Jornalismo de peito aberto
Este programa foi transcrito pela Mamilândia, grupo de transcrição do Mamilos.
Transcrição Programa 101
Este episódio foi transcrito por: Carla Rossi de Vargas, Beatriz, Luana Carrilho, Luciana Machado, Francine Dalapícola e Letícia Dáquer. Revisado por: Carla Rossi de Vargas
Início da transcrição:
(Bloco 1) 0’ – 10’59”
[Vinheta de abertura]
Esse podcast é apresentado por B9.com.br
[Trilha]
Cris: Mamileiros e mamiletes, bem-vindos ao Mamilos 100/2, o Mamilos 101! Eu sou a Cris Bartis.
Ju: E eu sou a Ju Wallauer.
Cris: Nós estamos aqui mais uma semana pra abraçar vocês com essa polêmica. Não se desesperem: quem achou que o problema não tinha solução no programa passado, agora vai ver que existe, sim, algumas conversas sobre diferentes caminhos que podemos seguir. Vamo lá?
Ju: Bora! E o Beijo Para? Jessica, mãe da Samanta, de Belém; a gente aaaama quando as mães começam a ouvir o Mamilos e o almoço de domingo fica muito mais polêmico.
Cris: Beijo pro Alex, em Curitiba.
Ju: Pra Mineiros, em Goiás.
Cris: Pra Jessica e Alisson, primos que escutam o Mamilos. Eita, natal maravilhoso!
Ju: Fale com o Mamilos: estamos no Facebook, no Twitter ou na página do B9. Você também pode nos mandar e-mail pro [email protected].
Cris: Pode falar, porque tem uma equipe deliciosa, cheirosíssima aqui esperando seu contato. Quem faz o Mamilos é um monte de gente: começando pela edição, com o Caio Corraini; redes sociais, com Luanda Gurgel, Guilherme Yano e Luiza; apoio à pauta com a Jaqueline Costa e graaaande elenco e a transcrição dos programas com a Lu Machado e a linda Mamilândia.
Ju: Se você ama o Mamilos e quer que ele continue sendo feito, ajude o Mamilos a ser mais sustentável. Contribua no Patreon: patreon.com/mamilos.
Cris: Essa semana tem merchan: durante todo o mês de março de 2017 acontece a campanha “O Podcast É Delas”, que é para gerar maior visibilidade e espaço para mulheres na mídia. Os episódios especiais trarão assuntos voltados para o empoderamento feminino e darão espaço para mulheres falarem. São mais de 35 participantes oficiais envolvidos no projeto, entre podcasts, blogueiros, canais de YouTube. De literatura a cinema, esporte a viagens, cultura pop a estilos de vida, os programas trazem conteúdos especializados em suas temáticas para todos os ouvintes. Basta encontrar os temas que você gosta usando a hashtag oficial e ouvir.
[Trilha]
Ju: E vamo pro Fala que eu Discuto? Vou começar com um e-mail bem polêmico, do Alex Medeiros, de Curitiba, que a gente pinçou porque pode refletir o que algumas pessoas sentiram depois de escutar o programa: “Bom dia, meninas! Gostei muito do último podcast. Concordei com muitas coisas apresentadas no episódio. Concordo que o sistema prisional deve servir pra remodelar o indivíduo pra reinserir novamente na comunidade. Já sobre a parte de regalias de presos… sinceramente, ainda acho que são, sim, regalias. Tem pessoas, vocês já devem saber disso, que vivem abaixo da linha da pobreza, vivem com muito pouco, e outras que não conseguem entrar no benefício de programas sociais, porque um dos requisitos é ter renda mensal, por pessoa, de R$ 130, ou seja, não consigo receber esse benefício porque recebo um pouco mais do que o requisito exige, mas tenho aluguel, filhos, esposa desempregada, entre outras coisas. Não posso adoecer, pois sou o único provedor da minha casa. E mesmo assim, nunca desviei do caminho. Os presos, por outro lado, não precisam se preocupar com isso. Eles têm almoço na hora certa, não têm conta pra pagar, têm um teto. E ainda tem uma taxa que a esposa recebe, pois seu provedor está preso e não tem como sustentar. Já que o Estado nos dá exatamente “o mínimo”, acho que os presos também deveriam ter o mínimo. Vocês falaram que eles não têm como se virar lá dentro. Eu concordo. Mas eles também têm a “liberdade” de não precisar se preocupar com problemas diários que todos os brasileiros têm. Se nós fizemos tudo certo e não temos o suficiente, por que que eles têm que ter mais do que a gente? Ter um suficiente plus? Conheci um ex-presidiário que trabalhava como camelô. Quantas vezes ele chegou pra mim e falou: “aqui tenho que ralar pra ter o almoço todo dia, já na cadeia, não tinha que me preocupar com isso.” Não tô generalizando, mas isso me fez pensar muito. Acho que eles deveriam merecer o que tem lá. Tem várias ONGs que precisam de voluntários; vários asilos, onde faltam pessoas pra ajudar; colocar pra fazer manutenção em escolas, por exemplo. Seria um ganho pra todos e eles não teriam, assim, o que eu vejo como regalias. Espero que entendam o que eu tentei expor em meu comentário. Abraços e um beijo.”
A gente falou bastante disso no programa, né, Cris? A gente entende que isso é um problema, né, uma dificuldade, a gente não minimiza essa preocupação – e por isso que a gente até falou no programa – mas eu acho que pelo menos a gente tentou demonstrar como a conclusão que se tira disso, que é: bom, já que grande parte da população não tem acesso, eles também não deveriam ter, a prática dessa conclusão gera problemas muito sérios, tanto em relação a questões, dilemas morais, quanto a relação com problemas práticos, que é você dar toda a infra-estrutura, ou dar o ambiente pra que organizações criminosas se fortaleçam na prisão; porque se você não provê o mínimo, alguém vai prover isso.
Cris: Vamo lá pra Tainara Miranda Barroso: “Oi meninas! Completando o final da discussão, podemos destacar que a filosofia de Foucault se faz mais presente na nossa sociedade, em que as escolas, os presídios e os manicômios não educam o indivíduo, ou seja, não ensinam como viver em sociedade, apenas focam na disciplina tornando-se, assim, as instituições de sequestro.“
Ju: O Luis Eich disse: “sobre esse episódio número 100, era o que eu precisava. Nunca fiquei tão perdido sobre um assunto quanto esse. Sempre fiquei dividido entre ideias bem básicas e superficiais pros dois lados. Era influência do meu convívio social, que via na questão um Estado pouco punitivo, ouvindo até comentários como: ‘tinha que matar tudo’, contra aquela voz mais de humanas na minha cabeça, que dizia: ‘não, pera, não é bem assim!’. Creio que foi nesse episódio que começou minha jornada de aprofundamento no assunto, agora muito bem acompanhado de informações e dos mais diversos pontos de vista para análise.”
Cris: Juliana Maia: “ótimo episódio, Mamilos! Queria poder escutar ao mesmo tempo este episódio e o episódio sobre meritocracia, porque a relação entre os temas é muito grande. Não adianta o sistema prisional querer a ressocialização, quando fora das prisões sequer há socialização. Ou melhor: a gente sabe que a socialização é completamente distinta conforme a camada social. A prisão é, em última análise, o pior castigo que a meritocracia dá para aqueles que sequer tiveram condição de competir no mundo lá fora. Quando vocês falam, no final do episódio, das semelhanças entre escola e prisão, na verdade não é que a pessoa bombou e foi para a recuperação; ela nem chegou a entrar nessa escola. Aguardando ansiosamente a próxima parte dessa Teta. Um beijo, Juliana – advogada pós-graduada em ciências criminais e atualmente concurseira visando à carreira de defensora pública pra entrar nessa treta.”
Ju: O Fabrício Belgrano falou: “Meninas, só pra esclarecer: Eppendorf é uma marca que vende os chamados microtubos mais famosos do mercado. A gente usa todo dia em laboratório de pesquisas e análises clínicas para armazenagem, reações químicas, etc. Então: Eppendorf = tubo pequeno.”
Cris: Ramona Azevedo: “Fui olhar a lista de participações e bateu um orgulho danado de ver que tem o Samuel Lourenço. Conheci a história dele no Projeto Humanos e foi incrível. Recomendo o podcast com a história dele para todo mundo.” Ela tá falando do ”Projeto Humanos número 27”, “O Eterno Devedor”, e a gente também recomenda, é bem bem bem legal.
Ju: A Aline Lacerda, pelo Twitter, disse: “comecei a ouvir o Mamilos sobre sistema prisional pensando que isso é uma faca de dois gumes. Terminei pensando em quantos gumes uma faca pode ter.”
Cris: A Rafa disse: “Fazendo aqui um maxi crochê e ouvindo o @mamilospod. Imagina quando chegar aos trinta? Eu espero ter encapado todos os meus eletrodomésticos até lá.” [Risos]
Ju: Fofa! Deu um quentinho no coração essa foto, Rafa, [Cris: bonito, né?] muito fofa!
Cris: Legal! Vamo então pro programa.
[Trilha]
Ju: Vamo então pra Teta, gente? É a parte 2 da Teta de Sistema Prisional. Agora a gente vai falar um pouco sobre caminhos, tentativas, alternativas, soluções pra gente melhorar o nosso sistema caótico, o nosso sistema prisional. Estamos de novo, assim como na semana passada, com o Lucas. Lucas, se apresente, quem é você na fila do pão?
Lucas: Bom, eu sou o Lucas, eu continuo sendo advogado, ainda pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal com ênfase em criminologia, e nas horas vagas eu ainda tenho um podcast, ele não morreu da semana passada pra agora, ainda bem.
Ju: Muito bom. E você, Ariadne, quem você é?
Ariadne: Continuo sendo a Ariadne Natal, [risos] sou socióloga, doutoranda em Sociologia na Universidade de São Paulo e sou pesquisadora no Núcleo de Estudos da Violência da USP.
Ju: E aí, Cris, que que a gente vai falar essa semana?
Cris: Vamo dar um alívio pro pessoal, né? Que o pessoal ficou a semana inteira: “meu deus do céu, não dá pra resolver isso, é muito problema, o problema é grande demais, eu quero desouvir esse programa, porque não vejo saídas…”
Ariadne: Deixa só eu contar uma piada aqui, que sociólogo faz com frequência, que é: “olha, apontar problema, a gente aponta, mas se for pra trazer solução, aí vai ser bem mais caro”.
[risos]
Cris: Então, Mamilos é de graça e essa semana a gente vem com alguns possíveis caminhos pra esse problema tão complexo e tão grande, envolvendo tanta gente que a gente comentou.
Ju: Vamo começar com as soluções de curto prazo e a gente vai conversar com o Flávio Berneira, presidente do Sindicato dos Servidores Penitenciários do Rio Grande do Sul.
–//–
Flávio: Queremos uma segurança pública adequada, efetiva, que se faça os investimentos nos presídios e penitenciárias do nosso país. Investir na contratação de servidores, na qualificação de servidores, se investir na humanização do ambiente prisional, ou então continuaremos aí encarando os presídios como universidade do crime, como se constata, infelizmente. É investir-se na contratação e na qualificação de servidores, investir-se na humanização dos espaços prisionais, é investir-se no fim da reincidência, na separação do indivíduo por tipificação, é o Estado fazer o seu papel. O Estado ocupar o ambiente prisional e lá, quem sabe, dar um frio no aumento da criminalidade, na organização das facções criminosas e na reintegração do indivíduo preso.
(Bloco 2) 11’ – 20’59”
Flávio: Se nós não concordarmos com isso, meus amigos, então temos que mudar a lei. Temos que passar a admitir que o sistema prisional, então, terá uma única missão: que é o encarceramento puro e simples. Enquanto a lei não for alterada, enquanto esta for a vocação e o fundamento do sistema prisional, nós temos que tirar isso apenas da lei e da didática e fazer os investimentos efetivos, sob pena de nós vivermos aí um futuro muito triste, como já tem se avizinhado, tem se mostrado nos diferentes estados do nosso país. Pra que se chegue a esse ponto, é preciso que se faça a escuta daqueles que estão lá, de anteparo a toda essa crise: os servidores penitenciários precisam ser levados a sério e precisam ser escutados na hora que se estabelecem as políticas públicas prum setor tão nevrálgico quanto o sistema prisional. O sistema prisional se constitui de um serviço público que, sob o ponto de vista eleitoral, nunca foi interessante aos diferentes governos e governantes fazer os investimentos. É o tipo de serviço público que, inclusive, a própria sociedade resiste que se faça investimentos. Basta ver que, em regra, as prefeituras, os municípios sempre criam dificuldade aí por ocasião da construção de presídios aí nas diferentes cidades, seja em que estado do país se pretender construir um presídio. Isso faz com que os investimentos sigam a mesma lógica: na medida em que é um serviço público que não traz nenhum tipo de dividendo eleitoral, não capitaliza eleitoralmente os governantes, não se fazem investimentos. Em que pese a legislação preconizar que o sistema penitenciário deva oferecer aí dignidade aos condenados e mais ainda, oportunizar que esses, ao longo do tempo em que estiverem encarcerados, sejam submetidos ao tratamento penal, a uma série de políticas públicas que deveriam criar aí uma nova perspectiva àquele condenado, pra que ele possa, no encerramento da sua pena, estar retornando à sociedade, como disse, com uma nova possibilidade de vida e não mais incorrendo no crime.
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Ju: Então, ou seja, a primeira solução é: show me the money.
Ariadne: É óbvio que ele é um lugar de fala do agente penitenciário, né, que, enfim, é o funcionário desse sistema, tá pensando a partir da perspectiva do próprio sistema em tentar encontrar soluções pra ele funcionar melhor, mas… – enfim, reformar a forma de funcionamento – mas ele não tá pensando em mudanças estruturais, então aqui, como a gente tá colocando, são mudanças pontuais…
Ju: [Interrompe] Não, mas é que a gente tá fazendo curto – médio – longo prazo. Então, assim, nesse primeiro momento, enquanto as grandes mudanças não acontecerem, você tem que cumprir o que já tá na lei, você tem que conseguir fazer o sistema rodar. Então, a primeira coisa é show me the money, tem que abrir o bolso. E aí que eu acho…
Ariadne: [Interrompe] E aí que você vai entrar em conflito com a ideia de: “ué, mas… a gente não quer gastar mais, né?”.
Cris: Exato!
Ju: E aí eu acho que tem uma coisa da Polícia Civil, da escassez. Que dinheiro não dá em árvore, entendeu? Então assim, na verdade da onde você quer tirar? Não tem problema, a gente já teve um programa longo pra explicar porque que a gente precisa desse dinheiro. A gente precisa, de fato, fazer investimento em sistema prisional, a gente precisa de mais vagas, a gente precisa de vagas com mais qualidade, a gente precisa de um trabalho que custa dinheiro e que hoje essa verba não tem. Da onde a gente vai tirar?
Ariadne: Eu queria só questionar uma parte da sua fala, “a gente precisa de mais vagas”. Eu não sei se a gente precisa de mais vagas ou se é uma questão que, enfim, é de longo prazo, mas você não precisaria ter todas essas pessoas dentro de um sistema penitenciário. Criar mais vagas é uma…
Ju: [Interrompe] É, mas aí é uma mudança de médio prazo, agora… amanhã… né?
