Jornalismo de peito aberto
Esse programa foi transcrito pela Mamilândia, grupo de transcrição do Mamilos
Transcrição Programa 115
Episódio transcrito por Fernanda Cappellesso, com o apoio de: Alan Bastos, Samuel Freire, Márcio Vasquez e João Gentil. Revisado por: Carla Rossi de Vargas.
Início da transcrição:
(Bloco 1) 0’ – 4’59”
[Vinheta de abertura]
Este podcast é apresentado por b9.com.br.
[Trilha]
Ju: Mamileiros e mamiletes, depois de um longo e tenebroso inverno estamos juntos de novo para matar essa saudade enorme. Eu sou a Ju Wallauer.
Cris: Eu sou a Cris Bartis.
Ju: E voltamos com novidades. O que é que você manda, Cris Bartis? O que é que você aprontou nessas férias? [Risos da Cris] Gente, a Cris está cheia de idéias.
Cris: Pessoa das idéias. Então, pessoal, vocês vivem falando com a gente: “Ai, não sei como é que vocês conseguem conciliar trabalho, filho e esse podcast. Dá tanto trabalho!” [Ju: Dá mesmo!] Então: A gente não está dando conta mais não, essa é a verdade. A gente está chegando num ponto que para a gente continuar com o Mamilos, para fazer o que a gente quer, a gente vai precisar de um apoio forte de vocês.
Ju: Eu não aguento mais virar a noite não, gente. Por isso eu preciso roubar o tempo do trabalho pro Mamilos e parar de roubar tempo do meu lazer e do meu descanso porque está puxado.
Cris: Até porque mamileiras descansadas produzem melhor. Mas na verdade a gente pensou em uma proposta legal para vocês, a gente quer saber a opinião de vocês. A gente poderia simplesmente abrir ou pedir para vocês reforçarem as doações no PatreOn, abrir um Padrim, o brasileiro para facilitar, mas a gente quer fazer algo além disso.
Ju: A gente não acha que a gente dá o suficiente, a gente quer dar um pouquinho mais. [Risos da Cris]
Cris: Até porque eu acho que é uma boa troca. A gente acredita que expandir os canais de conteúdo também pode ser uma boa. Então, escuta com atenção a proposta e fala para a gente. A idéia, a gente vai abrir o Padrim, então vai ter um cadastro lá na ferramenta, vocês vão entrar… Vai ter um único valor de doação e uma única recompensa. Então, na verdade…
Ju: [interrompe] Que é ouvir nossa voz linda toda semana.
Cris: Não é! Vocês vão… A gente está criando um outro canal de conteúdo. Ao fazer a assinatura no Padrim você vai passar a receber uma newsletter semanal do Mamilos que sai junto com o programa nas sextas no final do dia. Então o Mamilos tem um tema, dois temas, no máximo três temas na semana; na newsletter vocês vão descobrir outras coisas que a gente leu e que não entrou no programa.
Ju: “Mas vocês não vão falar sobre isso?”, não, não dá para falar sobre tudo. Então, tudo o que a gente lê e que acaba não indo para o programa a gente vai selecionar para levar para vocês na newsletter.
Cris: Inclusive o Giro de Notícias foi para lá também. Então a idéia é que essa newsletter… Ela está ficando muito fofa! Sim, a gente está bem apaixonada. Feita com o mesmo carinho que vocês já estão acostumados que a gente dedica bastante para fazer um produto legal para vocês. Então a idéia é essa: vai entrar no Padrim, a assinatura é R$ 9,90 e vocês recebem toda sexta-feira uma newsletter. Então só para vocês terem uma idéia, vão ser quatro newsletter por mês, é menos de R$ 2,50 por newsletter. O que você faz com R$ 2,50, Juliana?
Ju: Come um salgadinho? [Risos]
Cris: Acho que nem isso dá, viu? Acho que come uma pipoca só. Então é isso, você vai pagar uma pipoca para a gente por semana.
Ju: Eu adoro pipoca, gente! Paga uma pipoca para mim.
