda e ele tem tá perto, vários outros pontos assim dele que mostra um relacionamento totalmente abusivo, né? Totalitário, assim ele. [Ju: Controlador, né?] Controlador. Ele quer mandar em tudo que ela faz e várias vezes ele fazia questão de jogar na cara dela que torcia pra ela porque ele não precisava daquilo [do prêmio], ela precisava.

Cris: Diminuindo ela.

Kaique: Diminuindo.

Ju: A base do relacionamento abusivo é você minar a confiança do outro para que ele acredite que ele não tem chance de ser feliz com outra pessoa, que ele não merece amor, que você é o herói que está salvando ele, que você é o herói que se sacrifica por ele, que aquela pessoa não merece nem estar com você e nem estar com ninguém.

Peu: E quando ele foi expulso, foi o que aconteceu, ela ficou sem chão, ela não entendeu porque que tava acontecendo aquilo.

Cris: Ah, e na cena da discussão quando ele, ele encurrala ela – que é muito assustadora aquela cena – ele fala: “Escuta, você tem que tá comigo independente de eu ter chance, entendeu?” Então assim…

Ju: [Interrompe] O quanto de vezes ele fala pra ela: “Escuta, escuta”, “Entendeu? entendeu?” Você já vê o relacionamento abusivo no sentido de “a questão é eu tenho que controlar a narrativa. Você tem que me escutar em primeiro lugar e em segundo lugar você é burra. Eu repito várias vezes porque você é burra”. [Cris: Pra saber se você entende. Porque você é burra!] Entendeu? É o mansplaining no último grau.

Cris: Descarado, né?

Peu: Entender e obedecer, né?

Ju: Exatamente. Tudo bem. Então assim, vamo lá. Eu acho que, juro, esse primeiro passo de entender a diferença entre cuidado e abuso, isso é tão fundamental. É tão fácil confundir quando você tá carente, quando você não tem ninguém, quando você não tem nada, quando você quer aconchego, quando você quer uma pessoa que cuide de você por que é natural do ser humano querer ser cuidado, querer ser acolhido. Tudo bem com essa necessidade. O abusador é você pegar essa necessidade e virar ela para fazer uma situação violenta. [Cris: Você prender a pessoa, né?] Então assim, você usar sua necessidade de acolhimento e de cuidado e desse cuidado fazer um controle e fazer uma forma de te diminuir para você ficar à minha mercê. Então acho que a fala dele mostra bem isso.

Cris: “Mas, Juliana, vocês estão exagerando. Não tem violência, gente, é só uma discussão normal.” Isso é uma coisa que a gente ouve muito, né? [Peu: Em briga de marido e mulher…] O Marcos vinha sendo agressivo, ele tinha uns momentos dentro da casa, mas no último sábado, a coisa passou do limite. Ele foi lá, ele estressou, ele encurralou e tudo mais. Mas é uma discussão, né, e casal tem discussão, né? Ele tem desentendimento. Como que a gente percebe que passou do limite?

Peu: Olha eu nunca peguei a cabeça de ninguém e fiquei batendo na grama numa discussão, entendeu? Pra pessoa me ouvir, eu bati a cabeça dela na grama ou enfiei o dedo na cara dela.

Ju: Cara a hora que ele pega o braço dela e ela fica tentando sair, assim… aquilo, assim, foi muito difícil para mim e eu só assisti por que era a pauta do programa e mesmo assim, com muita dificuldade porque, assim, ver o cara pegar a mão dela e ela tentar sair daquela situação e é muito legal o que você falou porque é bem isso. É um cara de 80 kg numa mina de 49 kg e o quanto ele usa… [Cris: O corpo dele bloqueia, né?] O boxe é foda, ele volta nisso. Porque é exatamente a leitura de uma luta de boxe. O cara que é maior vai pra cima de você e ele vai te levar para onde? [Peu: Pras cordas ou pra lona] Para corda, porque na corda, ele consegue, ele é maior que você. [Peu: Ou pra lona, né?]. Então… Exatamente. Ou pra lona. Então é muito… se você vai ver a linguagem corporal dessa discussão deles não tem como dizer que não é violenta.

Peu: E ela está coagida, ela tá assustada em muitos momentos ali. E na hora que ele tá em cima dela, que ele bate a cabeça dela na grama e ele chora depois, a única reação dela é acolher porque de certa forma o que dá a entender ali é que ela se sente culpada porque ele tá ali naquela situação.

Ju: Claaaro. “Eu só fiz isso com você… Olha o que você faz eu fazer…”

Cris: “Eu fiz porque você mereceu”.

Ju: “Olha o que você faz eu fazer…”

Peu: “Olha o que você fez comigo…”

Ju: “Olha o que você fez comigo…”

Peu: Vocês falaram sobre o caso do sexo não consentido. A gente tem uma diferença muito grande entre os dois casos e acho que isso é muito importante ficar claro e é uma coisa que eu vi pouca gente falando. No primeiro caso, foi uma coisa que não foi revelada. Não tô falando que se foi ou não [estupro]. Só para não ficar parecendo que eu estou defendendo uma ação como aquela, mas foi um negócio que aconteceu embaixo do edredom, no escuro, a menina não se lembra e a … [Ju: O público não estava vendo] o público não estava vendo e a emissora… [Cris: Não era declarado] e a emissora foi taxativa em expulsar o cara no dia seguinte. Dessa vez, a coisa foi numa crescente e estourou e ela só tomou a decisão de expulsar o cara depois que veio uma delegada [Ju: Sim] e falou: “Isso é agressão”. Eu sei que vai ter muita gente, talvez não aqui [Ju: … na nossa bolha protegida] entre os nossos ouvintes, mas vai falar que é um grande mimimi, mas a grande diferença entre os dois casos é que o primeiro cara era negro e o Marcos é um cara branco, bem sucedido e rico.

