- Cultura 27.out.2018
Mostra São Paulo: Paul Dano ensaia drama de proposta forte e execução dissipante em “Vida Selvagem”
Estreia do ator na direção é marcada por análise da classe média norte-americana dos anos 60 e forte dependência no elenco para materializar crise doméstica
Ainda que o autor não seja tão conhecido fora do cenário literário, não é lá muito difícil entender o que levou Paul Dano a ver na adaptação de um livro de Richard Ford um projeto ideal para realizar sua estreia na direção. Acostumado a papéis de personagens quebrados que trafegam muito próximo (quando não adeptos) da desvirtuosidade, o ator sempre carregou em suas performances o desmonte como ponto de partida – seja sob personagens regidos pela internalização como o filho mais velho de “Pequena Miss Sunshine” ou aqueles entregues a este processo pelas vias exteriores como o do padre de “Sangue Negro” – uma característica que coincide em muitos pontos com a estrutura das histórias do escritor, conhecido justamente pelos retratos de desmantelamento de instituições concebidas pela sociedade.
No caso de “Vida Selvagem”, o rompimento é em cima dos valores tradicionais pertencentes ao casamento e (em especial) à família, duas construções sociais cujas instabilidades no filme são pintadas por Dano pelo viés mais puro da tensão do indivíduo com seu dever comunitário. A trama, afinal, segue uma crise de relações pautada por uma ausência de adequação dentro da hierarquia, acompanhando o afastamento emocional do casal formado por Jerry (Jake Gyllenhaal) e Jeanette (Carey Mulligan) à partir do momento que o primeiro perde o emprego menor num resort de golfe e passa a questionar os caminhos profissionais tomados. É uma tomada de consciência do lugar ocupado, porém, que não será desempenhada em um aspecto externalizante ou de uma inconformação revolucionária, mas sim pelas vias do íntimo: depois de passar meses desempregado e ver a esposa e o filho Joe (Ed Oxenbould) assumirem serviços de meio-período para pagar as contas, Jerry resolve aceitar um emprego fora da cidade, ajudando no combate aos incêndios florestais da região do estado de Montana.
É a partir deste afastamento físico do marido que a trama do longa realmente é posta em movimento, mas o roteiro escrito pelo diretor e a companheira Zoe Kazan já se interessa por ações por trás da dinâmica do casal que acontecem antes desta decisão tomada no impulso pelo personagem. Além de fortalecer a proposta íntima, o filme assume a perspectiva do filho quase que inteiramente como sua para fazer esta aproximação dos dramas entre Jerry e Jeanette em caráter gradual, enxergando os conflitos a princípio de longe para depois chegar mais perto e criar à partir disso um ato de revelação da inevitabilidade do desmanche do relacionamento, feito através do estabelecimento e crescimento de bases antagônicas nas duas partes.
Mas que bases tão distintas são essas que separam os dois personagens, afinal? A resposta para esta pergunta, pelo menos aos olhos do diretor, mora numa questão de propósitos, algo muito relacionado ao cenário geracional dos baby boomers – ao qual ambos pertencem – e sua relação com a ordem social norte-americana da época. Jovens e dotados da responsabilidade familiar muito cedo, tanto Jerry quanto Jeanette almejam a falsa idealização do crescimento econômico e de status que o sonho americano promete, mas veem o desejo limitado pela rigidez estrutural que afasta (e enaltece) a elite dos menos afortunados. Resta aos dois, então, traduzir esta frustração com o conformismo em uma terceira via, e é justo neste conflito emocional onde mora o filme de Dano.
O filme assume a perspectiva do filho para fazer a aproximação dos dramas entre Jerry e Jeanette em caráter gradual
Não é um interesse, porém, que vá ser desenvolvido de forma igual aos dois lados, ainda mais porque este desconforto tem níveis de complexidade distintos. Se a “fuga” de Jerry para o corpo de bombeiros é reduzida ao essencial, traduzido numa busca por adrenalina para criar certa sensação de completude existencial, a aflição interna de Jeanette é expandida de forma a não cair em becos sem saída de estereotipações ou más concepções; Dano trabalha muito próximo de Mulligan para dar espaço ao sofrimento interiorizado da dona de casa, que ao voltar ao mercado de emprego por uma necessidade familiar também volta a entrar em contato com próprios desejos individuais, sejam eles a ambição de ascender às classe mais ricas (todo o caso que ela tem com o divorciado milionário da cidade, vivido por Bill Camp, passa por isso) ou de retomar a si o controle de seu destino. “Seus pais já existiam antes de você nascer”
a mãe diz ao filho em determinado momento de uma conversa num restaurante à beira da estrada e depois de revelar a ele o quanto ela era desejada na juventude, numa cena que ajuda a sintetizar o nível dos sentimentos conflitantes da personagem entre suas responsabilidades atuais e as vontades recém-reemersas.
É dentro deste desenvolvimento, vale acrescentar, que Dano denota uma dependência maior do elenco, especialmente de Mulligan e Oxenbould que carregam o grosso dramático do longa. Enquanto ao garoto cabe a tarefa de receber e reagir aos efeitos das instabilidades cada vez maiores do relacionamento dos adultos e Gyllenhaal repete sua expressividade contida característica, a atriz se vê no centro destas transformações turbulentas em mais um papel de dona-de-casa, uma posição da qual sabe muito bem como elaborar em cima. Se os eventos de “Vida Selvagem” possuem algum peso emocional ao longo de toda a sua narrativa, é porque Mulligan mantém constante em sua performance as dores deste processo.
Dano denota uma dependência maior do elenco, especialmente Mulligan e Oxenbould que carregam o grosso dramático
É também da performance da atriz, porém, que se percebe a falta de familiaridade do diretor com o drama do qual exerce, pois ainda que mantenha em voga uma premissa de temáticas fortes é inevitável a sensação de que “Vida Selvagem” comece grande e termine diminuto. Um decréscimo que surge de uma certa frieza narrativa, a bem da verdade: Dano aqui sabe como balancear os anseios de sua narrativa e mantê-los presentes por toda a duração do projeto, mas ao mesmo tempo não parece lidar bem com um peso emocional maior quando na hora de proporcionar o choque. Seja a confrontação final de Jerry e Jeanette ou a ira do marido ao descobrir o alcance da traição da esposa, os momentos de clímax da produção soam simples demais, presos a atos banais e resoluções de impacto inexistente quando o drama pede justo o oposto.
Estas limitações, entretanto, não chegam a corromper o eixo temático concebido, o que ajuda o filme a se manter relativamente firme mesmo quando a narrativa não é capaz de acompanhar os vai e vens dos arcos dos protagonistas. O equívoco, talvez, venha de um problema de abordagem de Dano com a história que quer contar, porque enquanto seu lado novelista se revela cru e sem pulso, a sua atenção maior ao registro das aflições interiores de uma geração proporcionam os pontos mais dolorosos de sua obra, sacramentados no último plano que é a literal representação de uma juventude de desejos frustrados e conformação forçada.
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