Cris: Então, legal, gente. A gente quer saber a opinião de vocês. A partir da semana que vem a gente volta a falar sobre isso e a gente vai liberar o link no Padrim para que todo mundo entre lá e dê essa força para o Mamilos continuar. A Juliana sempre usa uma metáfora que eu acho muito legal que é: “O Mamilos é uma Ferrari, mas manter uma Ferrari é difícil, amigos”. [Risos da Ju] Então a gente vai precisar e a gente tem uma meta, a gente tem uma meta clara. A gente precisa chegar em R$ 35 mil de assinaturas aí e vocês fazem [façam] os cálculos aí, são mais ou menos 3 mil assinaturas. Isso quer dizer, menos de 6% dos ouvintes, então a gente acredita que vá conseguir chegar e batendo a meta, adivinha o que é que a gente vai fazer?
Ju: A gente dobra a meta!
Cris: A gente vai fazer um outro podcast [Risos da Ju], com outra temática e vocês vão amar, eu tenho certeza. Então, eu quero saber a força da comunidade. E aí, vai rolar?
Ju: E vamos para o Merchan? A gente sabe que tem ouvinte que quer mudar de carreira, tem quem sonha em abrir um negócio, ter um filho, viajar… para começar a realizar, tem que colocar meta e começar a investir. Dá para começar com R$ 30,00. O que não pode é continuar sonhando. É simples, é fácil, não precisa entender nada de investimento. A Easynvest explica e simplifica. Vai lá no canal do Youtube deles, tem várias dicas de investimento. No aplicativo a Easy também explica as opções sem aquele economês dos gerentes de banco. Tem seleção para quem está dando os primeiros passos com opções com os menores riscos e ótimas rentabilidades. Também tem uma lista com os investimentos mais escolhidos da semana. Tem uma seleção feita pra quem quer poder resgatar o dinheiro a qualquer momento, para não passar apuro em emergências. E tem dicas pra quem tá pensando na aposentadoria, focada num futuro tranquilo. Vai lá, baixa o aplicativo na Play Store e Apple Store, cadastra, transfere seu dinheiro e comece a investir com 100% de segurança.
(Bloco 2) 5’ – 9’59”
[Trilha]
Cris: Vamos então pra Teta?
Ju: Tudo o que acontece na Venezuela é cercado de desinformação e poluído pelas fake news espalhadas por apoiadores do Governo e da oposição. Na política venezuelana, tudo é espetáculo. Para além disso, qualquer informação que recebemos de lá é filtrada pelas lentes ultrapolarizadas do diálogo político do Brasil.
Nossa missão aqui é tentar entender, em meio a tanto ruído, o que está acontecendo, quais foram as decisões e acontecimentos que levaram nosso vizinho à beira de uma guerra civil e o que podemos aprender com essa experiência trágica. Três em cada quatro cidadãos venezuelanos relatam perda involuntária de peso de quase 10 quilos, em média, por ano, graças à fome. Quase 90% da população afirma não ter dinheiro para comprar alimentos. A desnutrição infantil atingiu quase 20% da população com menos de cinco anos. A crise de desabastecimento é atroz: a escassez chega a 80%, atingindo itens da cesta básica e remédios.
Pra piorar o cenário, o povo convive com apagões diários, que duram 4 horas.
A produção interna não tem capacidade de mitigar esse sofrimento: 60% das indústrias desapareceram e a produção agrícola, bem como o setor de serviços, caiu 40%.
O país também não tem moeda: uma inflação de 700% – segundo o FMI – destruiu o valor dos Bolívares.
O que acentua ainda mais a gravidade da situação é que a Venezuela está isolada, perdendo apoio internacional e credibilidade a cada dia, e sem crédito para reverter esse cenário.
Como o país com a maior reserva de petróleo do mundo, um forte candidato a ter um dos IDHs mais altos do planeta, se encontra nessa situação?
Nos últimos 18 anos, a Venezuela recebeu um trilhão e 900 bilhões de dólares via petróleo e impostos. Mais de cinco vezes a receita dos 40 anos de democracia. Foi um período de bonança. Como terminou nesse cenário de terra arrasada?
Vem com a gente tentar encontrar algum sentido nisso.
