“Os adultos rejeitam os jovens porque tem medo dessa outra maneira de ver o mundo”, diz Laurent Cantet
Vencedor da Palma de Ouro em 2008, diretor de “A Trama“ discute com o B9 sobre as novas gerações, o estado atual da França e “The Witcher“
Embora tenham se passado quase dez anos desde que venceu a Palma de Ouro em Cannes por “Entre os Muros da Escola”, Laurent Cantet mantém certo procedimento criativo padronizado na hora de realizar seus filmes. Pelo menos seus últimos cinco filmes mantém como base a premissa centrada em um grupo de pessoas, e destes cinco grupos há três compostos por jovens: o celebrado “Entre os Muros…”, o esquecido pelo público “Foxfire – Confissões de uma Gangue de Garotas” e seu mais novo trabalho, “A Trama”, que encerrou a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo deste ano e chega aos circuitos comerciais de cinco cidades brasileiras neste fim de semana.
Traçar paralelos entre essas obras torna-se então um ato quase inconsciente, ainda mais porque estes três filmes de Cantet, especialmente o primeiro e o último, trazem incorporados em suas histórias alguns reflexos da delicada situação político-social vivida pela França, que nesta última década teve os seus debates acalorados sobre minorias se reduzirem a um estado de medo e viu a ascensão dos movimentos de extrema-direita se acentuarem a ponto de quase levarem Marine Le Pen à presidência do país. A confrontação com leves tons de política, vale mencionar, é central no roteiro de “A Trama”, que trata de um workshop liderado por uma celebrada autora de thrillers chamada Olivia (Marina Fois) e o confronto crescente que a professora tem com algum de seus alunos adolescentes, em particular o jovem Antoine (Matthieu Lucci), cuja raiva interior e flerte com movimentos de direita o fazem contestar certas posições e posturas da obra da escritora.
Apesar de tocar rapidamente em temas políticos – cuja resolução no filme está longe da reconciliação fácil – o interesse maior do diretor no longa está nos jovens. Tomando Antoine como uma espécie de protagonista, Cantet e seu co-roteirista Robin Campillo investem bastante no filme no universo dos jovens, algo que se revela desde o minuto inicial da abertura que é um gameplay de “The Witcher III”, celebrado jogo da desenvolvedora polonesa CD ProjektRed.
Em São Paulo a convite da Mostra, Cantet sentou com o B9 para falar um pouco sobre algumas das questões levantadas por seu novo filme, bem como para discutir essa sua relação de interesse de seu cinema com a juventude de hoje. Confira a transcrição da entrevista abaixo:
Eu vi “A Trama” na sessão para a imprensa e fiquei surpreso com o fato dos primeiros segundos do filme serem parte de um gameplay de “The Witcher”. Por que começar o filme daquela maneira?
Aconteceu por várias razões. Eu queria descrever o universo daqueles jovens e que a abertura fosse onírica. Ela mostra que os jovens de hoje não tem as mesmas referências que eu. Através desses jogos eu posso perceber que o videogame abre o imaginário desses jovens, e através dessa sequência eu já posso descrever o personagem do Antoine e a sua solidão. Há uma relação com a paisagem, porque ela é muito contemplativa e se conecta com a violência do menino, como as espadas… é uma violência que não tem um destinatário, mas é uma violência que está presente no jogo.
Mas por que “The Witcher”?
Primeiro porque nós tivemos autorização da produtora do jogo, mas também porque o Robin Campillo havia jogado recentemente “The Witcher” e achava que o game tinha alguns dos elementos que eu queria passar. Isso também vai contra a ideia pré-concebida de que pessoas mais velhas como eu pensam do videogame, de que a gente acha o game uma prática violenta. Eu conversei com algumas pessoas que jogam e elas me contaram que esses momentos em que se contempla a paisagem no game são muito fortes para eles, pois as imagens de jogos como “The Witcher” são muito realistas. Eu achei isso muito interessante.
Este é o terceiro filme de sua carreira em que você volta suas atenções para um grupo de jovens, sendo as anteriores o “Entre os Muros da Escola” e “Foxfire – Confissões de uma Gangue de Garotas”. Por que você continua voltando a esta premissa?
A ideia do grupo pra mim é muito importante, as pessoas são muito mais fortes juntas que sozinhas. Na vida real ou no cinema, a confrontação é algo que você faz em grupo e eu gosto da maneira como isso dá construção ao filme. No começo o grupo é quase um magma de tão homogêneo o seu pensamento, mas de repente começam a aparecer os personagens, eles se dividem frente a um tema e nas discussões surgem as especificidades de cada um. Eu gosto muito da energia e da dinâmica que saem desses grupos, porque na confrontação pode surgir tensão, e essa ideia se intensifica quando se tratando de um grupo de jovens porque este é o momento da vida onde tudo começa a se decidir de repente. A vontade no começo era fazer um retrato desse grupo de jovens e ver como eles se portariam nessa dinâmica de grupo, ver que lugar eles vão pegar nesse mundo onde é difícil se estabelecer. O grupo vira um microcosmo, e esse microcosmo me permite aprender e explicar um pouco mais o mundo. Há um pouco de transmissão em meio a tudo isso.
