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Capa - “Paddington 2” é resposta ingênua e calorosa ao trauma do Brexit

“Paddington 2” é resposta ingênua e calorosa ao trauma do Brexit

Continuação da aventura infantil de 2014 faz do urso um curioso ideal do trabalhador

por Pedro Strazza

Se eventos traumáticos sofridos por um país tendem a afetar a produção cinematográfica nacional de forma direta, esta afirmação não deixou de ser correta com o Brexit e o Reino Unido. Desde a decisão final da nação de se retirar da União Europeia – tomada em caráter definitivo pelo povo há quase dois anos – o cinema do país parece também ter mergulhado de cabeça no caos proeminente desta opção pelo isolamento econômico-social. A crise, afinal, é identitária: se o país, antiga potência imperialista, há tempo se posa de referência ao resto do mundo, colocando a Inglaterra como centro intelectual e liberal, a decisão por romper firmes relações econômicas com o restante da Europa e abandonar o barco que está afundando rompe com esta superioridade e revela a fragilidade de tamanha ilusão auto-imposta.

Posto isso, é de se esperar então que as artes (e o cinema) reflitam em algum nível esta constatação de escala nacional. Enquanto séries como “The Crown” e “Philip K. Dick’s Electric Dreams” lidam com o tema por um viés ilusório (o primeiro nas seguidas quebras do rígido jogo de aparências que cerca a família real da rainha Elizabeth II, o segundo na alegoria frontal do episódio “The Commuter”), as duas produções britânicas maiores indicadas ao Oscar deste ano abordam o assunto com a postura de um grande trauma a ser ecoado e resolvido no passado, relembrando o momento de crise máxima vivido pelo reino durante a Segunda Guerra Mundial e mostrando o povo atuando na resolução dos problemas de forma indireta (a cena do metrô em “O Destino de Uma Nação” de Joe Wright) ou direta (como o “Dunkirk” de Christopher Nolan bem tenta transparecer). Até mesmo o “Victoria & Abdul” de Stephen Frears traz ecos da saída britânica da UE, feitos nas manobras da nobreza inglesa para afastar o protagonista muçulmano da posição de conselheiro da rainha Victoria.

Mas se nas obras elencadas acima prevalece o tema do Brexit em toda potência de causa social que lhes é cabível – independente do ângulo com o qual o abordam – é interessante perceber como até as produções mais desambiciosas do cinema britânico mostram-se conscientes do cenário social em que se inserem. É o caso de “Paddington 2”, o curioso e inesperado exemplo marcante desta primeira leva de produtos audiovisuais “afetados” pela crise e que em seus atos aparentemente ingênuos menciona questões relevantes aos britânicos hoje.

Assim como no primeiro “Paddington”

, a sequência segue a princípio a cartilha de fidelidade ao espírito dos livros infantis escritos por Michael Bond, acompanhando mais uma vez as aventuras do urso Paddington (Ben Whishaw) numa Londres pacata e posta como um grande subúrbio. Agora estabelecido com a família Brown, ele busca proporcionar à sua tia Lucy (Imelda Staunton) a experiência de viver na capital inglesa, mas como o urso não tem como trazê-la à Inglaterra ele resolve enviar a ela um livro pop-up com os principais pontos turísticos da cidade, um que ele encontrou em uma loja de penhores. Antes que ele consiga comprar o livro, porém, o estabelecimento é saqueado e o urso é condenado erroneamente pelo crime, sendo trancafiado na cadeia enquanto o verdadeiro culpado – o celebrado ator Phoenix Buchanan (Hugh Grant) – usa o item para procurar uma lendária fortuna.

Enquanto personagem, Paddington está desde sua concepção literária atrelado à figura do imigrante exemplar, cuja gentileza extrema era capaz de desarmar o preconceito dos mais conservadores – proposta esta bastante similar à representação dos negros no cinema americano dos anos 50 e 60 e que seria desconstruída nas décadas seguintes -, mas se no original de 2014 este lado do personagem era tratado em caráter circunstancial, a continuação trata deste viés com um pouco mais de firmeza. Despidos do compromisso de introdução do protagonista e seu pathos, o diretor Paul King e seu co-roteirista Simon Farnaby reapresentam o protagonista sob este ideal do trabalhador esforçado e conduzem a história dentro desta lógica de influência que o urso tem para os outros. Se antes Paddington era um intruso que precisava fazer seu nome valer numa cidade desconhecida, agora sua posição é vital para o funcionamento da vizinhança e da família que o acolheu, alimentando subtramas e servindo quase como um Sol àquela comunidade.

O filme reapresenta seu protagonista sob um ideal de trabalhador esforçado, conduzindo a história dentro da lógica de influência que o urso tem para os outros

É uma imagem muito diferente da criada para Phoenix, vilão que é um ator em ruínas e busca ressuscitar a carreira pela via da riqueza fácil. Nessa dinâmica de opostos, um conto da cigarra e da formiga para os tempos atuais que emula um pouco das classes maiores da sociedade inglesa (isto é, os comuns e a nobreza), o longa contempla naturalmente a figura do trabalhador como ideal a ser seguido, e Paddington parece se tornar este símbolo social divino (e atrapalhado) de harmonização. Não existe uma crise de identidade que não possa ser resolvida pela determinação do protagonista, uma criança que de fato acredita em seus valores.

Existe um tom de elegia em meio a tudo isto (o longa prefere manter sua memorabilia atrelada ao passado, seja em trens ou em telefones domésticos), mas a direção de King é equilibrada o suficiente para traduzir tamanha declaração de ingenuidade em uma narrativa cativante e tenra. O clima lúdico que domina o filme de cabo a rabo serve a “Paddington 2” como meio de convencimento sincero, inclusive aproximando Londres do retrato pictórico dos livros infantis – mesmo a empresa onde o patriarca dos Brown (Hugh Bonneville) trabalha, em teoria um ambiente contemporâneo, tem a disposição espacial hierarquizada das fábricas da Revolução Industrial.

Não existe uma crise de identidade no filme que não possa ser resolvida pela determinação do protagonista, uma criança que acredita em seus valores

É no humor, porém, que King encontra seu maior alicerce para fundamentar a narrativa de sua fábula infantil. Evitando os caminhos fáceis e comuns do gênero dentro da lógica infantil, o filme usa da comédia como elemento reconciliador palpável, seja no chavão da denotação de costumes (as cenas do Paddington pela vizinhança) como para desarmar a agressividade de determinados cenários – a passagem do urso pela prisão rende momentos graciosos, especialmente quando para brincar com os esterótipos dos presos (incluindo aí o chef durão vivido por Brendan Gleeson). Tudo temperado com um tom lúdico, que lembra um pouco do rigor estético de Wes Anderson mesmo a execução sendo bem menos formalista.

Mas embora mostre esta aptidão a planos rígidos, use de um humor “respeitoso” e faça o gestual característico das produções que encontram no passado uma resolução aos problemas do presente, “Paddington 2” escapa com elegância do eventual caráter saudosista que a princípio assombraria as suas questões e temáticas. Se outras produções possuem interesses maiores quando olham para o processo histórico, a sequência aqui mantém este olhar ao que veio antes sob a ótica da reverência, repercutindo ideais sociais em estruturas contemporâneas sob a graciosidade da moral fabular. E se os desdobramentos finais da caça ao tesouro não te chamarem a atenção neste sentido, o carinhoso reencontro familiar proporcionado no encerramento há de surtir este efeito de cura.

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