Cris: Não sei, viu, porque se você pensar que tem um contingente gigantesco que ainda não foi julgado, você poderia muito mais a curto prazo falar: vamos fazer a força tarefa pra analisar esses casos que são temporários e tomar uma decisão, porque aí você consegue ver o tamanho da população carcerária real e não as pessoas que tão lá ainda aguardando julgamento. Então de repente se você resolver esse problema, o que tem de vaga pode ser que seja suficiente.
Ju: Mas ainda que seja essas vagas, as pessoas que ficarem na vaga tem que ficar melhor, então assim, de qualquer maneira você precisa de mais investimento.
Lucas: E a nossa narrativa parece um pouco contraditória, se vocês voltarem no programa anterior, a gente fala assim: “olha,…” sobre seletividade punitiva, então a gente fala: “olha, a gente tá punindo um grupo e não punindo o outro. O ideal é punir os dois.” Punir os dois é mais gente. Então…
Ju: [Interrompe] Sim, mas punir não é igual prisão, gente, vamos desconstruir isso, é importante.
Lucas: É que o nosso sistema, hoje, ele prevê prisão e hoje, assim: ele vai chegar na prisão. Pode ser que a gente discuta quais vão pra prisão, quais não, mas a gente não tem sistema hoje que não tenha nenhuma prisão. A gente não tem, na literatura, pessoas capazes de imaginar um sistema de punição diferente de prisão.
Ju: A questão é que ela não pode ser o único e ela deve ser aplicada em determinados casos e não em todos. É só isso.
Lucas: Concordo com você, mas a gente também não pode esperar que… A gente já tem as vagas, do jeito que tá, com aquela cela que não tem privada. Então assim, mesmo que a gente fale assim: “vamos manter o número de vagas”, mas aquilo tem que melhorar.
Ju: Sim, exatamente.
Ariadne: Eu acho que tem uma questão anterior a tudo isso e a todo esse debate, que é: antes de qualquer coisa, você não muda aquilo que você desconhece. Se você tentar entender como é que funciona o sistema carcerário, se você tentar entender… os números não são confiáveis, a gente não tem o básico do básico do básico. [Cris: Isso é muito assustador!] A gente não tem dimensão do problema, então assim, você tem que começar pela coisa assim, mais elementar: diagnóstico. Qual que é o tamanho do problema? Quantos presos você tem? Quantas vagas você tem? Esses presos, eles tão em que condições, eles tão em que momento desse cumprimento? Eles são provisórios? Quantos já cumpriram a pena e tão lá dentro? Assim, você tem que começar pelo mais elementar, que é você tentar traçar um diagnóstico e pra isso você precisa de dados. E pra você ter dados, você precisa de mais transparência e você precisa de interesse nisso. A coisa é tão maluca, que vira um depósito de pessoas, a ponto de nem se importar em tabular, quem entra, quem sai, como entra, como sai; e de fato, gerar dados confiáveis nacionais. A gente não tem nem o mínimo, esse elementar pra começar a conversar. Não tem como cê conversar sem isso, pra você de fato pensar em soluções.
Cris: Eu achei muito interessante quando questionaram o ministro da justiça sobre o número de presos e ele falou: “eu não sei”. E aí o repórter falou: “peraí, mas você não é o ministro da justiça? Como é que você não sabe?” E ele falou: “Cê não tá entendendo. No Brasil as coisas são feitas pra você não saber. Eu não tenho de onde tirar esse dado.” Então quando o ministro da justiça fala isso… [Ju: Caramba!] cê vira e fala assim: “beleza, temos um problema!” Então, o próprio IPEA, que deve, aos trancos e barrancos, tentar levantar os números lá, mas isso foi uma grande surpresa pra mim, particularmente, quando eu tava lendo sobre a pauta, porque você não acha dados. Não tem riqueza. E quando tem, os dados são muito diferentes uns dos outros. E aí cê não sabe no que confiar.
Ju: Porque cê não tem um padrão único pra produção desses dados, né, então, cada estado, cada penitenciária vai gerar de um jeito, não tem padrão, não tem sistema, não tem pessoas treinadas ou capacitadas pra fazer aquilo e pra gerar… e porque é um tema relegado a último… à prioridade zero, a ponto disso, a ponto de você nem saber o tamanho dele.
Lucas: E sabe qual que é o mais bizarro disso tudo? É assim, cê fala: “meu, tem muita gente, não tem”, mas todo condenado passou por um processo, que é uma das coisas mais documentadas e burocráticas que a gente tem. Todo preso tem um processo. Então você pode, você tem a materialização do: quanto foi a pena; pra onde ele foi; qual o nome dele; que crime ele cometeu; da onde ele veio. Isso tá lá. Falta realmente interesse e vontade de pegar tudo isso, selecionar, buscar em arquivo, sistematizar. Tudo bem, a gente tem no Brasil processos que tramitam ainda hoje em papel. No Estado de São Paulo. Então a gente sabe que o Judiciário não é o melhor órgão pra estatísticas e evoluções tecnológicas nesse sentido. Novamente, você tem que ter interesse e vontade. E eu acho que isso volta um pouco no programa anterior, que é o seguinte: por que que a gente não faz isso? Porque a gente trata como massa, a gente não individualiza. Eles deixam de ser…. você não interessa mais, depois que eles estão presos, quem é cada um. Quem é o João, quem é o José, quem é o Pedro. Você sabe que naquela cela tem uma porrada de cara, que tá acima do máximo. Cê vai falar: “meu, não tem como colocar”. “Não, vai colocar”. Porque cê não tem como falar pra alguém, assim ó: “gente, não tem mais como colocar presos. A gente vai colocar todos eles na rua agora. Todos esses caras. Desde o pior assassino, até o estuprador, a gente vai ter que colocar na rua, porque não tem mais vaga.” Eles vão enfiando, enfiando, enfiando, você tem essa coleta de dados que é totalmente ineficiente, que a gente, pra pesquisa, vocês viram, eu já tinha feito esse tipo de pesquisa, o CNJ tem dados, assim, péssimos, dados muito simplórios e que não têm confiabilidade, a própria questão da reincidência tem dados totalmente discrepantes de dois órgãos diferentes.
Cris: Um com 70 e o outro com 24%. Oi? [Risos]
Lucas: Claro que aí tem a questão do que que você considera reincidência, tem uma questão legal da reincidência, que você fala: “reincidente é só o cara que ele cometeu depois do trânsito em julgado.” Então se eu cometi um crime hoje e um crime amanhã, juridicamente eu não sou reincidente, porque eu não fui condenado pelo primeiro. Eu sou reincidente se eu cometi o primeiro, fui condenado e depois dele, pratiquei outro. Então falta unificação.
(Bloco 3) 20’ – 30’59”
Ju: Critérios diferentes, né, dados diferentes. Eu acho interessante, então assim, vamos fazer a nossa, o nosso crescente, né. Então primeira coisa, realmente, a gente tem que conhecer o problema, diagnosticar o problema. Conhecendo o problema a gente tem que reconhecer a importância dele, senão a gente não se move, e para reconhecer a importância dele a gente precisa realmente ter uma discussão com a sociedade, porque, neste momento que a gente tá, a gente teve um programa bem detalhado sobre PEC. Então te falo assim: Ó, gente, é simples, você tem uma, uma receita, não vai passar daquilo a sua despesa. Então, pra cada coisa partir de agora, aprovada PEC, que a gente disser: “não, mas isso é um problema, a gente precisa aumentar”, ou você vai achar outra receita, que nem no caso, a PEC nem deixa isso, ou simplesmente você vai ter que tirar de outro lugar, você vai ter que diminuir uma despesa num lugar, para colocar despesa aí. E é isso que é muito difícil, é uma discussão política que é o que a gente tava discutindo, que ninguém quer ter, ninguém vai falar que não vai construir o hospital, que a gente já tá com uma demanda represada, porque vai melhorar o presídio, porque essa situação vai explodir no seu colo se você não resolver agora. Então assim, eu acho bizarro a dificuldade que a gente tem, porque o PCC, ele deu uma visibilidade pra esse problema, que fica difícil a gente colocar a cabeça embaixo da terra, e fingir que a gente não sabe que a gente tá com uma bomba relógio, entendeu? Porque quando os caras param a maior cidade do Brasil, e fazem a gente ficar de joelho e pedir para por favor a gente poder ir trabalhar, “por favor, posso levar minha filha na escola”, “por favor, a cidade pode funcionar, se você deixar?” Quando você faz isso com o PCC, cê tem que admitir que você tem um problema muito grande, e que isso é uma prioridade. Claro que tudo é prioridade, a educação é prioridade, saúde é prioridade, tudo é uma prioridade, mas a questão é: essa bomba impede a gente viver; é que nem o lance da água, quando faltou água em São Paulo, tipo, tem algumas coisas são muito urgentes.
Ariadne E assim, essa bomba, ela não nasceu de um dia para o outro. [Ju: Não.] ela foi construída de uma maneira paulatina e ela foi escamoteada, ela foi ocultada. A gente tem falas do governador dizendo que eram meia dúzia de presos, e que eles já estavam controlados, que o PCC não era nada, a gente tem fala do mesmo governador que hoje ainda governa esse estado falando isso, dizendo que aquilo não era uma ameaça, né. É, e a gente sabe da capacidade… se você, enfim, de alguma maneira você não enfrentar o problema ele só vai crescer, e foi o que aconteceu, o problema cresceu, né. Porque, quando você tá tomando decisões políticas e não decisões baseadas em escolhas que, enfim, pra de fato resolver problemas, você tá só preocupado em não deixar bomba estourar num prazo de quatro anos, é uma coisa, né, você só não quer que a bomba estoure no seu colo, e passa, passa adiante, varre pra baixo do tapete, segura aí, eu só não quero dor de cabeça, não é solução, tentar arrumar um remendo para sobreviver até a próxima eleição, parece que é isso, né. Só que aí o problema vai crescendo, vai crescer. E o problema prisional, as soluções que são colocadas, são sempre essas, esses paliativos que é para tentar dar uma sobrevida à situação, e não deixar ela explodir agora.
Cris: E a gente tem uma visão, a gente não costuma fazer visão holística de nada né, mas aí você fala: “olha, a gente tem que resolver educação, a gente tem que resolver infraestrutura, a gente tem que resolver saúde”, e quando a gente chega nos presídios, essa situação é menor. O que a gente não consegue perceber, é que muitas pessoas, a violência, a sensação de violência, ela causa muitas doenças, a sensação de violência fecha muitas escolas. Então na verdade, se a gente conseguisse ter uma visão mais holística sobre a sociedade, a gente entenderia que tratar as pessoas que estão reclusas permite com que você deixe de ter outros problemas. Talvez outros investimentos deixem em existir na área da saúde, porque a gente trabalha menos com a violência, as pessoas ficam menos deprimidas, elas têm menos síndrome do pânico, porque você deixa de ter uma sociedade com tanta violência. Então na verdade, se a gente tivesse dados realmente confiáveis, a gente poderia mostrar que investir na ressocialização trariam um benefício de menos [menor] índice de saúde, de infraestrutura, porque você tem menos dano ao patrimônio. Então dá para fazer. A gente trabalha em publicidade, e a Ju especialmente em planejamento, cê consegue justificar, cê tem que ter dados.
Ju: É.
Ariadne: É, e aí você consegue fazer análise de impacto. Tá, eu prendi tanto, qual foi o impacto disso, ou enfim, quanto, quantas pessoas foram ressocializadas, quantas pessoas reincidiram, é, o que que funciona, o que que não funciona, quais são as boas iniciativas, quais são as iniciativas que não deram certo. Aí você começa a fazer avaliação daquilo enquanto política pública, né, que é uma deficiência gigante, se você não tem informação você não consegue avaliar.
Lucas: Só que é a médio, longo prazo, [Ariadne: É, isso é a médio e longo prazo.] como você falou. É batata quente, [Ariadne: Mas assim, pra começar…] tá na minha mão, não posso deixar ela estourar, então eu vou segurar isso ao máximo, vou remendar, vou segurar aqui e passar pro próximo e falar: “meu, tô livre”.
Ju: É, falando em remendo, a gente entra nisso que a Cris tava, até citou, que é de fazer a força tarefa pro julgamento de preso provisório, e a Mirela, que é socióloga da Polícia Rodoviária Federal, ela citou isso pra gente:
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Mirela: Ações com o objetivo de diminuir a população carcerária ao invés de aumentá-la são passo prioritário para a melhoria do sistema. A curto prazo, por exemplo, eu acho que é super importante a criação de forças tarefa nos tribunais para julgamento desses presos provisórios. Porque o número é muito alto, principalmente porque a gente tá num país que não tem infraestrutura física pra arcar com isso.
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Ju: Então, só retomando, porque a gente tinha falado isso no último [Cris: programa] programa né, e entre os problemas, isso que a gente, definitivamente tem uma superpopulação, a gente não tem capacidade para atender, então, uma maneira de desafogar seria fazer essa força tarefa.
Cris: Um em cada quatro presos ainda não foram julgados, então quando a gente fala superpopulação, é: Olhe para o tamanho do sistema prisional, para o sistema prisional vigente, a gente tem uma mega super população e um encarceramento gigantesco.
Ariadne:Só uma questão, quando você tá pensando em superpopulação e em soluções, você pode pensar em dois caminhos, uma é: ampliar o número de vagas, que significa construir mais presídios, e que significa recursos; outra: tentar diminuir o número de presos, que aí é o tipo de solução que tá sendo discutida aí. E será que é possível você, é, diminuir vendo aquelas situações em que as pessoas não precisariam estar dentro de uma penitenciária?
Cris: É.
Ju: A gente tá construindo isso, vamos lá.
Cris: Acho muito interessante essa visualização, de: “Ah, o que que essas pessoas estão fazendo aí presas?” Então por exemplo, um exemplo claro que foi citado, numa dessas discussões que nós fizemos e ouvimos essas pessoas: “Ah, o cara tava num jogo de futebol, ele tava numa arquibancada de preço inferior, e ele pulou pra uma arquibancada de preço superior, e o cara foi preso” Aí eu te pergunto, por que que não só vira pro cara e fala: “Sua pena é: Você não pode ir no estádio mais, você vai ficar 5 anos sem frequentar estádio.” É uma pergunta que eu levanto. Então assim, será que a gente tem que prender todas essas pessoas? Ah, o cara, a pessoa… A gente viu um encarceramento significativo de mulheres, e muitas delas nesse lado periférico ao tráfico, que é, por exemplo, entrar com drogas dentro dos presídios nas visitas; pegou essa pessoa, levou e falou: “Você não pode mais entrar aqui para visitar”. Por que que eu tenho que encarcerar mais um? Então eu acho que a gente começa a fazer esses questionamentos, e, principalmente entendendo que, se essa mulher que levou a droga na revista íntima, ela é uma das 1 entre 4 que tão lá esperando julgamento. Porque aí foi uma ação imediata de encarceramento, vai ter todo o processo, talvez ela cumpra a pena antes de ser julgada.
Lucas: Aí o encarceramento provisório que é um problema também quando a gente pensa, hoje a gente tem a medida da prisão preventiva, que ela é usada aí, uns acham que ela é usada na medida da Lei, uns acham que ela é usada em excesso, por exemplo, do tipo: “Olha, prendeu, não tem trabalho, mantém como provisório porque ele pode fugir, ele não tem nada a perder” Ou a questão, usa-se muito por exemplo, para quem tem possibilidade de fugir pro exterior, é muito menor o número, mas seria a ideia de você proteger vítimas, proteger o processo em si e que esse cara não suma e você não consiga punir ele. E esse número é que a questão, esse número ele entra, mas ele entra de maneira confusa para a população carcerária, né. Eles deveriam ser diferentes, o preso provisório, ele não deveria ser tratado da mesma maneira que o preso pena, por uma maneira clara, que é, ele não foi condenado, você não aferiu ainda, se ele é, ou não, o autor de um crime. Só que, novamente, ele é colocado, é tão ruim quanto o preso e não tem diferença, no fim, no fim…
Cris: [Interrompe] Aqui no Brasil é: você tem que ser declarado… correr atrás da sua inocência, porque de cara cê já é culpado.