Ju: “Não. Méééédico, né gente? Ele não é agressor, ele é médico. Por favor, vamos respeitar”.

Peu: Entendeu. É eu acho que tem esse detalhe. A posição que a emissora tomou com o modelo negro que fez isso foi taxativa e eu acho que foi correta porque tinha uma dúvida de um abuso sexual seríssimo e tinha uma dúvida e, na dúvida, ela expulsou.

Cris: É mais fácil punir uma pessoa que se encaixa no estereótipo daquilo que você acredita que é mais fácil praticar o crime.

Peu: Eu só acho que… É uma incoerência. É uma incoerência muito grande. No primeiro caso, ela foi taxativa e expulsou o cara. E ela fez o que o Estado faria, né? Dessa vez ela assistiu, ela viu, ela foi fetichista, ela incentivou isso e só expulsou quando veio alguém de fora e falou: “Gente, vocês estão loucos?”.

Kaique: Só expulsou quando o movimento entrou em massa, né? Lá. As feministas começaram a falar, lá.

Peu: E detalhe que era uma semana em que as mulheres da emissora [Globo] estavam se voltando contra um outro caso de agressão à mulher. Um outro caso absurdo que foi o caso do Zé Mayer. Então, a gente tinha de um lado na grade da programação, a emissora falando sobre o caso do ator, sobre o caso do Vitor, do Vitor & Leo, e à noite a Globo tava mostrando. E ainda teve a infeliz frase do Otaviano Costa no Vídeo Show. A Vívian… acaba o VT, ela falando: “Isso não pode acontecer” e ele vira e fala: “Não, pode sim e a gente gosta de ver”. E aí que depois ele teve que se retratar, também. Então, assim, teve uma diferença muito grande entre os dois casos, sabe, assim. No primeiro, ela foi taxativa. Na dúvida, tchau! E, no segundo, ela assistiu. Por quê?

(Bloco 10) 1:31’00” – 1:40’59”

Ju: Eu concordo com você, concordo que [é] muito mais fácil e mais imediato criminalizar e agir no primeiro caso, mas eu acho muito interessante ver como uma violência dessas e uma coisa que quando você para pra analisar tá claro a violência, como é fácil você confundir com uma coisa normal de tão comum que é. Não por ser normal. Porque eu acho que quando você para pra analisar a violência ela tá implícita ali [Peu: é que normal e comum são coisas muito distintas] Exato! mas é tão comum que é familiar; quando você vê aquilo não provoca tanta estranheza por ser familiar. Você vê aquilo, você cresceu vendo aquilo, isso tá em todo lugar, então não causa tanto estranhamento assim, tendeu? Assim, eu acho que de tanto a gente falar disso, é uma coisa que me fez tão mal eu não queria, eu não consegui ver os vídeos até o final, eu acho, é… eu acho bem doentio, mas eu já tive na situação, eu já tive no lugar de passar por essas discussões aí e eu reconheço como uma coisa comum e familiar, eu reconheço que uma briga daquela há 5 anos atrás eu não reconheceria como abusivo, eu acharia que é uma briga de namorado, “normal, acontece, passamos um pouco do ponto, mas é, né, acontece”.

Cris: E eu acho que aí que a gente entra no nosso recap no ponto três que é agressão física versus violência e abuso emocional. Acho que a emissora perdeu uma oportunidade singular quando ela diz: “ah não, houve um abuso físico, ele está expulso”, porque mesmo que não houvesse o abuso físico, teve um abuso emocional absurdo; como ela fica depois que ele saiu mostra o quanto ela tava fragilizada, quanto ela precisava de acompanhamento também, quando ele saiu, porque ele menosprezou tanto a capacidade dela, ele colocou ela num lugar tão inferior, ele minou tanto a autoconfiança dela e colocou ela tanto dentro de um lugar subalterno, que no final ela não tava conseguindo sair dali. Foi por isso que quando ele saiu ela entrou num surto também. Então faltou… e ok, foi muito válida a expulsão dele, eu não tô apagando isso porque é um gesto muito claro, mas cara, mesmo que ele não tivesse tocado nela fisicamente [Peu: houve…] o que ele provocou nela emocionalmente… [Peu: houve agressão] Então a gente falou isso muito, quando a gente fala de relacionamento abusivo, muitas vezes a gente fala: “ah, mas não bateu, ele não socou a cara dela”. O que acontece é que isso mina tanto a pessoa, que ela perde sua dignidade humana, isso leva muitas pessoas à depressão; isso leva muitas pessoas à tentativa de suicídio; leva muitas pessoas a perder sua capacidade profissional, as suas relações familiares. Então uma agressão emocional, o fato dela não deixar marca no corpo ela é mais difícil de identificar e isso causa um buraco emocional tão [igual] ou maior que o físico.