Vamo então pra Teta? Primeiro vamos começar apresentando quem tá na mesa pra conversar com a gente. Antes de apresentar eles, eu vou fazer um agradecimento à rede mamileira que se mobilizou e possibilitou esse programa. Especialmente à Ana Freitas, Heber Leandro Souza, Cláudia Bittencourt e aos nossos jornalistas mamileiros unidos: Alec, Cris de Luca e Guga Chacra que sempre nos socorrem. É graças a vocês que o programa de hoje está de pé. Então vamos lá: Temos conosco Carolina Pedroso, que é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, pesquisadora vinculada ao Instituto de Estudos Econômicos Internacionais e ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos e docente da Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação.
Boa noite, Carol.
Carol: Boa noite.
Ju: É um prazer ter você conosco, uma pessoa que gosta de explicar, porque a gente vai precisar muito de explicação.
Carol: O prazer é meu. [Ju ri] Espero corresponder a essa demanda aí, que é bem difícil. [Ambas riem]
Ju: E também pra nos ajudar a entender esse enrosco João Charleaux, que é jornalista, atualmente, repórter especial de Política, Economia e Internacional no Nexo Jornal. Antes, gerente de plataformas digitais da VICE no Brasil. Ele coordenou a comunicação da Conectas, organização internacional de direitos humanos. No Estado de S. Paulo, foi editor assistente de Internacional e nos últimos anos, o Charleaux colaborou com revistas brasileiras como Carta Capital e o Le Monde Diplomatique, além de váááários veículos estrangeiros. Boa noite, Charleaux.
Charleaux: Tudo bom?
Ju: Muito bom ter uma pessoa curiosa que gosta de fazer perguntas na mesa. É muito bom ter um jornalista pra explicar esse momento aí.
Charleaux: Cá estamos.
Ju: [Risos] Então vamos sem mais delongas.
Cris: Vamo então, pra entender a introdução desse emaranhado de informação, chamar o Filipe que é do Xadrez Verbal, e já colabora aqui com o Mamilos em alguns outros episódios. Ele vai contar pra gente o início de toda essa derrocada.
–//–
Filipe: Olá Ju, olá Cris, olá todos os ouvintes do Mamilos. Meu nome é Filipe Figueiredo, sou do podcast Xadrez Verbal, sobre política internacional. Agradeço aí o convite de vocês. Agradeço inclusive aos ouvintes que sugeriram. Infelizmente não pude participar do programa como um todo, mas envio aqui essa pequena contribuição sobre a história recente da Venezuela até a eleição de Nicolás Maduro.
A Venezuela, como parte da América Latina que – dependendo da conceituação – inclui o Brasil, os nossos ouvintes vão perceber que existem alguns paralelos com [entre] a história recente da Venezuela e a história recente brasileira.
(Bloco 3) 10’ – 14’59”
Filipe: A situação atual, o histórico recente da Venezuela, a gente pode colocar como um marco, né, a eleição em fevereiro de 1989 de Carlos Andrés Perez, que já havia sido presidente da Venezuela na década de 1970, e ele assume uma Venezuela com uma pesada dívida externa, um grande desequilíbrio fiscal e uma questão distributiva venezuelana muito complicada. [N]O fim da minha participação vou explicar melhor o que é isso. Ele então assume ali em 1989, passa a ter um governo com propostas de liberalização da economia, de consertar esse desequilíbrio fiscal, uma situação parecida com o Brasil; só que no caso venezuelano isso influencia o preço da gasolina, que é historicamente baixíssimo nos nossos vizinhos do norte. Isso leva [a] uma série de protestos, o mais famoso deles é o do Caracazo, né, que foi em 1989 e estamos falando de entre 300 e 3.000 pessoas mortas – não existem números precisos – ele também sofrerá duas tentativas de golpe: uma liderada em fevereiro de 92 pelo então tenente coronel, Hugo Chávez, que se torna então uma figura de relevância nacional; e outro em novembro de 92 que, embora Chávez estivesse preso, foi dirigido por um grupo de jovens oficiais militares, leais às ideias chavistas e ao movimento revolucionário bolivariano, à ideia de jovens militares serem a salvação do país, né, então vão reformar ou consertar o país, também é comum na história brasileira. Somando as duas tentativas de golpe, calcula-se cerca de 200 mortos no total. O Carlos Andrés Perez ele vai sofrer impeachment em 1993 por ter embolsado indevidamente parte do seu fundo partidário, ele é deposto pelo que seria a suprema corte venezuelana; é um processo de impeachment extremamente polêmico, porque todo o seu processo ali, envolveu questões secretas, enfim. E