Lucas: Não é, então, exatamente, a prisão provisória, ela não deveria ser tão custosa, e assim, tão, tão rígida, e tão difícil da gente conversar, a gente não conversa, assim, não tem debate jurídico sobre prisão preventiva. Você tem hoje aqui em São Paulo, as audiências de custódia, que elas são, elas foram implantadas para que, qual que era a discussão que tinha: Olha, quando você tem prisão em flagrante, a medida é, em 24 horas você tem que, ou converter em prisão preventiva, ou você vai soltar essa pessoa. Muitas vezes isso era feito, o delegado encaminhava o flagrante pro Ministério Público, o Ministério Público se manifestava, o juiz olhava ali a manifestação e decidia por soltar, ou manter a prisão preventiva, sem oitiva do próprio réu, né, o futuro réu, o preso. Agora você tem em São Paulo, aonde ele em 24 horas tem que ser apresentado a um juiz, que é o juíz que a gente chama de Juiz de Garantias, mas que ele vai ser, ele vai olhar e falar assim: Olha, ele vai verificar se aquela prisão, ela é necessária, se ela não foi feita de maneira irregular, se ele não apanhou, se realmente, então. Então, ele não auferir crime ou não, assim: Foi você o autor? Ele não vai chegar nessa parte. Isso é depois para o processo, ele vai falar: Olha, essa prisão, ou esse pedido de prisão, essa conversão da prisão em flagrante, prisão preventiva, ela é necessária? E ela é uma medida que cumpre assim as funções da prisão preventiva? Isso é um avanço. Muita gente foi contra, por achar que demora mais, que você precisar de mais, você precisaria de mais contingente de juiz, mais promotores, você precisaria de mais espaço. Então muita gente critica, por uma questão de inflar muito o judiciário, criando novas sub-etapas que podem demorar, mas é uma, é uma medida é que ela é muito racional, e ela, assim, muito difícil você comparar antes e depois, no sentido de, porque o cara não passou, não vai passar de novo por isso, pra você saber se caso dele vai ser revisto, mas você tem caso onde o juiz, depois de ouvido, ele manda soltar. Coisa que talvez não acontecesse, se não tivesse ouvido ele, ou se ele tivesse passado, esse, se ele ia ter, assim, esse informal que é: do réu pro promotor, do promotor pro juiz, o juiz despacha, sem nem, dar a decisão dele, sem ouvir advogado, sem ouvir o próprio réu, sem, às vezes ver um laudo de corpo de delito pra ver se o cara apanhou, por exemplo. Então, isso é uma evolução pra, assim, impedir essa desnecessidade da prisão preventiva, e o caminho eu acho que, por mais que lento, ele tem sido nesse sentido, de: gente, será que o preso provisório precisa mesmo? Será que, esse cara que tá preso preventivamente, ele ainda oferece risco?
Ju: Vamos ser mais radical [radicais]? Vamos ver se a gente precisa… A maior parte da nossa população carcerária, como a gente falou no último programa, ela vem de prisões relacionadas a tráfico de droga. Pra introduzir a discussão sobre como que a gente começa a resolver o problema de seletividade das cadeias, a gente vai ouvir o depoimento da Thaís Duarte, que é socióloga e doutoranda em Relações Afetivas no Cárcere:
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Thaís Duarte: É fundamental que se repense a Lei de Drogas, por exemplo. A Lei de Drogas tem uma ambiguidade, né? De maneira que não é possível discernir de forma objetiva quem é o usuário e quem é o traficante de drogas. Então, fica a critério desses órgãos do sistema de justiça criminal que eu mencionei definir em qual perfil a pessoa se enquadra. E a consequência disso é a criminalização de populações mais pobres. Em geral, o juiz, o promotor acaba compreendendo uma pessoa pobre como traficante ao passo que um indivíduo com um perfil diferente por ter características de pessoas de classe média são vistas como usuários. Isso é um problema social gravíssimo, perpetua as desigualdades que assolam o nosso país.
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Ju: A guerra contra as drogas, ela tem esse custo muito grande pra gente. Então, onera o estado por entupir a cadeia de gente e aí isso é uma demanda que vem crescendo. A gente fez um programa sobre Drogas – o Mamilos número 3 é sobre droga e ele fala tanto da ótica do usuário quanto da ótica da luta contra as drogas, como faz cada vez menos sentido essa abordagem de proibição.
Ariadne: É porque basicamente ela não é eficaz, né? Quando você tá pensando em drogas, você tá pensando em um produto que tem uma demanda; você tá pensando em, enfim, pessoas que vão suprir essa demanda através de algo que é considerado crime pela lei que é, enfim, a venda desse tipo de substância, que é considerado legal ou ilegal, tipo que drogas existem várias, enfim. Você pode pensar desde qualquer substância que altere de alguma maneira a percepção, o comportamento das pessoas, a nossa sociedade decidiu que algumas são proibidas e outras são permitidas e aí a gente acaba naturalizando isso, né? Como “quais são as terríveis e quais não são?”. E isso não é baseado em nada muito racional do tipo: “ah, essa aqui é a mais danosa do que aquela”. A gente sabe que…
Lucas: [Interrompe] É um rol da ANVISA. A ANVISA hoje é que vai determinar aquelas substâncias que são consideradas na lista dos entorpecentes. A Lei de Drogas, ela não fala “olha, cocaína é droga”. Ela fala “remete-se ao rol que Anvisa tem”.
Ariadne: Mas por trás disso você também tem culturas e vivências e aquilo que é socialmente aceito ou condenado, né?
Lucas: É a história do porque maconha é droga e bebida alcoólica não, sendo que a mortalidade de um é infinitamente maior que a mortalidade do outro.
Ariadne: E que a alteração de consciência, [Lucas: Exatamente…] enfim, a possibilidade de você cometer um outro crime, ou seja, você bater o carro, enfim, o vício, o alcoolismo, etc., todos os danos desse mal que é socialmente aceitável. Quase todo mundo bebe, é algo que é socialmente aceitável, é recreativo, beleza. A gente definiu que isso aqui pode e aquilo não pode. É uma discussão até de fundo moral, assim, né? O que que você vai considerar um problema ou não e sem falar nos prescritos etc. e tal. Você parte disso, de por que, o que você vai considerar ou não um problema e aí depois você criminaliza aquilo. Aquilo vai virar um crime e aí a gente fez no episódio passado a discussão que eu acho que é importante retomar, de qual que é o dano causado não pela droga ou enfim, pra a sociedade, quem que é a vítima daquele crime e por que que existe o sistema inteiro tá… o sistema inteiro não, mas boa parte dos recursos são voltados pra essa guerra, pra tentar debelar, pra tentar diminuir uma guerra que parece invencível.
Ju: Então, mas uma coisa que eu acho interessante aqui nessa discussão, eu não me questionava tanto isso quando a gente gravou o episódio 3, é sobre a saída econômica pra esse problema que é assim: bom gente, não tá dando certo coibir, então a gente vai agora aqui a questão não é droga, a questão é sistema prisional, então como tá inflando o nosso sistema prisional, então a gente vai liberar determinados tipos de drogas, a gente vai aumentar o range do que é aceitável de droga e aí essa população que a gente tá falando que tá sendo seletivamente presa, esse jovem negro periférico que ele está sendo preso por tráfico de droga: a partir do momento que a droga for liberada, esse tipo de droga for liberada, vocês acham que ele vai ser o empresário que vai vender a droga legalmente ou esse produto vai ser captado por empresas, vendido em farmácias, em outros lugares? Enfim, o capital vai se apropriar desse novo produto e esse menino vai ter acesso ao mesmo meio que ele tinha antes? Ele vai migrar a delinquência dele disso para outra coisa?
Ariadne: Como produto é evidente que ele é interessante em termos de mercado, tanto é que você já tem pessoas que, enfim, arriscam ser presas e etc. pra vender esse produto, porque existe uma demanda com relação a ele e é óbvio que em uma sociedade capitalista, se tem demanda vai ter alguém que vai oferecer, vai ofertar, né?
Ju: Mas eu tô falando sobre a perspectiva do sistema prisional que é: então a solução pra gente vai não só diminuir a quantidade de presos no sistema – já que boa parte dos nossos presos vêm disso – e também pra parar com a seletividade de prisão é você liberar a droga. Um, você acha que essa comunidade vai delinquir menos se eu liberar a droga e número dois, que o meu sistema vai ser menos seletivo se eu simplesmente tirar droga da equação?
Lucas: Eu acho que dois pontos colocam em discussão qual seria a funcionalidade. Eu acho que o primeiro é assim: a não ser que a gente legalize todas as drogas, sempre vai ter uma droga que é ilícita. [Ju: Exato.] Nos dois anos que eu trabalhei, eu dificilmente – ou raríssimas vezes – eu vi, por exemplo, no flagrante tráfico de um tipo de droga, pra dizer: “se hoje essa droga for legalizada, esse cara não teria sido preso”. Se tirar uma, ele tem mais duas ou três que vão continuar sendo. Então, a não ser você legalize todas as drogas e falar “nada mais é ilícito”, eu acho que você vai continuar tendo tráfico de drogas pra esse outro tipo de droga porque eu acho que dificilmente o crack vai ser liberalizado como droga ou a cocaína. [Ariadne: Mas o mercado consumidor dessas outras é menor, de qualquer maneira você…]. Não vai diminuir o problema porque você vai continuar com uma guerra ao tráfico. A segunda, eu não tenho dados, mas é uma percepção que eu já li um outro texto sobre isso que é o seguinte: tendo em vista a questão social do Brasil, se você falasse assim: “olha, vamos legalizar, vamos tributar e vai ser vendido em lojas nãnãnã”, eu tenho dúvida se o cara que é preso hoje, que é o pobre negro da favela, ele vai ter acesso a essa droga legal ou ele vai ter que continuar comprando. E é aí essa livre legalização vai servir pra quem? Pro playboy que compra da faculdade que ele não vai precisar mais descer até a boca pra comprar do traficante. Ele pode pagar a droga legalizada com o imposto, com o selo de qualidade. Eu tenho dúvida se essa comercialização vai realmente desonerar esses que estão nessa situação que seria o negro, o pobre, aquele que já tá à margem da sociedade. Eu ainda acho que ele vai continuar refém, digamos assim, do traficante ilegal porque mesmo legalizado, o cara que vender fora vai continuar sendo o traficante como o remédio prescrito…
Ju: [Interrompe] O cigarro, né?
Ariadne: Então, eu ia fazer esse paralelo com o cigarro, mas aí é outro… a gravidade do crime, digamos assim, é outra. Você pode continuar tendo um mercado ilegal em termos de um genérico ou algo paralelo por um custo menor, por alguma razão que é como os cigarros adulterados, falsificados, mas aí é fruto de um contrabando, isso vai entrar numa outra chave, né? E é menos o consumo…
Lucas: [Interrompe] Não eu acho que ela vai ser vendida do mesmo jeito, pelo mesmo traficante, no mesmo papelote, talvez ou não pelo mesmo preço porque assim, tudo bem, você vai ter talvez o contrabando de outro país que já vende legalmente, ok, isso pode acontecer. Mas eu acho que essa droga vinda ilegal pela fronteira, que vai chegar em um tijolo ou numa calota de um carro ela vai continuar chegando porque, provavelmente, essa população pobre e negra, ela vai continuar consumindo porque não acho que há interesse político em desonerar esse cara. Eu acho que o interesse político vai ser talvez de desonerar o cara que tem condições de pagar, que vai ter condições de consumir, pagar o imposto. Então, eu tenho dúvida, eu realmente eu não tenho dado para dizer se financeiramente qual seria o valor, se em outros países com o nosso nível de desigualdade social e a nossa perspectiva e topografia social isso seria efetivo, mas eu ainda tenho dúvidas se isso vai realmente impedir, que esse recorte que normalmente é preso por tráfico de drogas vai deixar ser preso pelo tráfico de drogas.
Ju: Eu acreditei numa solução fácil e mágica, sabe? Eu acreditei: “se a maior parte dos presos é disso, então você libera isso e resolveu o problema”. Essas pessoas vão parar de delinquir? Essas pessoas vão ter oportunidade na vida agora?
Cris: Porque a maioria dessas pessoas, elas vão pra esse mercado paralelo como um trabalho…
Ju: Exato, exato! Qual é a outra oportunidade que você deu pra ela?
Ariadne: Mas se ele continuar existindo enquanto mercado negro de um produto que tem uma origem pirata, digamos assim, que é basicamente isso, bom, existe o legal e o ilegal, o tráfico em si não vai deixar de existir enquanto tráfico. Vai existir a comercialização de um produto ilegal, o comércio dele em si, mas não o produto é ilegal, né? Mas a forma. É quase quando você, enfim, vem um produto… foi o paralelo que eu fiz com contrabando: é outro tipo de delinquência, digamos assim, e outro tipo de mercado. Você desarranja a forma como o mercado tá organizado.
Lucas: Juridicamente, eu duvido de verdade que eles vão abolir o tipo penal que hoje tá lá no artigo 33 da Lei 11.343 ou eles vão simplesmente alterar para: “compra, vende, todos aqueles verbos, não legalizada, com ausência de tarja verificadora”. Acho que eles vão manter o crime, porque assim, se o se interesse é falar assim: “olha, a gente quer que você compre com nota fiscal e com imposto”, eu acho que a chance deles coibirem é ainda mais e talvez com penas maiores o cara que vai vender fora do sistema.
Ariadne: [Interrompe] Mas se a droga deixa de ser ilegal…
Cris: [Interrompe] É porque tem um crime de contrabando. Então na verdade…
Ariadne: Sim, como tantos outros, como tantos outros produtos de origem desde o camelô… vai ser mais um produto ilegal…
Cris: O nosso foco aqui é: como é que a gente linda com uma população carcerária que é tão grande. O que a gente tá falando é que uma parte gigantesca dela está presa por conta de tráfico de drogas. Não parece a solução mágica simplesmente se você legalizar essa galera vai sumir porque na verdade o que a maioria dessas pessoas, o que fez com que elas entrassem no mercado, nesse mercado de trabalho é falta de outras oportunidades. Você tira o mercado dela, mas se você não der outras oportunidades, ela vai parar no mesmo lugar por motivos diferentes.
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Ariadne: Acho que a questão que está sendo colocada é: essas pessoas, a sobrevivência delas tá baseada numa forma de vida que envolve recorrer a ilegalidades por falta de outras opções. Então, se você de alguma maneira tornar legal algo que é explorado de maneira ilegal, as pessoas vão ter que migrar para outros tipos de ilegalidade para sobreviver porque a sobrevivência dela de alguma maneira depende de um circuito clandestino. [Cris: Exato.] E aí o que é um circuito clandestino? Você tem espaço pra certas pessoas nesse tipo de mercado porque envolve um risco, né? Então, alguém que tá disposto a ser bucha de canhão pra fazer, aí pode ser a droga, pode ser o jogo ilegal, pode ser… antigamente era a prostituição…
Cris: É que não é a droga em si, é o mercado da ilegalidade.