Ju: Eu gostei que a Flávia Penido ela fez um comentário falando que a jurisprudência já considera que violência psicológica é uma forma de lesão corporal, porque a mente é parte do corpo e o Pedro Calabrez [Cris: Muito bom!] quando teve aqui ele falou isso: não existe mente e corpo, mente faz parte do corpo. Então é sensacional isso, essa compreensão que já existe na jurisprudência de que assim, se você lesar a mente de uma pessoa, a capacidade dela se relacionar com os outros, capacidade profissional dela, se você deixar ela no ponto da depressão, você é responsável por isso, como você seria por um soco, você é responsável por isso como por uma lesão física.

Peu: A gente tava falando do constrangimento que foi pra gente assistir, nós somos pessoas que não conhecemos a Emilly, nós somos pessoas que, em muitos casos – eu me incluo nisso, inclusive -, achava ela uma pessoa insuportável na casa [Ju: Sim!] porque ao longo do programa você vai vendo comportamento dela, ela era uma pessoa mimada, arrogante, tinha uma série de questões e a gente ficou constrangido e e, enfim, numa situação ali que era muito esquisita, muito agressiva. Agora, eu fico pensando na família dela também, como que foi pros familiares dela assistirem aquilo e não poderem acolher, e não poderem estão perto e não poderem estar junto [Ju: intervir, né? Cortar o ciclo de abuso] É… [Cris: É muito…] Só que isso é o que acontece geralmente, é o que acontece também quando você é um casal que mora junto, a família às vezes tem a mesma… a diferença é que a família não assiste, não tem esse voyeurismo, a família não tá vendo a pessoa ser agredida, acho que essa é a diferença só.

Cris: É muito bom você tocar nesse ponto, porque o fato de você não se identificar com a pessoa, não concordar com ela, não quer dizer que ela deva estar sujeita a uma violência. [Peu: Exatamente] A gente tem um outro caso desse né Juliana, que aconteceu essa semana.

Ju: É o caso da Sheherazade, né. [Peu: Sim] Que eu acho sensacional tem acontecido na mesma semana, pra efeito de pauta, que é: você não precisa concordar com quem ela é [Peu: Com o que ela pensa] da onde ela vem, o que que ela pensa, o que ela defende, pra achar que ela não tem que sofrer uma violência. [Peu: Exatamente] Então assim, isso foi um outro ponto que também foi discutido, assim: “ah, mas eu não gostava dela, mas eu não concordava com ela” não faz a menor diferença [Peu: E eu vi gente aplaudindo a… o Silvio Santos] não faz a menor diferença…

Kaique: [Interrompe] Homens de esquerda…

Peu: Homens de esquerda… eu vi muitos homens de esquerda aplaudindo a ação do Silvio Santos, do tipo: “é, deu o que ela merecia”. Não, cara!

Ju: Não… não…

Cris: É que se você apoiar aquilo que em outros momentos você é contra, o que vai diferenciar você de quem pratica?

Ju: Não interessa…

Peu: [Interrompe] E se fosse o Faustão fazendo isso com a Letícia Sabatella? [Cris: Né…] Sabe, assim, vamos… vamos inverter um pouco? Se fosse sei lá, o Bonner que é um cara mais conservador no discurso com alguém que é ligado à esquerda.

Ju: Não, é que não interessa, entendeu [Peu: Não importa, exatamente!] O princípio é o princípio e principalmente é isso que eu acho interessante assim, uma agressão a uma pessoa, também é uma agressão ao grupo. [Peu: Exato!] Sempre é! É isso que a gente precisa ver. Quando ele agrediu ela, ele se sentiu à vontade de agredir porque uma mulher pode ser agredida dessa maneira e assim, quando você defende ela, você não defende só a pessoa dela, você defende o grupo, você defende “não se trata mulher desse jeito, at all, não importa que mulher.”

Peu: É nesse ponto que a hashtag foi feita, né? [Ju: Exatamente!] “Mexeu com uma mexeu com todas”, acho que tem a ver com isso, né? Então essa revolta seletiva me incomoda muito também, porque “Mexeu com uma mexeu com todas” mas…

Cris: [Interrompe] Quem são todas? [Peu: Quem são todas?] Sheherazade não é todas?

Ju: É…

Kaique: Só um ponto que liga muito o Silvio Santos ao Marcos, que o Silvio Santos falou: “ah, se você quer falar o que você quiser, pra falar o que você quiser, compra sua emissora e fala na sua emissora”. É…se colocou na mesma posição que o Marcos se colocava quando falava: “ah, eu sou médico, eu não preciso disso”. Ou seja, colocou no degrau [Cris: Eu sou maior que você] de superioridade, né.

Ju: Agora sério, em que, em que mundo que ele ia falar isso com um cara que fosse receber um prêmio da emissora dele cara, eu sei que ele é randômico, o Silvio Santos pô, né, louco e tal, mas assim tem algumas coisas que você olha e fala assim: “o cara fez isso, porque é uma mulher cara, na boa, ele fez isso porque é uma mulher”. Porque ele não ia fazer isso com o Celso Portiolli que tivesse ali com… assim o Boris Casoy foi demitido sumariamente, mas não passou por esse constrangimento, você não faz isso com um cara, entendeu!?

Kaique: Sim!

Cris: Mas Kaique, ela mesma, a Emilly mesmo falou que não teve violência, ela não queria [Peu: a Sheherazade também falou que era uma brincadeira] A Sheherazade também e aí?