Então é algo muito mais próximo da análise que da alegoria social?
Sim, mas ao mesmo tempo eu não quero que esses elementos sociológicos não sejam postos muito na frente nos meus filmes, eu quero que este elemento social seja colocado de uma maneira mais romanesca, que não seja um tratado sociológico nesse sentido.
Falando do filme agora, faz quase dez anos que você fez “Entre os Muros da Escola” e há claramente em “A Trama” uma evolução nos temas sociais tratados em “Entre os Muros…”. Você chegou a pensar nisso enquanto escrevia e produzia o “A Trama”?
Eu não sei se há uma grande diferença, a única coisa é que no “A Trama” os personagens são um pouco mais velhos, jovens que estão à beira de ir para a idade adulta. O que eu vejo em comum entre os dois filmes é o olhar que os adultos tem sobre os jovens, que existe neles uma espécie de estigmatização, um olhar de cima para baixo, e uma dificuldade deles de ter em conta a maneira que os jovens olham o mundo. Hoje em dia os jovens têm outros instrumentos para ver o mundo, como a internet e essa coisa da reação imediata.
E isso se reflete no filme na multiplicidade de telas na história.
Sim. Como adultos nós facilmente julgamos demais os jovens porque eles possuem outras formas de análise. Os adultos rejeitam isso porque eles tem medo dessa outra maneira de ver o mundo. Por isso que me interessa tanto o olhar da Olivia no filme, porque ela quer conhecer o mundo dessas pessoas. Ela também representa a impotência que nós, os adultos, temos de ir em direção a esses jovens.
Sobre essa relação entre aluno e professor, eu não pude deixar de reparar que os diálogos entre Olivia e Antoine refletem um pouco das dinâmicas sociais que estamos vendo na França e em outros países hoje, e o filme no fim não permite uma reconciliação propriamente dita entre os dois. Por que essa decisão?
Sim, não há reconciliação real, mas todo mundo aprende com essa história e é este intercâmbio que me interessa na história. Graças a toda essa confrontação Olivia vai escrever melhor do que ela escrevia antes do workshop e Antoine poderá superar toda a violência e o desconforto interno que ele tinha antes. Na última vez que vemos Olivia no filme ela está totalmente abalada com tudo que ela escutou e eu acho que nesse momento ela entende Antoine.
“[Os jovens] são presas fáceis dos grupos extremistas porque os mecanismos destes grupos é dizer a eles ‘venha, você vai ser o protagonista de sua vida, você será a resposta para nós'”
Nesse sentido, as diferentes posições políticas que os dois possuem aqui – ela sendo de esquerda, ele flertando com os movimentos de extrema-direita – agem de alguma forma sobre a história?
O que me interessa é ver o que acontece quando pessoas que não tem perspectivas como os jovens, que não sabem pra onde vão na vida, e como eles podem ser presas fáceis aos extremismos, não importa qual seja. Eles são presas fáceis porque o mecanismos desses grupos é dizer a eles “venha, você vai ser o protagonista de sua vida, você será a resposta para nós”. No caso de Antoine, é uma questão de contexto, poderia ter sido qualquer outro movimento que poderia tê-lo fisgado. Eu não estou impressionado com o estado atual da França, mas é fato que no sul do país a extrema-direita está bastante implantada.
Você acha que se você tivesse feito este filme dez anos antes a relação entre os dois personagens teria sido muito diferente da que vemos no filme? Você acha que haveria alguma chance de reconciliação ou não, é impossível?
Eu acho que teria sido o mesmo, mas não tão otimista quanto é aqui. Eu acho que Antoine aprende muito do verão que ele passa no filme, não somente do trabalho textual mas também com sua convivência com Olivia. Sabe, enquanto escrevia o roteiro a situação política da França era muito triste; as pessoas tem medo do que pode acontecer, tem medo dos outros, medo dos muçulmanos… há tensões em nossa sociedade que são tão grandes que no momento que escrevi o filme foi impossível não ser um pouco otimista no fim. Talvez porque eu precisasse deste conforto ou precisasse talvez da possibilidade de mudança à medida que as coisas aconteciam. O que me interessa em Antoine é que, no momento em que ele põe no papel o problema e logo depois faz seu último movimento na história, aquela última ação no filme é a primeira decisão que ele efetivamente faz na trama. Ele toma a própria vida pelas mãos e isso é muito interessante.
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