Ariadne: E que é a ideia de que você só pode sobreviver clandestinamente porque não há outra inserção possível.
Lucas: Que é a ideia de novo que foi no outro programa que é a Anomia do Merton. Que é assim, você não tem… o meios estruturados não são suficientes pra te levar pra aqueles objetivos. Então, a droga é a solução de hoje, a solução da moda como nos Estados Unidos já foi bebida, já foi prostituição, por exemplo, você tem o tráfico de pessoas. Então, eu acho que é capaz de você simplesmente mudar o artigo penal, que vai então deixar de ser o tráfico para ser um novo crime ou eles vão ter que partir pra outro tipo de criminalidade quando você simplesmente fizer isso sem tentar diminuir a desigualdade social que é obviamente o que motiva esses crimes. Eu duvido que um cara com condições que ele vá escolher pra vida dele é…
Ariadne [Interrompe] Não, também acontece. Acontece…
Cris: Mas é a minoria…
Ariadne: Exatamente… é isso o que eu ia falar.
Lucas: A motivação é diferente. Ele pode simplesmente parar.
Cris: O que não quer dizer que a gente não deva conversar sobre descriminalização das drogas. Isso é outro assunto…
Ju: Isso é outro papo. Agora eu queria continuar dessas saídas mais simples, simplórias pro problema, vamos adicionar uma complexidade aí e repensar um pouco no médio prazo, repensar o sistema punitivista. Eu vou chamar a Mirella, a socióloga que é Agente da Polícia Rodoviária Federal para falar um pouco sobre isso.
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Mirella: Outra ação, essa de médio prazo, devia ser da gente se voltar pra forma como a questão punitiva é tratada legalmente no Brasil. A gente tem que se atentar pra demanda crescente por atos normativos e punitivos, principalmente por aqueles que buscam instituir novos tipos penais, em especial aqueles punidos com a restrição da liberdade. A gente precisa refletir sobre os discursos da impunidade, a demanda desenfreada por mais penas e isso levando em conta o que já foi produzido e cientificamente avaliado. Nós somos a terceira população carcerária do mundo, lembram? Isso quer dizer que as pessoas estão sim sendo punidas e elas estão sendo punidos em escala cada vez mais significativa e que mesmo assim a nossa sensação de segurança em geral continua baixa. É preciso agir em prol da conscientização da população como um todo sobre a questão do encarceramento. Tem um pensamento bastante difundido de que o aumento da pena e um quantitativo crescente dos tipos penais contribuíram e continuam contribuindo para a diminuição dos atos criminosos. E aí a gente conclui de forma bastante equivocada que o direito penal é capaz de conter a criminalidade, só que ele não pode. Historicamente ele não pode, estatisticamente ele não pode. Não tô negando a insegurança percebida no país. De fato a gente não se sente muito seguro, mas isso não se limita, muito menos de forma direta, à utilização em ampla escala do encarceramento como instrumento capaz de fazer do Brasil um país livre da manutenção dos índices de criminalidade encontrados atualmente. Mas a gente já tem resultados importantes de pesquisas no campo que desconstróem a relação que se faz a priori entre o aumento da população carcerária e a diminuição da criminalidade. A relação construída entre esses dois fatores varia entre nula e irrisória, então a gente precisa se atentar pra essas questões.
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Cris: E a gente tá falando não só do punitivismo, mas da privação de liberdade, né? [Ariadne: É, dessa solução…] A lei pode ser dura, mas ela não privar de liberdade. Ela não encarcerar todo mundo no mesmo espaço e aí eu você ser polêmica aqui, mas na minha opinião não faz nenhuma diferença pra sociedade o Eduardo Cunha tá preso. Eu preferiria muito mais o sistema punitivista que tirasse todos os recursos financeiros dos quais ele fez abusos, que ele excluísse ele da vida pública para sempre. Ele não pode mais concorrer a nada público. Pra mim esse sistema punitivista seria muito melhor do que ele tá lá na prisão hoje…
Ju: [interrompe] Me dando gasto… [Cris: Exatamente.] E preocupação, sim. Eu sou responsável por ele e eu não quero ser responsável por ele, entendeu? Eu sou responsável pelo bem-estar dele. Eu sou responsável pela alimentação dele, pelo abrigo, segurança, enfim por tudo. Pra que que eu quero isso?!
Cris: É a mesma coisa do cara do estádio de futebol que eu citei. Eu acho que uma grande pena pra uma pessoa que ama o futebol é não poder ir num estádio, então quando a gente pensa só no encarceramento, toda vez que a gente fala em punição social a gente tá sempre pensando em privação de liberdade e encarceramento.
Ariadne: Então, eu acho que essa é uma questão que a gente começa a atingir o cerne pra gente pensar em mudanças de longo prazo porque é isso. Isso é a forma como infelizmente o nosso sistema, a forma como a legislação é feita e como ela é “pensada” – entre aspas eu coloco porque o que parece é que pouco se pensa. Como você colocou no programa anterior, muitas vezes as soluções são pensadas com o fígado, então a gente tem dificuldade em colocar, em diagnosticar os problemas e pensar soluções racionais pra eles. Então, toda vez que a gente tem um caso de grande repercussão, um caso que gera consternação pública, a resposta é: “vamos criar uma lei para proibir isso e a proibição vai servir a penas muito duras”, então, é assim que o nosso legislativo funciona, né?
Ju: É “me engana que eu gosto”, né? Porque a coisa mais fácil é fazer lei porque o papel aceita tudo, entendeu? É mais fácil do que realmente parar para pensar tipo: “gente, o que a gente vai fazer para que isso realmente não aconteça de novo?” e é muito difícil. Prevenção de crime eu acho que é muito complicado.
Ariadne: E essas respostas elas são dadas quase que de maneiras emocionais, né? Então aí também como plataforma política, claro, uma forma de se projetar e de falar: “bom, eu criei a lei tal, que penaliza tal coisa, então, tô fazendo um bem pra sociedade, tô dando respostas, tô cumprindo meu papel, né? É isso que um legislador deve fazer. Vamos punir”. E aí eu queria colocar um caso que e esse é um tipo de discussão que até dentro dos movimentos de Direitos Humanos isso é tensionado o tempo todo porque por um lado você tem toda essa discussão de: “olha, a gente tá punindo mal, né? A prisão não resolve, a prisão não reeduca, a previsão não previne, né?” A gente não consegue mudar comportamentos com prisão e o que a gente quer no fundo, no fundo é mudar comportamentos. A gente não quer simplesmente que uma pessoa sofra ou seja punida porque o problema não está nas pessoas individualmente, ele tá em sistemas ou em formas como a sociedade funciona, tá em culturas, tá…
Ju: [Interrompe] Ou ainda que você acha que está na pessoa o que você quer no final do dia é que ela não represente um perigo para você, é só isso.
Ariadne: E aí, nesse sentido eu queria dar um exemplo que é uma discussão em movimento de Direitos Humanos você tem de um lado isso, você tem esse diagnóstico, e de outro, em algumas situações, tem uma Socióloga que chama isso de “Discursos Desconcertados”, né? Em algum momento aí você tem também a situação em que você vai pedir mais punição: no caso de violência contra mulher, no caso da homofobia, de falar “não, a gente quer que ele vá pra cadeia, bateu agora vai” e você fala “ué, ontem você tava com o discurso de que era menos prisão e aí em algumas situações você tá dizendo que é mais prisão. Que tipo de solução é essa?” Por que que…
Cris: [interrompe] Cadê a sua cadeia agora?
Lucas: E quem questiona por exemplo o feminicídio como uma nova qualificadora do homicídio. Muita gente fala: “peraí, mas será que essa é a solução? Já não enquadra em outra?”. Então, assim, o debate sempre foi esse. Acho que ninguém se questiona assim: “ah não gente, acho que matar mulher tá tudo bem, não é errado”, mas muita gente se questiona: “será que a ferramenta adequada pro Estado devolver isso é falar assim ‘vamos colocar uma qualificadora, que já incidiria em outra qualificadora, mas a gente coloca aqui meu código no papel pra ficar bonito e pro pessoal para de questionar…’”
Ariadne: Porque aí é uma ideia de que a lei pode ter um efeito simbólico então: “ah, se eu criar uma lei pra proibir tal coisa eu dei a noção da gravidade”. Isso é importante sim porque isso dá reconhecimento de certas coisas. Então, a gente tem a questão da discriminação racial, a gente tem a questão da homofobia, a gente tem a questão de gênero e toda uma luta pra colocar isso na legislação e dizer: “ah, agora vai acabar porque tá na lei, a lei tá escrito, tá escrito que não tem discriminação”, que não pode haver, mas não significa que não vai ter porque entre a canetada e a mudança de comportamento há uma distância gigantesca. Então, muitas vezes os movimentos, eles ficam patinando nisso, então, é uma dificuldade gigante da Lei da Tortura, a tortura não vai acabar infelizmente. A canetada é importante, pode ser simbolicamente pra mostrar os interditos, o que é permitido e o que não é de alguma maneira, mas em última instância ela não vai mudar. E eu queria dar um exemplo que eu acho que é interessante pra pensar isso, que eu já vi uma discussão dessa do Deputado Jean Wyllys com relação à questão da homofobia. Ele é o único Deputado homossexual assumido no congresso, ele coloca isso como pauta, isso é bandeira dele, a base de pessoas que votam nele são pessoas que são simpáticas à questão e a causa a respeito dos homossexuais, mas ele é contra a criminalização no sentido penal. Ele falou: “olha, eu fico num dilema moral porque de um lado eu tô colocando o tempo todo, dizendo que eu não quero mais prisão e aí eu vou dizer que pra um caso específico, que é o caso que me fere, eu quero prisão?” Eu sei que a prisão não resolve e mais do que isso, eu sei que as pessoas são homofóbicas por um problema que é sistêmico. Não adianta pegar o José e falar “aí, José, homofóbico, agora eu vou colocar você na cadeia e você vai deixar de ser homofóbico”. Não vai. [Lucas: Ele vai ter mais ódio.] Eu não vou educar o José se eu colocar ele na cadeia. Eu não vou resolver o problema da homofobia prendendo quem é homofóbico porque eu tenho um problema que é anterior a isso. Eu tenho uma sociedade que produz homofóbicos. Então, assim, criminalizar pode ser colocar na legislação e sinalizar o interdito pode ser importante e é importante. Eu acho que a gente não deve deixar de lutar, cristalizar esses interditos numa legislação, mas colocar como solução a prisão como punição pra certas coisas eu acho que é uma lógica que não resolve problema.
Cris: E a gente tem essa essa cultura dentro de cada um de nós enraizada. Que não é uma cultura de ressocialização, ela é de vingança. Quando a gente vê o político tipo o Sérgio Cabral com uma fortuna desviada, com o estado falido e aí você vê uma foto dele com a cabeça raspada, tira o pior que há de você, porque você olha pra ele e fala: “bem feito”.
Lucas: O [Anthony] Garotinho quando foi preso e foi midiático. [Cris: Exposto.] Ele fez aquela exposição dele, né? Se debatendo e o pessoal rindo falando: “bem feito desse cara… to vendo esse cara a vida inteira se dar bem. [Cris: Exato.] Agora eu quero…”
Cris: [Interrompe] É o pior que há em nós….
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Ariadne: É que é assim, é que em última instância, é um dos temas que me toca, que é a questão do linchamento, né. Que é a ideia de se você vê acontecer, se é físico, se tem dor, se é exemplar, é uma catarse né. Então a ideia de que é um punição ela tem que gerar essa catarse de que ela tem que…
Lucas: [Interrompe] Mas e… esse linchamento, pelo menos as pessoas que eu vi, ele vem da sensação da população olhar pro Estado e falar: “meu, eles não tão resolvendo. EU vou ter que resolver”. Quando você pede de volta os poderes que você deu pro Estado, você fala: “olha, eu te dei o poder de punir, mas eu acho que você não tá fazendo, eu vou pegar de volta pra mim, eu vou punir, eu vou linchar”. Aconteceu, foi em Santos, aquela mulher foi morta por uma suposta… um crime que ela teria praticado, isso vem por quê? Porque a população olha e fala: “meu, peraí, não tão resolvendo, eu preciso resolver”, isso é perigosíssimo que é quando a população começa a desmantelar a ideia do Estado no sentido assim de falar: “olha, por que eu tô cedendo a minha liberdade de veto, pagando imposto, tô abrindo mão de várias coisas pra você se não tão resolvendo meu problema? Eu vou fazer.” E aí…
Ariadne: [Interrompe] É assim, é uma combinação de fatores, você tem esse fator, mas tem uma outra questão que é tão grave quanto, que é a ideia de que o outro não direito nenhum, então se você é acusado de um crime, e isso resvala na questão do sistema prisional, todos os seus direitos deveriam ser suspensos, pela população a percepção de que você não tem direito a integridade física, eu posso chegar, eu posso te arrastar, eu posso te violentar, ou dentro de uma prisão você tem que ser submetido a toda sorte de abusos porque acabou, você não é mais um cidadão, você é qualquer um, você é um corpo a ser jogado pras massas e para ser triturado, seja num sistema que tritura, seja numa própria população que vai fazer isso. Se cobra do Estado que se faça algo, e aí assim, a gente tem uma legislação que prevê uma punição, no caso o linchamento é uma punição sumária e muito mais dura do que qualquer legislação vai colocar, porque você tem uma pessoa acusada de roubo, que é espancada até a morte, não consigo pensar um sistema em que essa é uma punição aceitável pra um crime desse, não é possível que isso seja considerado uma pena proporcional e aceitável, né. E às vezes parece que a expectativa pra que, e aí a “justiça” seja feita é essa, se você não tiver algo assim, catártico, não foi feito, então quer dizer, cê sempre vai tá lutando né?
Ju: [interrompe] Mas peraí, a gente vai chegar nesse sentimento de catarse, não desse jeito feio, mas em alguma resposta, porque hoje o sistema não dá nenhuma resposta. Então, hoje, você de fato, não tem essa parte educativa que vai dos dois lados, que não é só você que tem que aprender mas você tem que reparar o que foi estragado em mim ou você tem que devolver para sociedade, reconstruir o que você destruiu, então, se você destruiu um muro, você vai lá construir ele de novo e construir outro muro, então…
Ariadne: Que é a justiça restaurativa.
Ju: É isso que a gente vai entrar.
Lucas: Inclusive tem uma coisa interessante, você falou da questão da pena, como a gente enxerga a pena, tem uma teoria que é muito interessante que eles chamam de Teoria Agnóstica da Pena, o que que é? Ele fala: Olha, a pena ela é um mal, então se ela tem que ser aplicada, ela vai ser aplicada num mínimo possível e somente praquela finalidade de separar e reeducar. Então ele não vai perder nenhum outro direito, direitos políticos, então a questão do preso que vota, preso que não vota, preso que pode ser eleito, nenhum outro, ele só vai ter a sua locomoção reduzida por aquele período enquanto ele está se ressocializando, que é pra tentar tirar esse caráter de, como você falou, ele não tem direito a nada, no momento em que ele é condenado à pena tem que retirar dele todos os direitos políticos, a sua humanidade, né, e agora você é um escória e você pode apanhar, se você morrer, ótimo, os presos estão se matando a gente está diminuindo os números, deixa eles lá. Vi um comentário também, o pessoal falou assim: “meu, se eu sou o responsável pelo sistema prisional quando dá esse tipo de problema, eu tranco a porta e torço pra todo mundo se matar e quando eu voltar estar vazio”, então o que que…
Ariadne: [Interrompe] E aí essa pessoa é tão criminosa quanto quem tá preso né, porque, né, enfim…
Lucas: É claro…
Ariadne: Cê tá cometendo um massacre.