Kaique: Bom é, são as mulheres que são criadas nessa cultura machista né, como a gente vê isso normal como vocês falaram aí, pra nós… bom, isso não é agressão, o Silvio Santos tava brincando, ele faz isso com várias mulheres, o Marcos é normal… eles, eles tem um relacionalmente, é normal ele meter o dedo na cara dela e se colocar numa posição superior por ser homem principalmente, só que isso não é normal né, a gente…

Cris: É que o prazer do opressor é encontrar oprimidos do seu lado, né? Então acho que muita… o problema é o cesto mesmo, não é unicamente as maçãs, então quando você tá tão enfurnado nessa cultura que você não percebe que tá sendo abusado, você não pode ser culpabilizado por isso.

Ju: Não, e principalmente assim, ela… no caso específico da Emilly, cê tá confinada, o cara transformou seu cérebro em gelatina, num relacionamento abusivo né, porque você não sabe quem você é, você não sabe seu valor, você não sabe o seu lugar…

Cris: [Interrompe] E 20 anos gente! Ela tem 20 anos, ela não tem 40! [Ju: Pelo amor de deus] Por favor, sabe [Ju: Sabe?] É mais fácil de manipular se… lembra que no Mamilos de relacionamento abusivo a gente falou muito sobre ter estofo, ter bagagem, pra poder julgar: esse relacionamento é bom, não é bom, essa amizade é boa, não é boa? [Ju: Ter repertório] Com 20 anos como você vai ter repertório? Então assim, a diferença de idade pesa muito nesse sentido, não é 50 e 60, é 20 e 37, o repertório dela é curto, sabe?

Peu: Ele viveu quase o dobro que ela.

Ju: É, e assim é isso… no auge do relacionamento abusivo eles não tiraram o cara quando ele tava apontando o dedo na cara dela, tiraram o cara quando eles estavam na fase de lua de mel. [Peu: Exato!] Todo relacionamento abusivo tem o mesmo ciclo: é o abuso [Peu: O ciclo da violência] depois a lua de mel, o abuso e a lua de mel, é sempre o mesmo ciclo, então assim [Cris: Não vou fazer mais…] na hora que o cara prometeu que não ia fazer mais, porque assim, toda mulher, mesmo a que apanha e que está há muitos anos no relacionamento abusivo, ela não pede para tirar o cara, pede para tirar a violência. Ela ama o cara, ela só não ama a violência. Ela pede: “Faz com que ele pare de me bater”. [Peu: Ele quando bebe fica assim…] Exato! “Eu não quero que ele vá embora, eu amo esse cara. Eu só quero que ele pare de me bater. Só isso”. Então assim, quando você tira o cara, ela vai sim falar que não era isso, que você que é ruim, que você estragou tudo, que o que eles tinham era tão lindo. Gente, isso faz parte do ciclo do relacionamento abusivo, não quer dizer que não tinha; porque as pessoas vão dizer: “gente, vocês estão exagerando, não tinha relacionamento abusivo. Ela mesma defendeu o cara”. Não. O fato de ela responder, defender ele, está dentro da narrativa de um relacionamento abusivo.

Peu: E foi o que o delegado usou para o inquérito, né? Não precisava ela fazer a denúncia. Ficou claro que houve a violência. Ponto.

(Bloco 11) 1:41’00” – 1:50’59”

Ju: O que eu acho interessante é o seguinte: tem uma questão legal. A gente estava discutindo de que poxa, o programa não precisava que houvesse violência para expulsar ele, porque já teve agressão psicológica. Mas em caso de inquérito tem essa diferença. Agressão psicológica, ela também é configurada, mas aí você precisa de uma queixa. Agressão física, por conta da compreensão jurídica já do que é que é um relacionamento abusivo, não precisa. Inclusive se a mulher…

Cris: [interrompe] Inclusive a necessidade de identificação.

Ju: Se a mulher não quiser denunciar o companheiro [Peu: Sim, você tem razão.], ainda sim a própria delegacia pode indiciar por conta de já entender a dificuldade que é você começar o indício pela denúncia da mulher que está envolvida no relacionamento abusivo. Isso é muito difícil então já existe essa doutrina de que “Não, a própria delegada poderia intervir”, mesmo que a Emily falasse “Não, está tudo certo”, apanhando, toda roxa e falando “Não. Está tudo certo”. A delegada ia falar: “Não está não. Eu estou vendo que não está”.

Cris: Vamos então para encerrar aqui. Vamos então ajudar o pessoal a identificar isso, que eu acho que é sempre válido. Então a violência contra a mulher, a física, vocês sabem porque é mais fácil de notar. Um exame de corpo de delito é o suficiente para isso. A violência física, ela pode até não deixar marcas: se ele te empurra, se ele te chuta, se ele te amarra, se ele te imobiliza, se ele te bate, se ele te violenta, é uma violência física.

Ju: Violência moral: se ele te chama de burra, se ele inventa mentiras sobre você. Calúnia, injúria e difamação, ou seja, tudo o que você coloca naquela caixinha de: “Era só uma discussão”. Te chamou de burra, te chamou de puta, falou que você não é confiável, que você não se esforça, sei lá. O que mais que é comum nas brigas de… ?

Cris: É difícil até diferenciar a [violência] moral da psicológica, né? [Peu: Sim.] A moral é quando ele fala mal de você para os outros, ele te difama, ele conta inverdades a seu respeito; e a psicológica é quando ele te humilha, ele te insulta, ele fala diretamente para você inverdades a seu respeito te fazendo acreditar [Peu: E mina sua…] que você é uma coisa que você não é. Ele ainda te ameaça, ele te persegue, ele não permite que você tenha liberdade para pensar aquilo que você pensaria sozinha.

