“Eu trabalhei em cima de uma ideia” diz Helena Ignez sobre “A Moça do Calendário”
Entrevistamos a lendária atriz do cinema brasileiro sobre seu novo trabalho na direção
A carreira de Helena Ignez muitas vezes se confunde com a do cinema brasileiro. A atriz, que foi casada com Rogério Sganzerla e Glauber Rocha, estrelou produções célebres da produção nacional dos anos 1960 e que reverberam até hoje nos rumos do audiovisual brasileiro como “O Assalto ao Trem Pagador” de Roberto Farias, “O Padre e a Moça” de Joaquim Pedro de Andrade e, claro, “O Bandido da Luz Vermelha” do próprio Sganzerla.
É também deste último que surge agora “A Moça do Calendário”, filme que é o terceiro longa-metragem de Ignez na função de diretora. Resgatado de um dos dezoito roteiros deixados por Sganzerla antes de sua morte em 2004, o longa é uma adaptação de contos escritos por Luis Antonio Martins Mendes que a princípio seria um curta ambientado no Rio de Janeiro do fim dos anos 80; nas mãos da cineasta, porém, o projeto foi para São Paulo dos anos 2010.
“Foi um arranjo” comenta ela em entrevista ao B9, cedida durante a divulgação do filme antes de sua estreia no circuito comercial; “O que eu vi nessa joia que me apareceu há quatro anos é que tinha uma essência muito interessante a ser desenvolvida e alguma coisa para se jogar fora”. O processo adaptativo, segundo a diretora, também foi difícil por conta do próprio material base que tanto ela quanto Sganzerla tiveram que lidar ao escrever o roteiro: “Esses contos não eram bons no sentido da essência deles, não eram bons porque ficaram completamente ultrapassados. Eu os retirei e mantive os diálogos deste personagem existencial que é o Inácio e dessa líder da reforma agrária e das ligas camponesas que é a ‘Moça do Calendário'”.
São exatamente estes dois personagens que conduzem a trama do filme. Interpretados por Djin Sganzerla e André Guerreiro Lopes (respectivamente a filha e o genro de Ignez), a “Moça do Calendário” do título e o mecânico Inácio tecem uma relação feita de contraditórios, com a figura feminina servindo de escape ao trabalhador de uma vida difícil e desinspirada. No processo, comentários são feitos em torno da imagem do operário brasileiro contemporâneo, em conflito com as próprias questões sociais que o cercam e as aspirações artísticas sufocadas pelo cenário sempre duro.
Confira abaixo nossa conversa com Ignez. “A Moça do Calendário” foi lançado hoje (27) nos cinemas brasileiros.
O filme é baseado em um roteiro escrito pelo Rogério Sganzerla em 1987. O que te levou a produzir este roteiro agora? Como foi o caminho de adaptá-lo ao cinema?
Este roteiro estava um pouco esquecido, na verdade. O Rogério deixou 18 roteiros de longas-metragens, ele era um escritor. E este curta ficou meio esquecido no sentido de que era um curta e ele tinha colocado ali personagens de uma pessoa que tinha pedido a ele pra desenvolver um roteiro sobre aqueles contos. E esses contos não eram bons no sentido da essência deles, não eram bons porque ficaram completamente ultrapassados. Eu os retirei e mantive os diálogos deste personagem existencial que é o Inácio e dessa líder da reforma agrária e das ligas camponesas – que é como se falava da reforma agrária e do MST na época – que é a Moça do Calendário. Eu peguei a essência deste curta-metragem, que são estes dois personagens, e trabalhei durante um ano pra fazer o longa com o mesmo nome, também totalmente readaptado a outra cidade, outro momento, as mulheres com uma definição mais clara… porque o roteiro não estava pronto, também. Foi um arranjo, o que eu vi nessa joia que me apareceu há quatro anos é que tinha uma essência muito interessante a ser desenvolvida e alguma coisa para se jogar fora.
Então você apenas reconfigurou o roteiro ou adicionou mais cenas e diálogos a ele?
Tudo, o roteiro era um curta-metragem e, como não estava pronto e inclusive tinha páginas repetidas, devia ter umas catorze, dezesseis páginas, e eu fiz um roteiro de 86 minutos, então com cento e tantas páginas. Eu trabalhei em cima de uma ideia, da moça, do calendário em cima de um jipe verde ser o sonho dele, dela ser uma líder revolucionária, dela ser uma militante, e deste personagem que duvida de tudo e não quer mais nada, não acredita nos governos e tá cansado de trabalhar numa coisa que ele não acredita e que também tem certos lances artísticos, porque ele também é dublê de dançarino, então foram fragmentos que restaram.
Ainda no roteiro, qual é o maior desafio em questão de contexto? Porque é como você falou, houve uma mudança de cenário brusca e há também a questão do avanço da época.
É, de fato. Inclusive no roteiro original era “O Lula vai chegar!”, e neste eu tive que reescrever para “vai voltar” [risos].
No filme, o protagonista Inácio tem essa divisão entre a vida artística e a vida “comum” dele, em que – como você citou – ele está completamente desencantado, e tem um momento no filme em que ele vai discutir a questão da reforma agrária com a Moça do Calendário e ele chega em certo ponto a defender que a reforma não aconteça. É uma cena que surpreende porque revela um certo distanciamento da figura do trabalhador das questões sociais que o rodeiam, você poderia comentar um pouco mais sobre isso?
Ali é uma espécie de uma queda do Inácio, porque na verdade ele se comporta com mais firmeza do que aquilo, ele não admite a exploração e é completamente companheiro dos colegas, mas mentalmente ele não está completamente preparado. E ali é o sonho, a moça do calendário de vermelho dentro do jipe é o sonho dele, e a realidade não está de acordo com o sonho, ele acha que ela está ali por outros motivos. É ali também que ele cai no sentido de, bem, quando as terras são do meu pai eu não penso em dividi-las, ele se contradiz o tempo todo, e ao mesmo tempo ele fala que perdeu o tesão porque ela o obrigou a pensar numa coisa que ele já tinha apagado, que é aquela relação com o pai latifundiário. E ele é um sonhador mentiroso também né, porque ele não vivia do dinheiro do pai de jeito algum apesar de ter aquela história. É engraçado pois aquela também é uma história de Rogério [Sganzerla], cujo pai era prefeito de Juassaba e dava uísque escocês pra ele com 11 anos, olha que loucura. Eu achei muito interessante essa observação, deste absurdo.
Você mencionou que existem outros dezoito roteiros do Sganzerla. Há algum outro que te interesse adaptar?
Vamos ver, né? Tem um roteiro dele que eu tô de olho, apareceu agora um convite para dirigir um telefilme no Sertão nordestino, e este roteiro dele que me interessa é no Sertão também, é uma adaptação de “Macbeth” no Sertão com cangaceiros, mas é um super projeto então vamos ver se é possível. Por enquanto eu tenho outros dois projetos engatilhados que não são estes, que são meus mesmo.
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