Lucas: Não, não, mas ele sente que a mão tá limpa porque: “não sou eu que tô matando, são os presos que estão se matando, não sou eu que estou apertando esse gatilho.”
Cris: A responsabilidade é do Estado. Quando a gente começa a caminhar pra essa mudança de modelo mental, saindo desse modelo mental vingativo, né, que é esse negócio assim “eu quero que o outro sofra porque em algum momento ele causou sofrimento”, quando a gente começa a ir pra ideia do… que é essa escola que cê tá lá de recuperação que é restaurar, reconstruir, a gente passa necessariamente por projetos multidisciplinares, penas alternativas, sistema de reabilitação e aí a gente volta aqui com a Mirella que é socióloga e agente da Polícia Rodoviária Federal e ela fala um pouquinho pra gente sobre isso.
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Mirella: A gente precisa então, buscar eficácia, eficiência da Lei de Execução Penal, efetividade também das políticas de reinserção. Gente, a ressocialização é uma possibilidade real pra que o apenado possa retornar ao convívio social de forma integrada, minimizando a chances de que um novo delito seja cometido. A gente precisa entender de uma vez por todas o quanto esse entendimento é importante porque a partir daí que a gente vai construir uma política sólida de redução dos índices de criminalidade, principalmente daqueles ligados à reincidência. A maioria da população carcerária mal concluiu o ensino fundamental. Então, cuidar para que programas educativos sejam efetivados conforme preconiza a lei é uma medida super importante quando a gente fala de ressocialização e de reintegração desses presos.
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Ju: O Samuel Lourenço, um dos fundadores da ONG “Eu sou Eu – o reflexo da vida na prisão”, que atua com egressos do sistema prisional e é também escritor, palestrante e ex-presidiário nos deu um depoimento também sobre como projetos multidisciplinares de penas alternativas podem ser uma solução pra essa questão dos sistema prisional.
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Samuel: Eu vejo a saída na justiça restaurativa, eu vejo a saída nos estabelecimentos prisionais dentro das cidades, eu vejo a saída em colocar os muros das prisões um pouco mais baixos, abaixar os muros das prisões, de modo com que a sociedade passe a ver o que tem ali dentro e abrir um pouco dos cadeados. Se não quer abrir os das celas, para os presos não fugirem, abram os dos portões para que a sociedade possa entrar, a sociedade civil, as universidades, as instituições religiosas, os grupos de estudo, as ONGs, todos. Prisão não é lugar só de criminoso e de preso e de bandido que foi constituído por uma constituição política, eu acho que a prisão ela faz parte da cidade, ela é da cidade e ela tem que estar integrada à comunidade. Como já foi dito não existe prisão perpétua, todas essas pessoas que tão lá voltam. Eu fui condenado à 15 anos de prisão e tô cumprindo 10 anos atualmente, 9 eu fiquei em privação de liberdade mais intensa e agora eu tô em livramento condicional. O que que a sociedade ganhou com isso enquanto eu fiquei preso? Só me esqueceram, um tempo né, me esqueceram porque assim, os familiares da vítima do crime jamais me esquecerão, assim como também jamais serão esquecidos por mim, não porque eu tenho desconfiança deles, porque na verdade eu gostaria muito de reencontrá-los, de poder ouvi-los, de saber o que eles tem a dizer a meu respeito, de reconhecer deles talvez o desprezo, a distância, mas a justiça tinha que ter esse compromisso. O que acontece é que o cara é internado no sistema prisional e a vítima fica pra lá, ela é desprezada. Nesse senso de justiça há uma injustiça pra todos os lados. É uma injustiça com as vítimas diretas e indiretas – porque ela é silenciada pela lei e os atores passam a falar por ela e ela só tem participação para reconhecer aquele como autor do delito, depois disso nada mais. E aí assim ela não tem nenhuma garantia de nada, ela fica pra lá esquecida e ela acaba não vivendo essa justiça, ela vê a punição porque o cara foi preso. O agressor, o penitente, por sua vez, ele não vê justiça porque ele passa por uma série de violações de direitos, constrangimentos pra além daquilo que a lei impõe e se sente um injustiçado ainda que cumprindo pena e a sociedade vê essa injustiça porque ela não consegue compreender essa relação. Então assim é muito difícil, e aí é o nosso desafio pra um sistema prisional mais saudável; eu não acredito num sistema prisional saudável, eu acredito num sistema prisional desumano, desumano no sentido de não haver humanos ali dentro, é impossível imaginar um sistema prisional saudável com pessoas presas; não há saúde e nada saudável em pessoas presas, não há saúde e nenhum glamour em zoológicos, em aquários, não há possibilidade de haver coisas saudáveis ou coisas agradáveis quando se ocorre o cerceamento da liberdade do ser. Então assim é difícil responder um pouco dessa pergunta porque eu entendo que a relação poderia ser de mais responsabilização e menos de punição. Eu sou condenado por homicídio e nunca fui questionado por que que eu cometi o homicídio a não ser pelo juiz numa questão muito breve, mas quando eu fui pra rua, passei pro serviço técnico de psicólogos e psiquiatras uma única vez só pra poder ser transferido de unidade e regime, nunca fui perguntado por nada, consultado por nada então quer dizer, não tão nem aí pra esse sujeito que tá voltando pra cidade e a cidade também não toma nem ciência que eu fui solto. Os familiares da pessoa que eu agredi, que eu violentei de certo modo né, sou condenado por homicídio, eu sou réu confesso em homicídio, eles só souberam que eu fui solto pela rede social porque alguns amigos passaram a celebrar a soltura do Samuel e isso pode ser visto até de uma maneira negativa: “ó lá, o cara fez o que fez, cumpriu 8 anos de prisão e já tá solto” e esse sentimento de impunidade que acaba gerando nas pessoas, que é compreensível, por que isso? Porque não houve diálogo nesses últimos 8 anos, não houve nenhum tipo de relação ou de interação, não houve nenhum tipo de conscientização: “olha, ele vai cumprir a pena dessa maneira depois ele vai sair”. A gente acha que todo castigo é pouco porque afinal de contas o castigo pra uma pessoa que perdeu o seu ente é eterno, ele nunca mais vai ter o familiar dele de volta, mas pro penitente também: eu nunca mais vou ter minha dignidade de volta, eu durmo pensando na vítima constantemente, datas festivas eu deixo de celebrar por conta desse fato. Então assim, não é uma situação que prejudica só um lado, prejudica os dois, cada um com sua potencialidade de dor segundo possa garantir. É claro que eu deixar de participar de uma festa de fim de ano pra uma pessoa que não tem com quem participar uma festa não há nem como mensurar sofrimentos mas há que se reconhecer que existe uma perda irreparável naquela outra pessoa que perdeu seu familiar, mas as distorções, elas podem ser contornadas a partir do modelo de justiça restaurativo; o criminoso tem que conversar com seu agressor, o ofensor tem que conversar com o ofendido, a gente precisa criar uma técnica de mediação de integração.
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(Bloco 7) 1:01’00” – 1:10’59”
Cris: Vamos lá, então o Samuel levanta a bola aí pra gente entrar nesses processos multidisciplinares, nessas soluções reparativas. Como que a gente pode enxergar isso numa sociedade ainda tão ligada ao punitivismo?
Lucas: Eu acho que um caminho que a gente tem que tomar cuidado pra fazer antes de simplesmente abraçar qualquer ideia, isso é uma coisa que, acho que foi a Ju falou no programa da pena de morte, que é tomar cuidado com a primeira ideia…
Ju: Sim!
Lucas: Se você volta na história da pena, você vê que inicialmente ela era, a ideia de punição ela era privada, o Estado não entrava, então assim, a pessoa lesada ela ia lá e causava um mal ou tentava ir punir aquele que praticou algo pra ela. Com o tempo você foi tendo a diminuição do caráter privado e o Estado assumindo pra si porque peraí: “olha, eu sou imparcial, a minha situação não é de vingança porque eu sou um ente despersonalizado, eu tenho uma pessoa que não é vítima”, só que isso foi pra um outro extremo, onde hoje é tudo exatamente despersonalizado, assim: o juiz, fora nos casos onde as condições do crime influem pra uma qualificadora, uma atenuante, pra ele meio que pouco interessa, às vezes, a condição do autor, então você fala assim “pra um crime de roubo à mão armada’’ faz pouca diferença ele ter uma família estruturada, se não tem uma família estruturada, se ele tentou outras coisas antes ou não, às vezes você vai falar “isso aí é antecedente” isso vai ser uma causa de aumento ou diminuição no final e agora a gente tá tentando fazer esse caminho de volta, eu acho que o perigo é só: a gente tem que fazer esse caminho de volta mas tem fazer a sociedade lembrar do porque isso. Se a gente simplesmente colocar isso de volta, muito na mão da sociedade, é “Casos de Família”, é pessoa gritando, alguém tentando falar “então calma gente” e aí é a vítima gritando falando “eu quero que você morra”, o que a vítima fala na televisão? “Eu quero justiça”, só que justiça na cabeça dela é o cara ficar preso pra sempre. Você vê qualquer família de alguém que… né, assim: “ah matou a minha filha, a mãe vai falar: ‘ah, oito anos nunca vai reparar o preço de ficar a vida inteira sem a minha filha’”. Então eu acho que a justiça restaurativa ela é importante porque a gente tem que realmente conversar com a sociedade com o que é, com o que vai ser o preso, e, meu, ele vai voltar uma hora, então existe uma… Olha, esse cara vai voltar, então a gente não pode só simplesmente fazer o pior pra ele e esperar que ele por magia volte melhor por conta disso. Mas também não pode só jogar isso de volta sem que as pessoas tenham uma reeducação de qual é a função da pena, que o preso ele é uma pessoa, que muitas vezes com as condições que aquilo foi praticado, porque senão a sociedade só vai agredir de volta e a gente cai no linchamento; porque hoje o que a população de maneira geral quer é linchamento, pena mais dura, gente na cadeia, morte se possível, dependendo do caso, né. Então você precisa sim, trazer modelos, a gente tem hoje algumas tentativas no Brasil disso, mas sempre com processo de reeducação que é um processo longo, é um processo que vai começar de baixo pra cima, e você falar: olha, o que é o criminoso, o que é a pena, como que a gente vai trazer de volta; pensar realmente como o coletivo, uma sociedade, ele faz parte da sociedade, ele não deixou de fazer parte porque ele cometeu um crime. Ele vai fazer parte, [não é] como antigamente, quando a gente exilava ele da cidade, deixava ele no deserto, mandava…
Ju: [Interrompe] Mandava pra Austrália…
Lucas: Exatamente, agora a gente não tem mais essa possibilidade, ele vai voltar, então ele ainda é membro da sociedade e ele tem que ter sim um tratamento digno pra que ele possa voltar porque o que todo mundo quer é resolução dos problemas, ninguém aqui quer que continue os problemas, esse é o objetivo…
Cris: [Interrompe] Ninguém quer sofrer uma violência. Se você me garantir que essa pessoa não vai, ou tem bem menos chances de cometer violência a gente tem um problema sanado. A questão, eu acho, que assusta muito a população é que quando a gente fala sobre isso vem sempre na sua cabeça o homicida…
Lucas: [Interrompe] o homicida irreparável, que é aquele cara, o psicopata…
Cris: O psicopata. O Champinha é sempre o exemplo.
Ju: É a minoria da minoria da minoria da minoria da minoria.
Cris: Que se você para pra olhar e vê que…
Ju: [Interrompe] Se a gente só prendesse esses, a gente não tava com esse problema né?
Cris: Tem 600.000 presos no Brasil, só 2% por homicídio; então assim, primeiro, cadê os homicidas? Porque essa taxa de sucesso em investigação é de 1,5.
Ariadne: [Interrompe] É, então, o homicídio, por exemplo, é o atentado mais grave, é o bem mais precioso…
Cris: [Interrompe] É contra a vida né?
Ariadne: É a vida.
Ju: É o irreparável, é o que não tem como reparar mesmo.
Ariadne: É o que não tem reparação, mas assim, é um dos nossos grandes interditos em última instância, a gente vive de… existe o Estado, etc e tal, pra primeiro de tudo proteger e não valer a lei do mais forte, né, que a gente tenha uma mediação e tal. E aí no caso dos homicídios, como não é prioritário, não é visto como algo prioritário, você não tem recursos alocados pra investigação, então você não tem esclarecimento. Pesquisas que a gente fez no Nevia a respeito do fluxo do processo penal e de como é que funciona a questão da impunidade ou não, no caso dos homicídios em geral os homicídios esclarecidos são aqueles homicídios (esclarecidos, enfim que vão para julgamento) são os casos de homicídio de autoria conhecida, que é o conflito interpessoal, é o marido que mata a mulher, é a briga… enfim, são situações em que…
Ju: [interrompe]
Briga do bar.
Ariadne: Briga do bar…, enfim são situações, os homicidas de alguma maneira já se conhecem ou já estão mal colocados, mas aqueles outros homicídios que…
Lucas: [interrompe] Tem um corpo estendido no chão.
Ariadne: A execução, o latrocínio, outras situações que deveriam envolver um empenho maior – porque necessitam de certos recursos, investigação etc e tal – porque quando você já tem autoria conhecida meio que tá fácil né: cê junta umas peças e tá lá, cê tem algumas testemunhas e acho que não tem grandes desafios. Esse é um crime que tem baixo esclarecimento, um crime gravíssimo; alguém, enfim, uma pessoa perde a vida e isso não é visto como um problema, por que não alocar recursos naquilo que a gente tem de mais precioso?
Lucas: E a gente tá insensível para isso. Vamos ser sinceros? Quando a gente tem um programa como o do Datena, quando cê tem o Cidade Alerta, você tem pessoas, muitas pessoas, morrendo de formas bárbaras todos os dias e a gente muitas vezes fala: “OK, pessoas morrendo, pessoas morrem.”
Ariadne: Porque aí a justificativa tá no próprio comportamento da vítima: “Ah, mas coisa boa não devia ser, tava na rua essa hora, alguma coisa errada ele fez e mereceu e tá justo, fechou a conta”, parece que a ideia de que algumas pessoas, morrer tá na conta né, então a vida de algumas pessoas hummm imorta pouco então por que você vai gastar recurso pra descobrir o que aconteceu lá? Porque a gente sabe quem morre, né? O perfil de quem morre nesse tipo de assassinato é jovem, negro, é morador de periferia, não tem… a maior parte das pessoas nessas situações…
Cris: E quando morre uma pessoa branca da zona oeste de São Paulo tem um movimento muito forte em cima disso, um choque enorme: “Como assim?”
Ju: Mas continua não tendo solução…
Lucas: Mas mesmo assim você não soluciona, exatamente.
Ju: Mesmo assim não tem solução, gente, não tem solução…
Cris: Porque a gente não tem um aparato de investigação que seja viável, pra análise, pra levar isso a sério, porque a gente tá nessa polícia do prende na hora, dessa militarização e muito menos nessa voltada para o civil. Então, quando a gente pensa essas políticas diferentes, essas outras formas de punição, não tem como eu não lembrar dessas coisas que a gente vê muito nos Estados Unidos, que parte muito mais pro vexatório, pra tirar o status social da pessoa. Então quando ela comete um crime de, por exemplo, outro dia eu vi, a mulher xingou um motorista de ônibus e aí a pena dela foi andar o caminho todo a pé que ela deveria ter feito no ônibus para ela aprender a nunca mais xingar o motorista, parece uma coisa meio…
Ariadne: [interrompe] teve uma que também que não pagou um táxi e aí a pena que o juiz deu pra ela foi refazer o [trajeto], e era um trajeto gigantesco, fazer o trajeto ou fazer alguma coisa, limpar coisas ao longo de todo o trajeto em que ela tinha não pago.
