- Cultura 11.abr.2018
“Um Lugar Silencioso” usa do horror para conduzir drama familiar
Terror dirigido pelo ator John Krasinski se interessa mais pelos conflitos de seus protagonistas que pela premissa de um suspense guiado no silêncio
É um tanto curioso o esforço de um “Um Lugar Silencioso” para introduzir em seu prólogo os personagens antes do cenário pós-apocalíptico ao redor deste. Embora a premissa do filme dirigido por John Krasinski parta desta situação onde alienígenas dizimaram a humanidade através de uma caça pelo som, os primeiros momentos do longa se concentram na família Abbot que protagonizará a trama, introduzindo o público às dinâmicas internas e ao trauma maior que norteiam suas existências dentro do espaço de tempo encenado pela produção. O mundo como conhecemos pode ter acabado, mas o núcleo familiar tradicional continua vivo, com o pai que se encarrega da proteção física, a mãe resumida a ensinar e proporcionar carinho e os filhos que desde pequenos são preparados para a (mais) dura realidade ao seu redor.
Ainda que de início o longa se paute como um horror que se estabelece à partir de uma situação digna da tragédia visual do gênero, é desta posição mais pautada no drama, com seus personagens refletindo dores na ausência de diálogo, que a produção surge. É uma inversão um tanto estranha, feita no impulso e que depois se corrige dentro da própria trama, mas o choque narrativo gerado nisto ajuda a entender as cacofonias presentes no filme. Se a proposta do longa dá a entender que ela irá se aventurar por algumas experimentações calculadas (e características dos produtos de estúdio) por trás de uma narrativa silenciosa e justificada pela percepção estritamente sonora das criaturas, esta noção aos poucos se dissipa perante o alarmismo constante da trilha sonora de Marco Beltrami e o enfoque maior da obra sobre as relações familiares que encena, cuja centralidade é tamanha que é capaz de encurralar e resumir o horror a pontos muito específicos de sua história.
Existe neste sentido um desconforto notável por parte do filme de se manifestar como produto de gênero em toda a sua duração, mas por outro lado (e talvez paradoxalmente) ele também mostra-se um tanto consciente desta sua identidade como produto. Emerso em Hollywood por seu papel na série “The Office”
e com uma pequena carreira como cineasta independente (incluindo aí uma adaptação de David Foster Wallace e uma participação como roteirista de um projeto comandado por Gus Van Sant), Krasinski aqui faz uma transição até que segura entre o meio autoral e o campo das produções de estúdio no que consta a ajustar sua postura criativa a uma área de maior submissão a estruturas lúdicas e de gênero. O diretor sabe como se virar com o básico e não falta muito à lógica do roteiro de Bryan Woods e Scott Beck na hora de manipular espaços e cenários para proporcionar tensão, aos quais executa em movimentos muito simples – um close no prego exposto em uma escada, por exemplo, e pronto, está estabelecido o horror da próxima cena com a personagem.
São estes pequenos exemplos de ludismo, constituídos de um efeito de suspense baseado em ação e reação (seguindo o caso, logo depois de utilizado o mesmo prego desaparece), que permeiam a narrativa desenvolvida pelo diretor ao longo da história, feitos no intuito de não desviar a atenção do espectador dos efeitos dramáticos almejados pela obra. Porque mesmo que se baseie no terror, o roteiro de Woods e Beck é redirecionado por Krasinski a uma espécie de fábula que mira a desconstrução dos valores morais mais tradicionais, partindo de uma hierarquia conservadora nos Abott para terminar invertendo algumas relações. Assim, se é o pai (interpretado pelo diretor) que há de proteger os filhos e a esposa (Emily Blunt), no fim é o contrário parcial que se verifica com a filha (Millicent Simmonds) assumindo a responsabilidade pela segurança do grupo.
O diretor sabe como se virar e não falta muito à lógica do roteiro quando manipula espaços e cenários para proporcionar tensão
Mas tal qual a premissa lúdica do filme, esta noção fabulesca é tão frágil quanto o raciocínio simples de seu diretor, e é neste ponto que a opção pelo drama em detrimento do horror pesa mais à produção. Krasinski talvez seja capaz de reconhecer as estruturas do terror que encena, mas como em grande parte dos casos de primeira experimentação por um gênero ele não sabe alinhar suas vontades a este jogo de tensão que executa, uma questão que ele resolve de forma precária isolando os momentos lúdicos do drama que os cerca.
O que acontece à partir disto é o típico caso de estranhamento natural tornado em problema por acidente. Quando precisa transitar por situações de suspense, o longa parece interromper – por medo ou inabilidade – os arcos dramáticos em movimento, como se condenasse por vontade própria este desejo de se alternar entre gêneros afim de evitar qualquer intersecção. O exemplo maior desta tendência é a cena do parto da personagem de Blunt, que se desenrola durante a invasão de uma das criaturas à casa dos Abbot: todo o suspense subjacente do nascimento barulhento do rebento parece existir somente no intervalo de tempo em que o alienígena encontra-se trafegando entre os recintos, se resolvendo quase que imediatamente no momento imediatamente posterior como se não houvesse um prosseguimento lógico à situação tão aflitiva de parir em um lugar cuja regra maior é o silêncio.
Quando precisa transitar por situações de suspense, o longa parece interromper os arcos dramáticos em movimento
É por conta destes cacos, assim, que a narrativa de “Um Lugar Silencioso” aos poucos se mostra reduzida a uma instantaneidade de momentos, uma lógica não planejada pela produção e que é vulnerável a todo tipo de crise a longo prazo. A maior vítima deste processo sem dúvida é a fábula proposta por Krasinski, cuja tentativa de inverter pólos da hierarquia familiar se perde na martirização do patriarca dos Abbot, mas o drama e o horror que permeiam a história ficam perdidos entre tantas alternâncias de tom; enquanto o primeiro fica com a sensação esquisita de ausência de resolução para qualquer um dos arcos de personagem sugeridos, o segundo vê as regras do jogo de silêncio entrarem em contradição consigo mesmas a cada nova situação, algo acentuado em questões como o número de criaturas presentes no local ou do teor dos barulhos que chamam a atenção destes monstros.
A única vantagem de Krasinski em meio a todos os problemas é que ele demonstra ter algum tipo de domínio sobre este raciocínio mais imediato mesmo sendo sabotado por este, o que garante ao longa uma cadeia de momentos de suspense genuínos (ainda que isolados entre si) à partir da metade do segundo ato. Esta sequência não deixa de ser em si outro movimento que contribui para este incômodo geral da obra: se por um lado o diretor reconhece os meios capazes de proporcionar um suspense de entretenimento barato, é talvez sua demasiada auto-consciência que imponha um excesso de limites de raciocínio – narrativos e de conteúdo – ao filme como um todo, uma noção tão paradoxal por essência e que o filme nunca busca se desvencilhar de fato.
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