Peu: E tem essa coisa de minar, né, o que a pessoa pensa, o que a pessoa acredita, a capacidade que ela tem… E principalmente a segurança dela, assim, né? A segurança, a esperança. Cê vai minando pontos vitais [Cris: De independência.] de continuar seguindo a sua vida. Você precisa ter segurança para seguir o seu dia, esperança para coisas melhores. Sabe, assim, cê precisa de coisas muito… E quando você começa a minar esses pontos, aí entra também na violência psicológica…

Cris: [interrompe] E entra até na violência patrimonial e econômica.

Peu: Porque a pessoa passa a depender…

Cris: [interrompe] Quando ele controla o seu dinheiro, é quando ele não te dá permissão para fazer compras, você tem que pedir para comprar alguma coisa com um dinheiro que é o seu mesmo, quando destrói seus objetos, quando não te deixa trabalhar, quando oculta bens e propriedades, pessoa que faz compra e esconde. Ele tem acesso à sua conta mas você não tem à dele ou à conjunta. Então tem uma outra violência aí que ela mina a sua independência.

Peu: Sim.

Ju: Lembrando que existem várias formas de violência que elas podem não ser tão declaradas, entendeu? Então ele pode ser aquela relação passivo-agressiva. Então ele não te deixa trabalhar porque ele gosta tanto de você, “por que é que você vai trabalhar? O mundo é tão ruim. você é tão boa para o mundo. O mundo é tão ruim, o mundo é horrível. Você tem que ficar aqui porque eu te protejo, porque o mundo é ruim.” Suas amigas: “Elas querem o teu mal, são invejosas, nã nã nã… Fica aqui”. Ele diminui o seu mundo. O seu mundo fica pequeno, é só do tamanho dele. “Então fica aqui porque eu quero te proteger. Não quero que você trabalhe, porque eu quero cuidar de você”. Mas aí pra qualquer coisa que você precise, você precisa pedir a benção. E para muita coisa ele dá, ele só precisa puxar as cordinhas duas ou três vezes para que você saiba [Peu: Quem é que manda] que para tudo você depende dele. Isso é a definição de relacionamento abusivo e você não precisa ter uma violência explícita, entendeu? Outra maneira de violência é a violência sexual, pressionar – que a gente acha que é a natureza do homem. Se está pressionando, é normal… Está pressionando… [Cris: É porque ele te ama.] Ele precisa disso, se ele não te procurasse é que era o problema. Exige práticas que você não gosta… Também é da natureza do homem, é o que ele faz. Se você não der, se não tiver em casa, ele vai procurar na rua. Se negar a usar preservativo também, muito comum, e isso não precisa nem estar no relacionamento, né? Te negar a usar outros métodos contraceptivos, também uma violência comum em relacionamentos…

Cris: [interrompe] Tudo tem a ver com posse, né? [Peu: Sim.] Quando você sente que o outro é seu, você acredita que ele deva agir exatamente como você deseja. Então seja a violência física, a moral, a patrimonial, a psicológica e a sexual, ela está falando sobre posse.

Ju: E sobre controle [Cris: E sobre controle.] Muito sobre controle. Sobre você conseguir estar sempre dominando a situação, sobre conseguir que a mulher se comporte do jeito que você quer. É o prazer que você tem de saber que você está no controle.

Peu: E eu acho que… Eu me coloco agora na posição do homem. Uma vez eu discuti sobre isso falando que todo homem tem a capacidade, é um potencial agressor e eu fui muito criticado por isso. Mas, de fato, nós somos. Eu tenho um trabalho diário de não ser babaca, assim, sabe? E é muito difícil. Eu falo isso abertamente, é muito difícil você não ser babaca no seu dia a dia. E você vai cortando isso aos poucos: Não aceitando comentários machistas dos seus amigos, você vai cortando não aceitando comentários homofóbicos, machistas quer que seja de familiares, você vai cortando aos poucos. Você vai cortando no tom que você fala as coisas, no jeito que você fala e no que é que você espera da sua companheira. Eu tenho a felicidade de ter a pessoa, a Clarice do meu lado e ser uma pessoa que eu vi crescer muito em relação a isso assim, nos últimos anos e o crescimento dela fez com que eu crescesse em relação a isso também. Então ela começar a identificar as violências fez com que eu também identificasse e eu também passasse a pensar sobre isso e que não é legal você ficar quieto também, quando você vê outra pessoa fazendo e você começa a aprender, cada dia um passo, cada dia uma lição e esse exercício de tentar não ser babaca já é um grande esforço, porque às vezes você vai ser babaca.

Cris: Kaique, aqui com os colegas, você já falou alguma coisa e foi zoado porque você falou: “Putz, não acho que é bem assim”?

Kaique: Então, isso é uma coisa que eu converso com o Peu sempre, principalmente, a gente sempre tá conversando assim que é esse exercício mesmo. Ele fala muito bem, de não ser babaca todos os dias. Então a gente tenta, assim, não ser e às vezes num grupo assim você acaba sendo babaca por não querer se expor [Ju: Se expor.], não querer falar que ele está fazendo uma piada sem graça porque você acha que as pessoas não vão te dar ouvidos ou você vai ser o alvo…

Ju: [interrompe] Você vai ser excluído.