Cris: Outro dia eu vi um que o cara, eu acho, que xingou uma pessoa num atendimento, num trânsito e a pena dele era ficar com uma placa gigantesca na frente do lugar falando: “eu não deveria ter xingado a pessoa”, então assim, por isso que eu volto de novo na escola, sabe? Viver em sociedade tem que seguir umas regras, todo mundo tem que seguir essas regras; quando você não segue, em casa, por exemplo, com as crianças, você pune elas de alguma maneira, você faz com que ela… você cria subterfúgios pra que ela não faça, não cometa o mesmo erro, desde “senta ali e pensa”, tem gente que bate, tem gente que tira a televisão, cada pessoa… esse punitivismo nosso vai até muito pra isso, de muito dar uma pena pra que a pessoa sinta e não repita aquilo.
Lucas: Isso é uma coisa que eu falei no programa passado que é um princípio que a gente tem no direito penal, que é o princípio da individualização da pena. Então, o que que ele fala? Cada condenado vai ter uma pena específica, mesmo que ele cometa crimes idênticos, ele vai ter uma pena específica de acordo com várias condições, desde como foi o crime, desde quem ele é, só que a gente faz isso, assim, até a página 2 a gente faz. Então como que é a individualização da pena? Ah, é mais ou menos anos dentro da cadeia e faltam opções pra gente dar esse tipo de pena diferente, uma pena que pode ser muito mais efetiva e muito menos danosa pra ele como ser humano. Infelizmente, nosso código, que se considera ultrapassado, ele é da década de 40, e ele prevê como regra reclusão. A regra do nosso código penal é: prender.
Ju: Quais são as penas alternativas, porque a gente tá falando de justiça reparativa, o que é isso? Quais são as possibilidades? Alguém já faz justiça reparativa no Brasil? Tem previsão legal pra isso?
Ariadne: A primeira coisa só dizer: o que a justiça restaurativa vai pensar? Ela vai pensar em tentar, de alguma maneira, repara os danos que foram provocados pela ação daquela pessoa ou do crime que ele provocou. E aí o dano ele tá tanto na vítima quanto na sociedade e no próprio criminoso. A ideia de que a ação que ele cometeu também é danosa a ele e a gente precisa pensar em alguma forma de restaurá-lo também, né? Ele considera essas três coisas.
(Bloco 8) 1:11’00” – 1:20’59”
Ju: Então, beleza… Eu fui lá e roubei um shampoo. Meu filho adolescente roubou um shampoo no supermercado. Qual seria a solução da justiça reparativa?
Lucas: Hoje não é uma medida de justiça reparativa, especificamente nessa modalidade. Mas hoje você tem uma previsão da Lei 9.099 que é o Sursis Processual. Que é o que? Crimes com uma pena baixa, uma pena mínima inferior a um ano… Você faz o que? Você suspende o processo, se ele não for reincidente, não for um crime violento. Você suspende o processo e fala assim: “Olha, você vai ter essas restrições. ” Então é aquela história: “Ah, você não vai poder ir a determinados lugares em determinados horários”, é o caso do jogador… Do estádio de futebol. Ou… Você vai ter que fazer… Prestar serviço à comunidade. Você tem que vir aqui uma vez por mês assinar e você não pode mudar de cidade. Se durante um determinado tempo (que vai ser definido, normalmente dois anos) você realmente cumprir tudo isso, você mostrar que você tá ok, vai ter extinção da punibilidade. Ou seja, ele não vai ser condenado. Ele nunca vai… Ele não vai ser: “uma pessoa condenada que agora está livre”. Não. Ela vai deixar de ser condenado. Você extingue a punição dele. E isso é muito bom. Isso é feito. O problema é: poucos crimes, pouquíssimos crimes têm a sua pena como um ano. Então, hoje eu fiz… Eu fiz um levantamento dos 80% que é furto, roubo e tráfico. Quais são as possibilidades que caberiam hoje você fazer ou a substituição da pena restritiva que é depois de aplicada, ou essa suspensão? Você teria o furto que é de 1 a 4 anos na sua modalidade simples. O furto qualificado sobe para 2 a 8.
Ju: Mas tem que ser primário, né?
Lucas: Ele tem que ser primário. Isso. Exatamente. É… Vamos colocar assim… Imaginando a criminalidade primária. Então, se o furto é qualificado, você já não consegue suspender, porque já não têm o mínimo de 1. Você consegue fazer a… Depois, a substituição da pena privativa de liberdade por uma restritiva de direito, se verificadas algumas questões de: personalidade, antecedente e esse tipo de coisa. Roubo: você não pode. Porque é de 4 a 10. Não permite nenhuma das duas. Tráfico: 5 a 15. Você não permite nenhuma das duas de novo, salvo na hipótese do teu parágrafo quatro do tráfico de drogas que fala: ‘olha, se ele for primário, se ele não tiver nenhuma vinculação com organização criminosa e se ele não fizer isso, digamos assim, fazer disso a sua atividade, você pode diminuir a pena dele a até 2 terços da pena’. E isso permitiria a ele fazer essa substituição. Mas ainda assim é muito difícil você comprovar. Porque dificilmente você tem um caso de tráfico de droga que ele não tá associado a nenhum tipo de organização criminosa ou nenhum tipo de atividade que fala: ‘olha, a atividade comercial dele é o tráfico de drogas’. Então acaba sendo muito pouco aplicado na prática. Não são medidas de justiça reparativa, especificamente, mas são disposições legais que visam ou não prender, ou você nem chegar a punir, para crimes mais leves, o que seria a questão do furto de shampoo ou de um pedaço de carne no supermercado. Só que se esse cara reincidir, aí você já não consegue aplicar a maioria delas. Então, talvez você pensar em ampliações e reestruturar às vezes a medida das penas mesmo. Pensar… Hoje pouco se mexe no quantum da pena. Você mexe em crimes. Colocar ou tirar crimes. Você não questiona se 5 a 15… O tráfico até aumentou com a lei de… com a última alteração que foi a 11343 de 2006. Você aumentou a pena do que era o antigo crime de tráfico. Mas pouco se discute de talvez diminuir. Talvez permitir pra um caso de outros crimes menores, que são aqueles crimes de rixa na rua, às vezes, não utiliza-se muito… São poucos esses crimes. É que o problema é: o roubo tem “violência ou grave ameaça”. E a maioria dos dispositivos não permite pra “violência ou grave ameaça”. E o tráfico de drogas é um crime que é considerado um dos mais gravosos do nosso sistema por coisas que a gente já discutiu aí tanto nesse episódio, quanto no episódio anterior.
Ju: Ah, então, mas assim… O ponto é: hoje a gente não tem dispositivo legal pra considerar essa uma saída viável.
Lucas: Não. Você tem algumas disposições… alguns dispositivos muito específicos, por exemplo, nos crimes contra funcionários públicos que seria agir de forma culposa e reparar o dano…
Ju: [Interrompe] Não gente… Mas isso não vai… Não são essas pessoas que estão presas.
Lucas: É. Exatamente. Pra essas pessoas você não tem…
Ju: Não. A gente tá falando de soluções. A gente tá usando justiça reparativa como uma das soluções. Mas pra isso a gente precisa mudar a lei.
Cris: A gente precisa de mudanças no código penal pra…
Ju: É isso?
Lucas: E educação das pessoas. Porque senão… Se a gente jogar justiça restaurativa na sociedade e falar: ‘Olha, agora vocês vão conversar com os presos’, a sociedade não vai… vai reagir de forma agressiva e rejeitar isso com todas as forças.
Ariadne: É pensar a punição a partir de outra perspectiva, né? Você envolver a comunidade e a própria vítima no processo com voz, de alguma maneira. E aí a vítima, ou os familiares da vítima… A ideia de fundo também é que isso tenha algum impacto emocional e que isso garanta uma resposta até pra própria vítima. Porque a vítima ela se vê alijada do processo. Então, ela é vítima de um crime grave. Aí enfim é um familiar que se é perdido, é uma agressão física ou enfim é um roubo. E aí diante disso você vai lá, presta queixa ou enfim… E isso sai da sua mão. A partir dali você vai se ter um lugar de fala extremamente restrito, um depoimento ritualizado e acabou. Tentar de alguma maneira considerar a sua dor também, e te colocar como um agente nesse processo. Você é alijado dele. Então é… Ele é frustrante. Às vezes, assim, principalmente em casos de crimes contra o patrimônio… às vezes você não fica nem sabendo o que é que aconteceu com a pessoa que te assaltou, etc. Ele pode até entrar, você pode até dar o depoimento inicial, mas às vezes depois você não sabe. Você não sabe se ele foi preso, você não sabe quando ele foi solto, como é que foi o cumprimento de pena dele, como funcionou? Você não pode olhar no olho dele, conversar de alguma maneira. Eu tive uma amiga que, enfim, é muito sensível em direitos humanos que passou por uma situação dessa: teve um carro roubado, o carro foi identificado, eram uns adolescentes, ela foi na delegacia e ela falou que queria conversar com eles: ‘Eu quero conversar com os familiares deles. Eu quero participar desse processo. Eu quero acompanhar, eu quero entender, eu quero ser agente desse processo também’. E aí o delegado olha e fala: ‘É… Pera aê. Como é que eu vou lidar com isso?’.
Ju: ‘Não temos dispositivo legal pra isso’.
Ariadne: Exatamente. Mas, assim, eu quero. Eu quero ver.
Lucas: E assim, o início disso é um pensamento bom que é aquela história assim: ‘Meu… A gente não pode deixar a vítima tomar as rédeas porque ela vai querer vingança. Assim, a gente tem que deixar com a gente que vai ser imparcial e vai fazer aquilo que é o justo na medida da Lei’. Só que isso sendo aplicado acaba não permitindo esse tipo de possibilidade, que é a possibilidade boa da pessoa. Então é aquela coisa… Ou por exemplo: ‘ah, se a gente deixar na mão só da vítima’, dela proceder com o crime, ela vai ficar com medo. Ela não vai querer. Ela pode ser ameaçada. Tanto que tem isso. Muitas vezes tem uma discussão, hoje, do crime de estupro. Hoje o crime de estupro, ele é por… mediante representação. A mulher tem que ir lá e falar: ‘olha, eu quero que ele seja processado e condenado’. Por que eles dão essa possibilidade? Primeiro, porque você pode falar para… A mulher pode ter a opção de: ‘olha, eu não quero reviver mais isso. Eu quero simplesmente apagar e caminhar para frente. Não quero olhar pra esse cara. Não quero recontar essa história’. Mas por um lado você tem a questão da mulher que pode ficar com medo, que pode estar sendo ameaçada não por ele, mas por um familiar sabendo que ele foi preso. Então por isso que o Estado toma as rédeas e a maioria das ações, né, o que a gente chama de ação penal pública incondicionada. É o Estado que define o que ele vai oferecer e vai processar essa pessoa. A vítima, em poucos casos, ela vai decidir se ela fala: ‘eu quero que ele seja punido ou não’. Por quê? Pra impedir a vingança e para garantir que a vítima não vai ficar com medo ou que ela vai ser ameaçada. Então, a ideia é boa, mas ela acaba tolhindo [tolhendo] algumas boas outras possibilidades.
Ju: Tá. Então pera aí. O que a gente tá falando é que justiça reparativa parece uma boa ideia, porém para que ela funcione, como todo sistema, ele precisa de pessoas boas e preparadas. E aí a gente fala de um… A gente traz o Samuel de volta para falar sobre uma coisa que ele acha fundamental para que nosso sistema mude, que é tratar da invisibilidade do preso.
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Samuel: O criminoso tem que conversar com o seu agressor. O ofensor tem que conversar com o ofendido. A gente precisa criar uma técnica de mediação, de integração. A cidade não pode mais excluir presos. A gente faz com pessoas presas, a mesma coisa que a gente faz com o lixo. A gente coloca pra locais escondidos e parece que a gente não tem aquilo na cidade. ‘Nossa, quanto é nojento olhar pro lixo’; vão dizer: ‘Nossa, quanto é repugnante olhar pra um monte de criminosos’. Mas isso tudo é produzido pela gente, pô. Somos nós que produzimos nossos lixos. E a cidade que produz os criminosos. Então, assim, a gente não quer ter responsabilidade com aquilo que a gente produz de indesejável. Então, assim, é tempo de o presídio voltar para a cidade. Os presos voltarem a circular na cidade. Porque a sociabilidade do sujeito e a chamada, né, ‘ressocialização’ só vai acontecer se o cara tiver na cidade e na sociedade. A melhor forma de ele aprender sobre cidadania, sobre direitos, sobre tudo é na cidade, é no exercício diário. E não excluído de um todo e marcado pra sempre. É… Uma vez que… Da ficha criminal, das suspensões dos direitos políticos e tudo isso acontece quando ele volta pra cidade. Então, assim, é através da justiça restaurativa, é através do contato novamente. A gente criar técnicas de mediações. Aproximação. A gente abrir as portas da prisão pra sociedade. Se, por enquanto, tá difícil abrir os cadeados para que os presos saiam pra rua, ao menos que a gente reduza, abaixe os muros da prisão e abra as portas das penitenciárias para que a sociedade possa visitar, frequentar. Não no sentido de terror e de medo. Sabe? “Oh, vai visitar a prisão para você ver onde você pode parar”. Não. É visitar prisão para que aquele lá dentro possa ter contato com as pessoas daqui de fora e se dar conta de que são um. E quando sair não tomar um choque, mas perceber que foi acolhido. Para que o preso quando saia, não seja uma representação de ameaça, apenas. Mas que ele seja uma representação de esperança, de expectativas, de tudo. A gente tem que acabar com essa ideia de que após um crime, o cara tem que ser amarrado num poste ou ficar enclausurado para sempre numa cela. Após um crime, ele tem que ser responsabilizado por aquilo, se redimir. Não só se desculpar, mas reconhecer que errou, que agrediu a comunidade num todo e se restabelecer. Fazer parte da reconstrução daquele dano dele. E assim, pô, ‘eu preciso dar a volta por cima’. Muito mais do internalizar a culpa, é se responsabilizar pelo dano que causou. Se a gente… Acontece um acidente de trânsito hoje. A gente danifica o carro do outro. As leis e toda estrutura faz com que a gente reconheça aquele dano e repare aquele dano financeiramente. Por que que os danos que a gente ocasiona na estratificação social aí, e na sociedade, a gente não possa se responsabilizar e restaurá-lo? Então assim, é tempo de uma justiça mais restaurativa, de uma reintegração harmônica e de uma convivência social para além dos conflitos e através dos conflitos também. Mas pra que a gente possa, enquanto cidade, viver harmoniosamente. Mas harmoniosamente não ausente de conflito. Harmoniosamente gerenciando os conflitos. Não jogando os conflitos pra debaixo do tapete, como é o caso que se faz a partir do momento que a gente lança um preso numa penitenciária a quilômetros de distância da cidade. Como se a partir daquele momento isso não pudesse mais ser lembrado e iniciasse o processo de esquecimento. E aquele cara voltasse daqui a poucos anos e todos ficassem surpreendidos com a sua volta, culpando a justiça. E o pior de tudo, estigmatizando o sujeito, minando suas forças e as suas subjetividades, a sua autoestima. Incapacitando, né? Ou tornando-o incapaz para a reintegração social e a vivência entre a sociedade, pro trabalho, em respeito e reconhecimento das instituições. Em especial da cidadania, como alguém que pertence e se reconhece como um cidadão brasileiro como um todo. E que a gente possa, através da justiça restaurativa, tentar isso. Porque, né, o sistema prisional através da execução penal, da lei penal e do código penal já se revelou fracassado desde sua concepção inicial.
