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Mostra São Paulo: “Infiltrado na Klan” explicita a importância da luta em tempos de ódio

Pautado pela provocação e a urgência da militância política, Spike Lee volta a fazer um filme sobre discursos, agora com inspiração no blaxploitation

por Pedro Strazza

De todas as diversas imagens de escárnio que permeiam “Infiltrado na Klan”, a nova e explosiva “parada” de Spike Lee feita especialmente para os atuais tempos de ódio e extremismo, talvez a mais inesperada aconteça logo na abertura, na qual o diretor aproveita de um plano de grua de “…E O Vento Levou” que mostra uma centena de soldados feridos antes de revelar por uma bandeira que eles são confederados. É uma maneira e tanto de começar o filme chutando a porta, ainda mais quando acompanhada pelo monólogo escrachado do personagem de Alec Baldwin que vem a seguir: em uma produção pautada pela desconstrução (ou, no caso, a implosão) dos discursos de violência contra raças e a tal da “superioridade branca” pregada pela Ku Klux Klan, é um ato nem um pouco sutil de Lee de abrir a narrativa relembrando uma obra de viés racial controverso mas ainda celebrada pelo público como grandiosa.

É uma cena que entrega, afinal, o lembrete maior sobre o quão enraizada estas relações entre o racismo e a História dos EUA se encontram dentro da sociedade estadunidense, ao forçar o posicionamento do espectador perante uma imagem de mais pura e falsa compaixão, uma de caráter pernicioso dada as vítimas em evidência na cena tirada do filme de Victor Fleming.

Esta abertura, porém não é um ato tão surpreendente da parte do diretor, mas sim um bastante esperado pelo público. Cineasta que sempre carregou sua militância negra para dentro de seus projetos, Lee também manteve constante ao longo da carreira um modo de operação muito único e que alinha seus anseios políticos e emocionais com um revisionismo não só de cinema mas (por que não?) do audiovisual como um todo, uma combinação que na telona exprime um desejo muito pulsante de trazer à tona e analisar a História negra norte-americana. E depois de tantos anos sacramentando bases, traduzindo dores e eternizando mitos deste processo, ele volta a este procedimento não sob o viés de análise de um passado distante, mas sim para criar uma resposta a um assunto muito mais urgente: o presente.

Spike Lee (à esquerda) no set com Topher Grace e Adam Driver

Ainda que como em todos os outros projetos esta necessidade vá ser escancarada em algum momento dentro do longa – que, no caso, vem na forma do apoteótico desfecho responsável por fazer o pulo final da ficção para a realidade – os objetivos do cineasta com “Infiltrado na Klan” são expressos constantemente por toda a narrativa. A história também não pode ser consideradap das mais misteriosas em termos de propósito, dado a contemporaneidade no qual ela é filmada e a própria premissa de acompanhar a operação conduzida pelo policial negro Ron Stallworth (John David Washinton) para se infiltrar na Ku Klux Klan em meio ao auge dos movimentos raciais dos anos 70. Lee volta a realizar aqui um filme sobre o embate de discursos, mas ao contrário de outros trabalhos como seu grandioso “Faça a Coisa Certa”

esta rixa não se dá por uma discordância de posicionamentos e sim por uma questão de antagonismo, do “nós contra eles” e da resistência contra o ódio derivada deste processo.

E para traduzir na tela todo este campo de extremos, nada melhor que o humor mordaz e característico de Spike Lee em uma de suas maiores intensidades. Sejam as situações absurdas, o retrato estereotipado dos membros da KKK (o David Duke de Topher Grace é particularmente hilário dado a arrogância juvenil com a qual encena os diálogos) ou os inúmeros paralelos com o atual cenário político norte-americano traçados – além dos acenos mais diretos, as recorrências pontuais da imagem de Nixon não poupam a comparação com o presidente Donald Trump -, o diretor não poupa recursos, tomando várias liberdades na adaptação do livro homônimo escrito por Stallworth (o longa não se passa nem na mesma época da realidade, antecipando os eventos em quase cinco anos) para abarcar um verdadeiro arsenal de piadas escrachadas sobre a extrema direita e o proto-nazismo intrínseco a ele, traduzido em um tom de comédia escrachada que é digno do gênero do blaxploitation.

Lee volta a realizar aqui um filme sobre o embate de discursos

O lado fascinante de “Infiltrado na Klan”, porém, está na maneira como ele constrói o posicionamento político de seu diretor dentro deste escracho, à partir das questões raciais às quais ele se debruça na história. Pois ainda que a tiração de sarro impere em grande parte do filme, as atenções de Lee com o projeto estão tão centradas nos meandros ideológicos do lado dos oprimidos quanto na zombaria com os opressores, uma atitude que resulta numa análise de discurso bastante profunda do movimento negro setentista. Uma das mais belas imagens do longa, neste sentido, é sem dúvida a justaposição de rostos da plateia negra na cena em que o líder Kwame Ture profere seu discurso sobre a libertação de seu povo: a fotografia de Chayse Irvin registra os rostos de cada pessoa para elevar uma classe de oprimidos, buscando o brilho no olho que denota uma pálida (mas inflamada) esperança por tempos melhores.

Para esta abordagem mais séria, o filme também se aproveita das estruturas provenientes do blaxploitation, dispondo da condição de mil contradições que esta parcela da produção setentista carregava. Como os heróis e heroínas problematizados pelo protagonista e Patrice (Laura Harrier) na cena da ponte (outro destes momentos de zero discrição do cinema do diretor), o Stallworth de “Infiltrado na Klan” serve de base a Lee para escancarar na tela este sentimento ambíguo sentido pelo negro perante o sistema, feito sob um jogo de atração e repulsa pelos meandros da lei que nunca cessa – ou cessará – de forma definitiva. É algo traduzido no roteiro dentro no bate e rebate entre o “Poder para o povo” e o “Todo o poder para todos os povos” que, proferidos respectivamente pelo policial e a líder do grêmio estudantil negro, exalam este desconforto constante com uma instituição que sempre se coloca como antagonista da raça.

O Stallworth de “Infiltrado na Klan” escancara o sentimento ambíguo sentido pela figura negra perante o sistema

Mas se esta narrativa do discurso do movimento negro sugere na teoria uma desconstrução de afirmações da classe, similar à realizada com o outro lado, o procedimento é completamente inverso. Enquanto com a Ku Klux Klan e os grupos de ódio Lee busca a implosão e o desmembramento pelas vias do ridículo, com os oprimidos seu interesse reside no fortalecimento da causa e da necessidade de reiterar a importância da luta; estas contradições com o sistema, no fundo, são elaboradas pelo diretor não no intuito de invalidar o discurso daqueles que resistem, mas de revelar a estes o quanto aquilo que os rodeia e os afronta no fundo é mais frágil – e nada pode ser tão revelador quanto as seguidas justificativas usadas pelos policiais para justificar ao protagonista o porquê deles manterem um racista em suas fileiras.

É daí que vem então a força do desfecho do filme, cujos múltiplos finais envoltos em tantas propostas – homenagem ao gênero, triunfo do cinema e, claro, o retorno à atualidade – reiteram uma continuidade dos valores abordados e tão urgentes aos dias de hoje. “Infiltrado na Klan” é uma obra que preza acima de tudo pela reafirmação da resistência ao ódio, ao medo e à opressão dentro do momento contemporâneo em que se situa, e Lee sabe o nível de importância de sua mensagem o suficiente para martelá-la à exaustão até ser ouvido.

nota do crítico

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