Peu: Você vai ser o “feministo”, sabe? Aquela coisa assim…

Ju: [interrompe] Não, mas até mulher, cara. Eu tenho muito grupo de amigo homem, assim, e eu escolho minhas batalhas. Não é todo dia, sabe, assim. De verdade, quando não estou no meio dos meus amigos, eu não vou entrar em todas as cruzadas e mesmo no grupo dos meus amigos, eu não vou entrar em cada dividida. É igual no futebol: você não entra em todas as divididas. Não dá, entendeu? Não tem canela pra isso.

Cris: Haja energia.

Ju: Você escolhe suas batalhas, mas eu acho assim… É muito bonito ter homens que nem vocês aqui, falando isso, sabe? É assim, quentinho no coração, a gente sabe que o mundo está difícil e a última coisa que eu queria falar desse tópico é assim, coisa que se ouviu muito, é: “Pô, que que adianta tudo isso que tão falando, toda essa primavera feminista e na na na na e você vai para o Trending Topics no Twitter e tinha um #forçaMarcos, sabe? Que ano é hoje e tal?” Adianta, cara…

Peu: A gente não pode controlar tudo, cara.

Ju: Porque, assim, Roma não se faz em um dia. Você não vai mudar uma cultura de milhares de anos de um dia pro outro. Assim, a revolução feminista está sendo televisionada. A gente está vendo as coisas acontecer[em] muito rápido. Tem muita gente sendo deixada para trás que tava preocupado olhando outra coisa, não viu toda essa efervescência acontecer e está chocado com a rapidez da coisa. A gente que tá mergulhado nisso e olhando 24 horas, está apressado e querendo que corresse mais, mas está muito rápido. Em termos de sociedade, as mudanças que a gente está vendo são grandes.

Peu: E vem uma geração que é a sua filha, a sua filha, a minha filha [Ju: Cara, ela… Vixe. Nossa…] que vai ser uma geração muito mais sangue no olho.

Cris: Vocês não estão entendendo o que é revolução.

Ju: E não é só nossas filhas. Os nossos filhos. Estava na minha casa no, no… Sei lá, esses dias, um amiguinho da minha filha que tem a mesma idade que ela e eles estão desfraldando e tudo e ela não entende porque é que ela não pode fazer xixi de pé, ela ainda não entendeu a dinâmica da coisa e ela vê eles fazendo e quer fazer e você explica e cai, molha a calça e tal, ela não entende e tal, beleza. E aí, enquanto eu explico isso para ela, eu ponho ela no piniquinho, ela senta, o menino senta ali, pra ver porque que é mesmo que ela não consegue, olha ali o que é que tem ali embaixo, qual que é a diferença e tal e, não sei o que é que eu falei para deixar ela feliz, eu falei: “Ah, não sei, você vai poder colocar um batom então”. O menino falou: “Posso botar o batom também”, “Pode, Caetano. Você pode botar batom”, “Menino põe batom?”, “Põe, Caetano. Menino põe o que quiser”, “Meu pai usa muito o batom”, “Usa mesmo, Caetano. É isso aí”. Então os meninos também estão vindo com outra cabeça. Essa geração que está vindo, vem para quebrar tudo; mas passinhos de formiga, a gente vai chegar lá. Acreditem, as coisas estão mudando.

Cris: E a gente deve ansiar por mudança, não é só por punição. As mudanças estão acontecendo e vamos continuar na alerta e na ativa para que elas sejam cada vez mais efetivas.

Ju: É isso, gente. Vamos para o Farol Aceso.

[Sobe trilha]

(Bloco 12) 1:51’00” – 2:00’59”

[Desce trilha]

Ju: Vamos então para o Farol Aceso? Kaique, o que você indica?

Kaique: Indico o livro das Mães de Maio que se chama “Mães em luta: 10 anos dos crimes de maio de 2006”. Organizado pelo jornalista André Caramante com prefácio da também jornalista Eliane Brum e são 10 perfis de mães que perderam os filhos para violência do Estado. Os 10 perfis são feitos por autores da Ponte Jornalismo, inclusive eu fiz o perfil de uma mãe, a Ivani Lira, de Mogi das Cruzes. Falando da Ponte Jornalismo também quero indicar e pedir para as pessoas participarem, ajudarem na campanha que a Ponte está fazendo no Catarse que é uma campanha de arrecadação, aí, para manter uma estrutura mínima de redação durante 6 meses e ter 3 reportagens especiais. Porque desde 2014 a ponte desenvolve esse trabalho voltado à justiça, direitos humanos e segurança pública totalmente de forma voluntária. Todos os repórteres lá trabalham de forma voluntária e agora com essa campanha, visa trabalhar 6 meses com uma estrutura mínima de redação.

Ju: Muito bem. E você, Peu?

Peu: Eu quero endossar o pedido para fortalecer a Ponte, que é um lugar em que eu vejo um trabalho de jornalismo investigativo, um trabalho seríssimo de apuração. E além disso é um trabalho que mostra o oprimido. Dá voz para quem não tem voz geralmente, e tem caras como o André Caramante, o próprio Kaique, o Luís Adorno, que é um excelente repórter, o Juca Guimarães, que trabalha com a gente no R7 também, o Fausto, que é um cara muito foda também, e uma galera que é muito dedicada. E que a Ponte precisa disso pra dar um passo, sabe assim? Então eu endosso o pedido do Kaíque.

Cris: O Mamilos também.