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Ju: Então, o que é isso que vocês estão falando? É que assim, então a gente precisa primeiro propor uma discussão mais ampla, que os presos sejam vistos como pessoas, que a gente consiga entender que o que a gente quer não é a eliminação do meu inimigo, mas simplesmente que ele não represente mais uma ameaça para mim. Então, e isso passa por um conhecimento até de psicologia, até de neurociência, até de uma discussão mais científica e mais aberta sobre personalidade, sobre comportamento, sobre imprevisibilidade do comportamento. Então o que faz uma pessoa delinquir? Eu não acho, gente, pelo rol de pessoas que a gente trouxe, que foram quem a gente conseguiu acessar. A gente tentou muitas e muitas e muitas pessoas. Mas infelizmente pela limitação da nossa bolha e pelo rol de pessoas que a gente trouxe, a gente tem como dado aqui que a criminalidade ela vem como resultado da sociedade. Dando pouco peso para o indivíduo e muito para a sociedade. Isso não é um dado. Isso não é um dado. Isso é uma linha de pensamento. Existem outras linhas de pensamento. Linhas de pensamento que colocam mais responsabilidade no indivíduo, na escolha individual. Porque pessoas com a mesma condição tem escolhas diferentes. E dizer que, colocar 80, 90% da responsabilidade do delinquir, na escolha de delinquir no Estado, na sociedade e na cultura é desrespeitoso com todas as pessoas que tiveram as mesmas condições e não delinquiram. Então é quase como um Darwinismo Social, de que se você tem essas condições, então você é obrigado a isso. Isso é muito ofensivo. Isso é extremamente ofensivo, né? Então assim, “se você veio de tal lugar, eu só posso esperar de você, que cê faça tal coisa, porque você é produto do seu meio.” Isso também é ofensivo. Então, infelizmente, a gente não conseguiu pessoas que tivessem uma voz para ficar nos corrigindo. Toda vez que a gente falasse isso, falasse: “mas eu não concordo, mas eu não acredito, mas não é por aí, mas também tem que ver tal coisa”.
(Bloco 9) 1:23’00” – 1:30’59”
Ju: A gente não conseguiu, eu tô aqui colocando esse contraponto que eu acho que é importante, né, que a gente coloque, principalmente porque na fala do Samuel também veio bastante disso, né, que a gente, “ah, a gente é o lixo da sociedade, então a sociedade nos produz, então tem que olhar pro lixo”, mas mesmo questionando essa questão da perspectiva coletiva versus a perspectiva individual, eu acho que a gente pode se encontrar no meio do caminho, que é de entender que o que a gente tá discutindo quando a gente discute sistema prisional é viver em sociedade, então a gente vai ter as nossas diferenças, mas a gente tem que conseguir conviver sem se machucar. A gente tem que conseguir conviver sem que você invada meu espaço. A gente tem que conseguir conviver sem que você destrua os meus direitos e eu destrua os seus direitos. Então, que se a gente não consegue ficar muito perto, a gente vai ficar mais apartado. E isso também é possível, isso também tem que ser conversado. Mas a questão não é eu te eliminar ou eliminar a sua forma de viver, que pode ser diferente da minha, uma forma que eu não gosto, que eu não concordo, é só uma questão de qual é o mínimo denominador que a gente pode ter, em que não vai ser o ótimo pra mim, não vai ser o ótimo pra você, mas que a gente consiga conviver mais ou menos em paz.
Cris: Tem a tolerância e a gente não pode falar da não responsabilização. Isso me faz lembrar muito, que é uma justiça reparativa, o curso O Tempo de Despertar, que é dado aqui em São Paulo pra homens que agridem mulheres. Então eles colocam esses homens numa sala, o Sérgio teve com a gente aqui numa oportunidade, conversou sobre esse projeto, esses homens que chegam na vara, acontece esse curso na Barra Funda, aqui em São Paulo, e eles são a tentativa de ressocialização. Por que que esse homem agride essa mulher, qual é a limitação dele que leva ele pra essa força física? Como esse homem pode argumentar melhor? De que males sofre esse homem? E aí você tem todo um aparato social pra fazer com que essa pessoa melhore o nível de autoconhecimento, e é óbvio, ela vai conviver melhor em sociedade. Então isso é uma coisa muito importante que a Juliana tocou, porque o indivíduo, ele é responsável pelas ações dele, e uma justiça reparativa e uma pena, ela não precisa desumanizar essa pessoa. Mas essa pessoa tem que pagar o preço por ter saído fora das normas sociais. Então assim, não é… quando a gente fala de direito humano, eu entendo muito como a não desumanização da pessoa que cometeu um crime. Continua sendo humana.
Ju: E não cristalizar o comportamento e a personalidade, e o futuro, e tudo o que a pessoa é, num ato, numa escolha, num momento. Porque nós somos seres mutantes, a gente muda, a gente é capaz de evoluir e não só de evoluir, a gente não… a gente faz coisas conflitantes o tempo inteiro. A gente tem comportamento conflitante o tempo inteiro, então uma pessoa que praticou um ato contra a sociedade, contra o patrimônio, contra outra pessoa, isso não define todas as possibilidades e todas as escolhas que ela vai ter na vida. E quanto mais a gente definir essa pessoa desse jeito, menores são as chances de você conseguir o retorno. Quando eu conversei com o Luis Augusto por telefone, a gente… Pena que não ficou gravada essa conversa, mas ele falou uma coisa muito legal, que é assim: por mais bem intencionado que sejam essas medidas alternativas de “ah, então a gente tem que fazer uma ressocialização, a gente tem que fazer uma justiça reparativa”, a gente tem que contar com a possibilidade da pessoa NÃO querer. Porque quando a gente fala de escolha, escolha pressupõe o não. Porque senão não há uma escolha, cê não tem como impor pra pessoa que ela vai ser, aceitar as normas da sociedade, que ela vai aceitar as coisas como elas t… Não. Então assim, mesmo as pessoas tendo oportunidades, elas podem escolher errado, e isso é a definição de escolha. Se você não pode escolher errado, não é uma escolha. Então o que a gente vai fazer com as pessoas que não querem, não estão interessadas em se reabilitar? As pessoas que não querem as regras e não vão seguir as regras nunca? Quê que a gente vai fazer com essas pessoas? E disso a gente não falou o programa inteiro! Porque a gente tá muito preocupado com o problema que, parece, a gente não tem nem dado, né, mas parece que é maior, que as pessoas que não têm nem chance, não tem nem essa discussão, se ela quer, se ela não quer, se ela pode, se ela não pode, nem tem essa discussão. O sistema é tão brutalizante que não existe essa possibilidade. Mas em a gente resolvendo todos esses milhares de problemas, a gente ainda tem um problema gigantesco na mão que é o que que a gente vai fazer com as pessoas que não querem mudar, e que não querem aceitar as regras da sociedade, e que jamais irão aceitar.
Ariadne: É, eu acho que tem uma questão que aí toca num tema que a gente tem estudado, tá estudando no NEV agora, no local em que eu trabalho, no centro de pesquisa, que é a questão, é uma discussão na literatura internacional da criminologia bastante interessante, dum psicólogo chamado Tom Tyler, que é a questão da legitimidade. Então a questão, ele parte da pergunta: por que as pessoas obedecem às leis? Então a gente tá sempre muito preocupado com tentar responder por que as pessoas desobedecem às leis, ele tá partindo duma outra pergunta, que é por que as pessoas OBEDECEM, pra tentar de alguma maneira fortalecer isso, e de uma perspectiva positiva, que seria uma espécie de prevenção. Então cê tem… isso não serve só pra pensar a questão penal, esse é um mecanismo pra você pensar qualquer exercício de autoridade. Então as pessoas, elas podem obedecer por duas razões: uma, por medo, coerção, ameaça. E aí cê pode pensar isso como cê educa seu filho, cê pode pensar na relação entre professores e alunos, cê pode pensar isso dentro de uma empresa, como é que cê estabelece regras. Então as pessoas, elas podem obedecer por medo, e aí você tem que ter todo um sistema de sanções, que é tudo o que a gente teve discutindo desde, aqui, punição…
Ju: Vigiar e punir.
Ariadne: Vigiar e punir. Você tem que tem que estabelecer um sistema de vigilância, e aí no caso do policiamento é ronda, é arma, é uma ameaça que tem que tá lá o tempo todo, sistema de vigilância, você vai ter que ter câmera, olhos etc, e a ideia de que se não tiver ninguém olhando, a pessoa vai delinquir. Cê precisa colocar, incutir, pelo menos a ideia é que ela tá sendo olhada, é externo a ela, não é algo que vem dela, é algo que vem de fora. E aí a ameaça: não vou delinquir porque senão eu vou ser punido. Então você coloca a pessoa num estado constante da ideia de vigilância, e é como se a qualquer momento ela fosse cometer um crime. Então essa é uma chave: garantir a obediência via coerção. A outra chave, que é a proposta dele, que é a proposta que ele tem desenvolvido, é o que ele chama de legitimidade, que é: a pessoa vai obedecer porque ela reconhece aquela autoridade como legítima. Então se ela reconhecer a importância daquela autoridade, da lei, isso sejam os pais, seja o professor, seja o policial, seja o que for, ou o chefe, é você trazer ele pra junto de você, de alguma maneira, e isso tá desde o processo de… O quê que significa? Significa, e aí esse é um processo que envolve como que a gente tá se transformando enquanto democracia, que é, reconhecer aquele processo como justo. Então as leis são justas, as leis não discriminam, elas são de alguma maneira aplicadas de maneira justa, elas são aplicadas de maneira igual pra todo mundo, o processo é justo, o tratamento é justo. Então quando você vê que aquela autoridade tá exercendo, porque é o que ele chama de procedural justice, se tem procedural justice, se a autoridade tá exercendo o poder de maneira justa, cê tem muito mais chance, isso não significa que TODO MUNDO vai conferir, mas você maximiza as chances das pessoas obedecerem às leis por reconhecer aquela autoridade como legítima, e não por coerção. E aí você começa a trabalhar numa outra chave, que ao invés de você ficar tão preocupado em punir, em coerção o tempo todo, cê começa a pensar: “bom, eu posso tentar então estímulos positivos, ao invés de estímulos negativos.” Então eu preciso fazer com que as pessoas reconheçam a importância dessas leis, reconheçam a importância… o dano que é você desrespeitar as leis, né, e aí ele faz uma série de pesquisas baseadas em dados, super empírico, isso não é teórico, eles partem de um pressuposto teórico, mas é empírico, mostrando por exemplo as pessoas que cometem crime: elas percebem o Estado mais como o quê, mais como coercitivo ou mais como, ou que tem procedimentos justos? As pessoas que estão mais dispostas a cometer crime, ou enfim, as pessoas que reconhecem a autoridade do Estado, em geral são as pessoas que reconhecem procedimentos justos. Isso tem mais peso do que a ameaça, né. Isso em testes empíricos com pesquisas de survey, com pesquisa… E aí a partir da teoria do Tyler cê tem pesquisa no mundo inteiro, desde educação pais e filhos, dentro de escola, dentro de empresa, porque esse método – você reforçar a obediência por outras formas que não a coerção – não significa que cê vai deixar de existir, deixar de existir a coerção, ms cê pode minimizar ela, porque cê não precisa ficar ameaçando o tempo todo. Então como é na sua casa, com o seu filho, cê pode tentar fazer com que ele respeite as regras pela ameaça, ou ele introjetar as regras e ele reproduzir aquilo por reconhecer a importância e a necessidade. Então ele adere ao sistema, ele introjeta como uma parte de, não só de uma moralidade pessoal dele, mas ele reconhece a importância daquilo, e aí ele começa a reproduzir aquilo como parte de um sistema. Então é uma outra forma de você pensar o funcionamento da sociedade.
(Bloco 10) 1:32’00” – 1:40’59”
Lucas: Mas ainda assim, né, no final a gente vai ter o caso que a Ju falou que é do cara que não aceita. Ao final de tudo você faz tudo, entrega tudo para ele. Ele vai falar: “ok, não quero”. [ Ju: ‘Não. Obrigado.’] “Vou ir contra tudo isso que você tá me dizendo’’. E a gente não tem solução para isso.
Ju: Porque eu quero mais e menos esforço. O playboy que delinque, entendeu? Ele tem todas as oportunidades, mas ele não quer, não vai.
Lucas: É o crime de colarinho branco. O crime de colarinho branco, ele não é de uma pessoa que não tem oportunidade. Não. Ela olhou e falou: “Bom…Eu posso ganhar muito mais do que eu ganho por conta disso. Eu vou fazer”. Aí tudo bem, você vai questionar o porquê ele vai fazer e tal. Mas ele pode no fim de tudo falar: “Olha…Ok. Eu vou continuar fazendo”. A gente não tem solução…
Ju: [Interrompe] “Dada a oportunidade, se eu conseguir achar uma brecha, eu vou fazer”.
Ariadne: Não existe sociedade sem crime, gente. Isso é uma utopia.
Lucas: Exato. A gente não sabe resolver isso. Mas eu acho que assim… O mais próximo da gente conseguir dar a medida menos danosa pro geral é quando a gente limpar o resto que dá para resolver. Então assim oh… Tem milhões que a gente consegue resolver e que não vai acontecer. Se a gente conseguir limpar isso e falar assim: “ok, vamos resolver”. Essa pequena quantidade de que vão falar: “olha, não. Eu vou continuar praticando crimes e quebrando a lei independente do que você me fizer, do que você me mostrar, do que acontecer”. Talvez, nesse momento, a gente consiga ter uma solução que seja não boa pros dois lados, mas o mínimo para manter a coesão do nosso Estado, para manter, assim, a sociedade ok. Então, assim, como eu falei a Noruega tem uma solução. Ela vai deixar o cara numa espécie de um hotel 5 estrelas pro resto da vida. Para eles tem funcionado. São coisa, como eles falam, de menos de 10% o número de presos lá que não se ressocializa de maneira nenhuma. O cara que fala: “não. Eu vou continuar cometendo crime. Eu vou sair daqui e vou cometer crime de novo. Não adianta me soltar”. Esse cara não tá sendo maltratado. Só tão falando pra ele: “olha, amigo, você não vai conseguir viver com todo mundo. Você vai viver aqui. A gente vai dar comida pra você. Você vai ter lazer, vai ter livros, vai ter não sei o quê, mas você não vai poder ficar na sociedade”. Essa é uma solução que eles escolheram. Pra eles é muito mais fácil ir resolver isso agora. Pode ser que no futuro a gente consiga realmente trazer uma solução pra isso que não seja uma solução contrária a Direitos Humanos, da mesma forma que isso não seja uma solução que deixa a sociedade totalmente indignada, que a sociedade entenda. Falar: “olha, esse cara aqui ele vai ter que ficar separado. A gente vai ter que custear ele. Porque é o preço que a gente paga pra manter uma sociedade justa, pra manter uma sociedade que preza pelo indivíduo independente do que ele fizer e que se ele tiver aqui, ele não vai mais trazer problema pra gente. Tudo bem?”. Se a sociedade virar e falar ‘tudo bem’, e a gente conseguir tratar esse cara bem, acho que tá ok. Todo mundo sai mais ou menos, não ganhando, mas assim você não tem prejuízos.