ele entrega o poder a Ramón Velásquez e aí em 1993 nós temos a eleição de Caldera, um veterano da política venezuelana que já havia sido presidente, final da década de 60 começo da década de 70, foi diversas vezes candidato e era senador vitalício – pela antiga legislação venezuelana, os ex-presidentes eram senadores vitalícios. Ele vence a eleição em 1993, porém o seu governo era marcado ali por ser uma espécie de centrão, unindo desde partidos de esquerda até partidos de centro-direita, uma questão bastante, né, do poder, pelo poder, ele é um veterano da política nacional. E então isso leva a uma queda da credibilidade da força política dos partidos tradicionais. E aí em 1998, nas eleições, por larga margem, vence Hugo Chávez que havia sido anistiado no governo Caldera. Hugo Chávez assume o governo com a proposta de uma quinta República Venezuelana, de refundar a Venezuela. Então logo depois ele propõe uma nova constituinte, essa assembleia constituinte de 99 submete um texto constitucional que é aprovado em um referendo. Em 2000 pelas novas regras eleitorais e legislativas da Venezuela, por exemplo, o parlamento passa a ser unicameral e sem senadores vitalícios, nós temos uma nova eleição em que Chávez, novamente, vence com grande margem. Em 2002 Chávez sofre uma tentativa de golpe, que brevemente tira ele do poder, nós estamos falando aí em cerca de 20 mortos. E nesse golpe dois jovens líderes da oposição então prefeitos, surgem no cenário político nacional: Henrique Capriles e Leopoldo López. Dois nomes envolvidos hoje no cenário político venezuelano. Capriles já veio ao Brasil, Leopoldo López recebeu mensagem de apoio de políticos brasileiros. Chávez também sofreu uma tentativa de impeachment por referendo, uma manobra política – uma manobra não, um mecanismo jurídico colocado na nova constituição de 99, porém ele não sofre o impeachment popular; ele é reeleito em 2006 e em 2007 ele tem a sua primeira grande derrota, quando uma nova proposta de emenda constitucional é derrotada só que Hugo Chávez, vítima de um câncer, será afastado para se tratar e ele vai morrer, Hugo Chávez falece antes de tomar posse, isso é um aspecto bastante importante. E aí nós temos uma nova eleição em que vão concorrer Nicolás Maduro, que era o vice-presidente de Hugo Chávez, mas não foi empossado porque o vencedor não foi empossado, e Henrique Capriles. O Capriles perdeu do Chávez em 2006 por onze pontos percentuais, porém em 2007 Capriles vai perder por apenas um ponto percentual e meio, praticamente.
(Bloco 4) 15’ – 19’59”
Filipe: E aí chegamos então na ascensão de Nicolás Maduro. Pra gente fechar aqui, então, agora a gente fez esse elencado político, ou seja, mostrando as rivalidades e as perspectivas políticas dentro da Venezuela: os antigos políticos, depois a ascensão de duas novas correntes, só terminar falar daquela questão distributiva porque, quando a gente fala disso, o nosso primeiro pensamento é pensar na questão da distribuição de renda, mas não é só isso: mais de 70% da população venezuelana mora na faixa litorânea do país – isso acontece também no Brasil, né? Se a gente traçar uma linha reta de Recife até Porto Alegre, nós temos a maior parte da população brasileira – e mesmo nessa faixa costeira da população, nós temos dois focos de concentração, que são: a oeste, a região do Golfo; e, ao norte da bacia do Orinoco, onde o petróleo é refinado e exportado. Embora metade do território da Venezuela seja ao sul, especialmente considerando ali a bacia do rio Orinoco, apenas 5% da população vive nessa região. Então a discussão na Venezuela sempre girou muito em torno de se o petróleo deveria ser comercializado de forma aberta ou se o petróleo deveria ser nacionalizado e usado para a modernização do país como um todo, pois alguns vão alegar que o modelo de uma exploração liberal, digamos assim, do petróleo concentra renda em basicamente duas regiões. Tanto que o petróleo venezuelano, inicialmente, era explorado por empresas estrangeiras, em 1973 houve um referendo para nacionalizar o petróleo, que foi efetivado em 1976 com a criação da Petróleos da Venezuela (a PdVSA); nos anos 1990 o governo fez algumas reformas de liberalizar a exploração do petróleo, permitindo capital estrangeiro e investimentos estrangeiros, coisa que foi limitada pelo Hugo Chávez em 2001. Então a questão do petróleo e qual o seu modelo de exploração, também é um dos grandes temas da política venezuelana.