Peu: E eu queria indicar a página Cacarecos Craft que é a página da Clarisse Batusanschi, a minha mulher, Clá Batu, a minha esposa, minha companheira e a mãe da Betina.

Ju: O que é que tem nessa página, Peu?

Peu: A Clarisse faz, ela começou a fazer crochês, crochê ela faz há bastante tempo, mas ela começou a fazer uma técnica japonesa chamada Amiguruni pra fazer um ursinho pra Betina. Ela postou uma foto lá e começaram a falar: “Ah, mas você vende?” e não sei o quê e isso foi virando uma coisa maior. Ela começou a fazer encomenda, começou a não dar conta das encomendas e agora ela tá num momento em que ela faz as criações e bota pra vender, e tá dando algumas aulas, tá fazendo uma série de coisas. Sigam a Clarisse no Cacarecos Craft. Tem Facebook e Instagram e é isso.

Ju: E você Cris, o que é que você tem?

Cris: Então, essa semana eu vou acabar indicando uma coisa um pouco a ver com o tema que a gente falou aqui. Em 2005 foi feito um filme inglês chamado Hooligans que fala um pouco sobre as torcidas organizadas inglesas, sobre um rapaz que vai morar com a irmã e acaba… ele é um jornalista, começa a investigar, fica extremamente envolvido com aquilo. Narra um pouco dessa sociedade mais patriarcal, de como ele se envolve emocionalmente com aquilo e as consequências que existem numa sociedade pautada muito pela violência. É bastante interessante, claro um pouco caricato, mas traz ali uma visão sobre canalização da violência, mas também sobre irmandade.

Peu: E nesse filme o vilão, né, que seria o cara briguento, ele acaba sendo construído, né? Como um cara…

Cris: [Interrompe] Ele é um anti herói.

Peu: Ele é um anti herói, é bem interessante essa visão.

Cris: É.

Peu: Eu queria levantar um, pedir pras pessoas olharem também o trabalho do Gabriel Uchida, que foi um cara que ajudou muito a gente a fazer esse especial. É um amigo muito querido e é uma pessoa que está dentro das torcidas de alguma forma, agora não que ele tá morando em Rondônia há muito tempo, ele tem feito um trabalho lá muito importante. Mas enquanto ele estava aqui, ele tem um trabalho nas torcidas de São Paulo e em outros lugares também, ele fez um trabalho na Argentina e ele consegue chegar onde a imprensa não chega e ele é um excelente fotógrafo, ele tem um material de torcidas que é raríssimo…

Cris: [Interrompe] É muito bom, o processo visual dele disso.

Peu: Que é o Foto Torcida.

Cris: Eu vou indicar também um documentário do Netflix chamado Free the mind. A gente já falou aqui sobre o quanto que a gente ficou encantada com o curso de mindfulness que nós fizemos e o Free the mind é a respeito de um neurocientista que explica o funcionamento do cérebro sobre determinadas questões e ele mostra a aplicação das técnicas de mindfulness pra três pessoas que estão sofrendo problemas bastante crônicos: dois rapazes que voltam da guerra com um choque pós-traumático e não conseguem se ressocializar e uma criança, que deve ter uns 5 anos, que sofre de uma ansiedade extrema e não consegue se socializar. Essa criança só de falar que precisa entrar no elevador ela começa a chorar, porque ela não consegue suportar a pressão de ficar um tempo ali e associar a espera, a demora, ela não tem proporção, o pânico que ela tem das coisas. E como trabalhar o controle da mente ajuda essas pessoas de uma maneira extremamente efetiva. É muito difícil ver as pessoas sofrendo como é retratado no filme, principalmente uma criança, um outro pai de família que ele tem crises de ansiedade absurdas e como que as técnicas de mindfulness substituem até medicação em alguns casos, em outros trabalha em paralelo. É um documentário rapidinho, ele tem uma horinha e pouco. Recomendo muito porque vale a pena ver como que isso acontece na prática. Ju, e aí, o que é que você manda?

Ju: Bom, primeiro, pra ficar no tema, sobre o Trending Topics 1, sobre guerra, eu indico um filme, da série de filmes pra ver no avião, do Guga Mafra. Eu assisti no avião War Dogs, que é com o Jonah Hill e Milles Teller, que é aquele moleque do Whiplash, sobre como funciona o mercado que a guerra movimenta. Então assim, já tem o Senhor das Armas que é um puta filme, esse filme tem uma pegada mais divertida, mais leve. Esses dois caras são sensacionais, a química deles é muito boa, mas é muito bom pra gente entender o que é que tá por trás, né? Porque quando a gente analisa no programa, você analisa quais são os conflitos étnicos, quais são as questões territoriais, quais são as questões humanitárias envolvidas. Mas no final de tudo a grana move muito e manda muito também, né? Então é bem interessante como complementar pra essa discussão assistir esse filme. É um filme gostoso de ver, apesar do tema ser duro, é um filme muito bom, ritmo bom, ele é ótimo. E além disso é porque não dá, né? Tá difícil, várias pessoas vieram conversar com a gente, de que a sequência de temas que a gente tá levantando são temas difíceis de falar, árduos de falar, e que no final a gente não tem um pote no final do arco-íris pra oferecer. Não tem nada de: “Olha gente, a gente vai resolver a questão da Síria, a gente resolve aqui em 3 anos…”

Cris: [Interrompe] “É só fazer isso aqui, ó…”

Ju: “Tá aqui, ó. Sabe esse sistema prisional? Tá é assim, se fizer isso aqui tá resolvido. Previdência: resolvendo isso aqui ó, já, entendeu?” Não tem, então assim, a gente tem uma série de problemas que não tem solução, que a gente não vê o fim desse túnel. A gente precisa de comédia, né? Então eu recomendo o Louis CK 2017 que lançaram na Netflix. Eu sou muito fã do Louis. Eu acho que o tipo de humor dele, ele requer um tempo, uma adaptação, você virar uma chavinha porque ele anda muito no limite, né? Ele brinca tanto com esse limite, eu acho que essa coisa do especialista, de você testar o quão bom você é, sabe? Se eu for pra cá eu sou escroto…

Cris: [Interrompe] É tênue.