Ju: Sim.
Cris: Bom, pra encerrar aqui, vamos falar rapidamente sobre iniciativas de longo prazo, né? Desenvolver um modelo que não parta do pressuposto do encarceramento. Então é isso que a gente tá falando, desse novo paradigma. E isso já tá acontecendo em alguns lugares. A gente trouxe aqui a experiência da APACs. Tem 40 APACs no país, ela é uma… Ela é quase uma colônia, né? Ela é uma prisão menor pra até cerca de 200 presos. Eles mesmos trabalham na manutenção, na disciplina, no setor administrativo. Os presos, em geral, variam entre mil e oitocentos e dois mil reais. E na APAC, o custo não é superior a 1000 reais. Então, tem menos custo de pessoal. E por ser um lugar onde as garantias mínimas de higiene e de conforto mínimo ali para uma vida, eles têm muito menos rebelião, muito menos depredação. Eles têm menos custo de infraestrutura para manter esses lugares. Eu queria saber de vocês, se vocês vêem modelos como esse, como uma maneira de aumentar pequenas cadeias ou pequenas casas de correção, vamos chamar assim? Se isso pode ser uma saída? Ou talvez a saída esteja em diminuir as prisões que hoje são tão grandes e aí tem tanta dificuldade de individualização da pena? Queria entender um pouquinho como vocês percebem medidas de longo prazo.
Ariadne: Essa é uma das soluções porque em última instância, qual que é a grande questão? Cê maximiza as chances de ressocialização, né? De recuperação daquele preso, se ele estiver em condições que são mais adequadas num cárcere que cumpra o papel que é esperado dele, né? Então, as maxi prisões, elas tem um efeito simbólico, enfim, ela tem. Mas ela não consegue cumprir o papel. A gente teve uma experiência, enfim, que ainda tem muitos problemas, mas que em São Paulo foi colocada, que era a questão da FEBEM. A gente falou pouco aqui da questão do sistema juvenil também que é um outro mundo, mas enfim, que também envolve uma série de coisas. Mas que envolve em não chamar prisão, porque não é pena, mas enfim, é uma internação, mas que é uma prisão basicamente [Cris: Com uma privação de liberdade]. E, assim, as características são muito parecidas, né? É um mini mundo do que é a mesma coisa. Enfim, é muito similar. Mas a gente na década de 90 até, enfim, uma parte dos anos 2000, a gente tinha um problema gravíssimo com relação à FEBEM. Vocês lembram? Tinham rebeliões, existiam fugas constantes etc. E eram prisões (enfim, locais de internação com características de prisão) grandes e que produzia muitos daqueles problemas. E uma das soluções, enfim, mudaram o nome. De FEBEM, virou Fundação Casa. E criaram-se unidades menores, né? Porque ali tava muito colocado que a questão da ressocialização era evidente. Porque eles ficavam internados por um período menor de tempo e eles iriam voltar pra sociedade. Ali eles são seres humanos em formação. A proximidade deles com a família é fundamental. A questão de manter a escolaridade. Enfim, você tem uma série de questões. E aí isso diminuiu um pouco. Não resolveu tudo. Mas a questão dos abusos físicos que eram absurdos de tortura e etc. Então, foi um modelo que, de alguma maneira, diminuiu ou minimizou alguns dos problemas que estavam colocados no modelo das maxi unidades.
Lucas: É. A APAC, ela tem uma coisa interessante que é uma coisa que hoje todo mundo, digamos assim, apedreja, mas acho que é relevante, que é o seguinte: ela é uma entidade civil de direito privado. Ou seja, ela não é 100% pública. Ela não é uma ideia do poder público. Então, ela é uma iniciativa privada. Ela não tem fins lucrativos. Acho que isso tenha, claro, uma distinção. Aí acho que se você assistiu 13ª Emenda, você sabe a diferença de com e sem fins lucrativos pra efeitos criminais. Mas a APAC, ela é uma prova que no setor privado, nesse sentido, ele não é 100% mau, se você for pensar. Até porque quando a gente fala de todos esses sistemas, até vocês falaram de um, acho que hoje lá na PUC você tem o que eles chamam de EDUQUE que são estudantes de direito que vão até o presídio e tem essa questão da interação com o preso. Isso é de iniciativa privada, né? Não é o Estado que pede que você mande estudantes de universidade particular.
Ariadne: Mesmo porque, infelizmente, as prisões elas são… A presença de agentes externos hoje é praticamente vetada. Mesmo pesquisadores, a dificuldade que se tem de adentrar aquele mundo, né? Hoje quem consegue entrar male, male é a Pastoral Carcerária, né? Então, com a questão do apoio religioso. Mas, na verdade, a Pastoral Carcerária acaba fazendo um trabalho incrível em relação a vários outros aspectos. De considerar as condições deles. E não é só apoio espiritual que eles prestam, né? Mas, enfim, eles têm dificuldade de até ajudar, de colocar as mãos ali, né?
Lucas: Exatamente. Essa entidade, ela mostra exatamente o que a Cris falou agora. É a questão às vezes de você trabalhar em menor escala, mas uma escala mais direcionada. Claro, é um modelo que cê dá pra colocar todo mundo? Parece ter questões estruturais e questões de administração que seria muito difícil de você criar. Então “oh, vamos criar seis milhões de APACs, cada uma para tantos ‘x’ presos”. Eu acho que fica inviável você transformar todo o sistema nisso. Mas você precisa de mais iniciativas nesse sentido. Você precisa então, como ela falou, mais acesso a determinados…. Não é falar acesso livre à prisão. Mas, então, a gente começa a colocar a algum tipo de organizações, estudiosos. Essa ajuda então, como você falou, religiosa, muitas vezes sociólogos, psicólogos realmente. [Ariadne: Tem projetos educacionais.] Hoje você tem a questão, da gente falou muito pouco, mas a questão de estudo, o CNJ fala que, se não me engano, acho que é 10% só dos presídios têm a estrutura para o preso, se ele quiser, estudar. O que é uma das… Primeiro, isso diminui a pena dele. Ele consegue a cada três, ele diminui um. E muitas vezes esse é o caminho. Muitas vezes é assim que ele vai conseguir às vezes sair e aí continuar a ter uma vida. Só que quando você não tem nem isso e você tem…
Ju: [Interrompe] É um caminho, é a perspectiva, inspiração. [Lucas: Exatamente.] É uma possibilidade de identidade. Então sei lá…. É o que a gente fala, o cara, ele não tinha identidade antes, na cadeia ele vai se identificar como criminoso, e a arte, esporte, cultura, conhecimento podem ser outras fontes alternativas de identidade, quando na cadeia, basicamente, o que você tem é a religião. Ou o cara vai pro crime ou a religião, não tem muito o que fazer. E não são mutuamente excludentes.
Cris: Bom, com isso chegamos aí à segunda parte do programa.
Ju: Não tem solução fácil…
Cris: …. para problemas complexos. Queremos agradecer aos convidados que estiveram aqui conosco nessa saga para conhecer melhor esse problema que a gente insiste em ignorar, mesmo ele sendo gigantesco. E é isso, né?
(Bloco11) 1:41’00” – 1:50’59”
Ju: Olha, a gente teve muito respeito e muito cuidado pra abordar esse tema, a gente se preparou bastante, a gente sabe que a gente jamais esgotará, mas espero que vocês tenham aprendido o quanto a gente aprendeu, tenha suscitado curiosidade pra inclusive aprender mais e pensar mais sobre isso né, sair das respostas prontas.
Cris: Refletir sobre isso. É isso. Então vamos para o Farol Aceso.
Ju: Bora!
[Trilha]
Cris: Vamos então para o Farol Aceso, começa aí Juliana. O que é que você tem de bom para falar?
Ju: Vamos lá! Eu vou indicar dois Podcasts, na verdade três Podcasts, eu já indiquei durante o programa o Salvo Melhor Juízo, então escutem os dois episódios deles, eles detalham muito mais essa questão de como o PCC surgiu, da questão de identidade de preso, de bandido, falam bastante sobre possibilidades do sistema de por que que existe como existe, quais são as possibilidades de mudar e indico muito fortemente um Podcast em inglês chamado Invisibilia o episódio The personality myth – O mito da personalidade, que ele vai falar justamente sobre como não existem tantas teorias que suportem essa ideia que a gente tem algo que permanece constante na vida: nem personalidade, nem comportamento, nem as próprias células do nosso corpo continuam as mesma, tudo o que a gente é está em constante mutação o tempo inteiro. É muito bem construído esse episódio, vale a pena escutar, eles falam bastante que parte da nossa necessidade, desejo de previsibilidade, você acreditar que as pessoas vão seguir um determinado padrão e aí você constrói a personalidade dela, ah então, “por que que as pessoas casam?” Porque elas acham que elas vão continuar as mesmas e que a outra pessoas vai continuar a mesma, então eles fazem esse questionamento e eles usam a história de justamente um cara apenado pra contar essa história. Então assim, é um cara que cometeu um crime hediondo e que é uma pessoa adorável e qual é o conflito que isso causa em quem conhece ele e de como pode uma pessoa que é adorável ter cometido um crime hediondo, tá? O outro episódio é o do Hidden brain que chama Broken Windows que vai falar justamente sobre essa teoria do Broken Windows, aquela de que: “Ah, se tiver alguma coisa, você tem que ter tolerância zero pro crime porque crimes pequenos como vender um cigarrinho de maconha, se você pegar esse cara que tá pichando ou vendendo cigarro de maconha você previne crimes muito maiores”. Então o criador dessa teoria vai mostrar que isso não é verdade, que não foi isso que ele disse, que isso é uma má compreensão da teoria dele, vale muito a pena.
Ariadne: E que vira política pública!
Ju: É, exatamente. Não, mas ele fala sobre isso, de como foi sequestrada a teoria dele e de repente apareceu um monte de gente falando que ele diz coisas que ele não falou e tomando decisões contrárias às coisas do que a pesquisa científica realmente falava. É bem interessante, vale a pena.
Cris: Ariadne?
Ariadne: Eu vou indicar um seriado chamado Rectify. É um seriado americano, ele não é muito famoso, mas ele é muito interessante porque ele trata sobre a questão do impacto da prisão. Ele tá falando de um contexto diferente, é um contexto americano e sobre um homem que ficou 19 anos no corredor da morte. Ele foi preso com… (enfim, não é uma história real, é uma ficção) mas, ele teria sido preso com 18 anos, acusado de matar e estuprar a namorada e ele fica basicamente toda a vida adulta dele no corredor da morte e aí por uma evidência de DNA o julgamento é anulado e ele volta para a sociedade e aí a grande questão. É um seriado até meio devagar, ele é muito delicado, que é a questão dessa reinserção e do impacto que a prisão tem, o que significa você tirar alguém da vida cotidiana e depois tentar colocar ela de volta ali. Enfim ele não se desenvolve emocionalmente da mesma maneira, ele perde completamente os laços com a família. A família lutou muito pela liberdade dele etc, mas é muito difícil, são estranhos depois de muito tempo apartados e até as próprias questões físicas mesmo de dificuldade de se relacionar, dos espaços, assim, é nos mínimos detalhes o impacto na vida dessa pessoa e depois como é que é viver em sociedade a partir do estigma de ter sido preso e como é que a comunidade recebe ou não recebe, para dúvidas sobre, de fato a responsabilidade dele sobre o crime, o julgamento foi anulado, mas ele não foi inocentado, então, assim, tem muitos conflitos colocados, acho que é bem interessante para pensar o que que significa prender alguém, o impacto disso, a seriedade que é prender alguém.
Cris: Lucas?
Lucas: Então, eu vou fazer duas indicações. Eu tinha pensado em uma, lembrei de outra agora de última hora. A primeira é o livro do Professor Alisson Mascaro que é “Estado e Forma Política”. O Professor Alisson é conhecido por fazer algo que a gente chama de teoria crítica do direito. Então ele vai colocar em cheque, e aí eu acho que calha muito com a ideia do Mamilos que é colocar muito você pra pensar sobre até onde realmente o direito é aquilo que a gente entende que ele é. Será que ele não tá aqui só pra fazer uma manutenção e delimitar uma estrutura política que pessoas interessadas não querem que sejam alteradas? Será que a gente consegue realmente fazer mudanças grandes por meio da lei, ou será que a lei é engessada propositalmente pra gente não conseguir fazer certas mudanças e isso tá associado com a forma política, com a nossa forma econômica, com a forma que a gente entende a necessidade muitas vezes de lucro, do capitalismo, das pessoas, ele é um livro fininho, mas ele é um livro que tem muito conteúdo. Eu acho que é um livro ótimo principalmente pra essa questão de você se perguntar. Pode ser que no final você sai pior é fale “ Meu, não queria ter que pensar, eu não queria ter questionado isso, pra mim tava ótimo como eu tava antes’’ então fica esse aviso anterior. O segundo, vocês já comentaram aqui mais de uma vez, mas é um episódio específico do Black Mirror que é o do White Bear…
Ju: [Interrompe] Pô, isso é muito Black Mirror!
Ju: …eu acho que ele é… Quando eu vi, assim, eu fiquei dias falando com pessoas, falando: “meu, cês viram?”
Cris Eu também. Agora eu vou voltar a pensar nisso… Não foi legal esse gatilho seu…
Lucas: Olha aí… Ele coloca uma perspectiva muito interessante sobre como a gente tem sentimentos, enxerga uma coisa dependendo da ótica né? Então, assim, a virada do final do episódio faz você se sentir horrível e falar: “ai, caraca, será que eu não tô…?”
Cris: [Interrompe] “Qual é o lado certo?”
Lucas: Exatamente! E, claro, como todo episódio de Black Mirror tem uma crítica social gigante por trás né, mas nesse episódio eu lembro que eu fiquei assim dias em estado quase catatônico e pensando “meu…”, repensando tudo do ponto de vista do direito, do ponto de vista de punitivismo, do ponto de vista de Estado, de pena, de crime, então fica a indicação desse episódio específico…
Cris: [Interrompe] De indivíduo né?
Lucas: De indivíduo, exatamente! Então assim, tudo eu acho que vale a pena você assistir, mas para a temática de hoje, esse episódio eu acho muito forte nesse sentido.
Ju: Cris?
Cris: Eu vou ficar na temática também, porque essa discussão toda me fez lembrar um filme que vi muito tempo atrás e foi muito difícil de assistir, que é “O Lenhador”, é um filme com o Kevin Bacon onde ele cumpre pena por pedofilia e depois ele é solto e como que é a ressocialização dele com a família, o quanto ele se sente mal com o crime que ele cometeu, o ser humano lidando com as consequências do erro dele e como que a sociedade passa a enxergar esse ser humano também, né. Ele pega o rótulo que ele carrega, é um dos rótulos mais fortes que a gente tem na nossa sociedade e como que se desdobra a relação dele com a sociedade pós soltura. É um filme também muito delicado, o Kevin Bacon tá muito bem nesse filme, eu recomendo pra continuar estourando a cabeça aí, como você lida com esse barulho. É isso aí então pessoal.
Ju: Até a semana que vem!
Cris: Fica a gostosa sensação de mais um Mamilos no ar. Beijo!
Ju: Beijo!