Ju: Se eu for pra cá eu sou comediante. Ele desafia isso o tempo inteiro, tem horas que você fala: “Que escroto cara, eu não acredito que você fez piada com isso.” Mas sempre naquele limitezinho, sabe?

Cris: Acho que você fala assim “[Risos] Que escroto!” Você fica rindo que nem um escroto.

Ju: Cara, a gente riu do início ao fim, o Merigo assim, chorando, passando mal, dobrando de rir assim, e é interessante porque depois você pára pra rir… aquele negócio que a Cris sempre fala, né? Sobre o que você ri fala muito da sociedade, né? Sobre as coisas que você acredita e tal e eu acho que ele é muito consciente nisso, ele é um cara muito bom no que ele faz, então ele te faz rir de coisas que você não deveria rir pra que você pense sobre essas coisas. Então assim, é muito crítico o humor dele, é muito ácido, é muito autodepreciativo, é muito cínico, né? Ele mostra muito, é um retrato muito do nosso tempo, do nosso mundo, de quem a gente é, do momento que a gente tá, enfim, eu acho a experiência divertidíssima e ela ainda te ensina, e ela ainda te faz crescer e ainda te faz questionar um monte de coisa. Recomendo então Louis, tudo o que ele fez, pode assistir, mas a última coisa é esse especial na Netflix.

Cris: E nós temos uma convidada especial que veio nos visitar hoje, far far away, e a Jaque vai dar o Farol Aceso dela aqui. Vem aqui contar pra gente, Jaque.

Jaqueline Félix: Bom, eu vou recomendar um podcast específico, é o Rapaduracast 400…

Cris: [Interrompe] Você é muito cara de pau, vem no Mamilos recomendar outro podcast? Você tá demitida ,Mamileira.

Jaqueline Félix: Desculpa ,mas… [Risos da Cris] foi por causa da Mamilândia que eu comecei a ouvir outros podcasts porque eu só ouvia dois.

Cris: Eu vou dar um jeito de entrar nesse lugar. Conta!

Jaqueline Félix: A Lu tem um passaporte.

[Risos]

Jaqueline Félix: Eles comentam sobre o filme “Que horas ela volta” com a Regina Casé, se eu não me engano é do ano passado, de 2015, eu não me lembro. É de 2015.

(Bloco 13) 2:01’00” – 2:03’25”

Jaqueline Félix: Eu tinha visto o filme… Para mim é um pouco complicado ver filme brasileiro, né, porque eu não moro mais aqui, então não são todos os filmes que chegam onde eu moro. É uma crítica muito legal. Tem uns pontos porque é uma… Para quem não viu o filme, é a relação da empregada doméstica que “é da família” só que, né, não além da cozinha…

Cris: [interrompe] Só que não.

Peu: [interrompe] Só que não.

Jaqueline Félix: Exato! Não além da cozinha e aí tem a filha dela que vai prestar vestibular, enfim… Aí tem muitas questões, muitos vieses, e as entrelinhas dessa relação, de todos os personagens e também tem alguém que fala sobre linguagem de cinema e o quão maravilhoso foi o trabalho da diretora nesse filme e são pontos que eu tinha só percebido, mas eu não tinha ido tão profundamente e eles falam de uma maneira muito didática e é muito legal. Eu não sei se esse filme e depois a crítica me tocaram de uma forma especial porque venho de uma família [em] que a minha avó foi empregada doméstica e depois, né, muitos anos depois, quando eu e meu irmão nascemos, a gente também teve empregada doméstica e era uma relação também familiar. A minha avó sentia que ela era da família. Eu não sei o quanto que ela era na realidade e a gente também sentia que essas pessoas que trabalhavam para a gente eram pessoas da família e o quanto é, o quanto não é… É um pouco Game of Thrones assim, ninguém é tão bom e ninguém é tão mau, sabe? Fala da realidade de uma maneira muito próxima, falou para mim. E quando você começa a pensar quem são as empregadas domésticas dos seus amigos ou a sua mesma, empregada doméstica… Qual a relação que você tem… Foi uma coisa assim muito tocante… Foi uma coisa muito grandiosa a forma com que todas essas questões foram tratadas.

Cris: É muito interessante, né? Só lembrando que “empregada doméstica” vem do verbo “domesticar”, de tornar aquilo somente seu, né, de guardar numa caixinha. Então é isso pessoal. É isso, é isso, é isso?

Jaqueline Félix: É isso.

Cris: Fica a gostosa sensação de mais um Mamilos no ar. Jackie, obrigada pela visita internacional. Rapazes, obrigado por estarem na mesa. Pessoal, beijo. Valeu! Tchau.

[Sobe trilha]