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Cris: Agora, nós vamos ler aqui o depoimento do Gustavo Rojas, que é venezuelano, formado em História e mestre em Sociologia de Desenvolvimento para a América Latina. Ele foi professor universitário e trabalhou na Direção Geral da Participação Popular e Promoção da Saúde da Secretaria de Saúde do Estado de Carabobo. Atualmente, ele é membro da Comuna Popular ‘O Sul Existe’ de Valencia, Carabobo, que impulsiona o desenvolvimento produtivo através de relações sociais de produção com perspectiva ecológica e para superação do Estado capitalista. O Gustavo, a gente conseguiu conversar com ele, mas como o espanhol acabaria ficando muito complicado para todo mundo entender, ele mandou o depoimento dele por escrito e a gente vai ler aqui no ar para vocês:
Gustavo [lido por Cris]: “Olá, amigos brasileiros! Eu os saúdo com um fraterno abraço. O meu nome é Gustavo e estou, neste momento, falando com vocês de Valencia. O que a maioria de nós venezuelanos vivencia é, sobretudo, o colapso do poder aquisitivo da nossa moeda, o Bolívar, por um ataque sistemático que vem ocorrendo desde o início do governo do Comandante Chávez, que se intensificou de 2015 até hoje. No momento, assistimos à derrota da investida de terroristas mais recente, dos lacaios que representam os interesses imperialistas na Venezuela, a terceira e a que fez mais vítimas, expondo o rosto fascista da direita venezuelana, com mais de 100 mortos, milhares de pessoas feridas e a destruição de bens públicos e privados, inclusive chegando a tomar como objeto militar creches, maternidades e hospitais infantis, junto com escritórios de bancos do Estado, da principal empresa petrolífera nacional, a PdVSA, e outras instituições, saqueadas e incendiadas por jovens manipulados com seu ódio alimentado desde a infância pelos meios corporativos de comunicação de massa, alguns dos quais sendo pagos, e também se recorreu a mercenários profissionais. O mais doloroso dessa última tentativa terrorista de derrubar o governo bolivariano, iniciada no mês de abril – já são 4 meses de duração – são os crimes de ódio: 30 mortes constituem crimes de ódio, como o do jovem afrodescendente Orlando Figuera, perseguido, apunhalado e queimado vivo após se encontrar na circunstância fatal de estar preso no meio de uma turba assassina durante um protesto de opositores ao processo político e social bolivariano em Caracas. Eles supuseram, por seu aspecto físico, que era chavista, e gritaram “Ladrão!”. Outro exemplo de crime de ódio contra supostos chavistas que causou grande impacto emocional na população foi o caso do motociclista Daniel Camejo, pois os próprios assassinos, que se intitularam manifestantes, filmaram o cadáver e, claro, isso permitiu uma grande divulgação de sucesso pela web. O ato foi comentado no povoado de Lancherias na região de Anzoategui. Eu considero a convocação de uma Assembleia Constituinte como uma amostra da habilidade política do camarada presidente trabalhador Nicolás Maduro e de sua equipe, dado que contribui significativamente para enfraquecer, uma vez mais, o comando torpe da oposição partidária que, para participar em dezembro das eleições de governadores, viu-se obrigada a recorrer, na prática, à autoridade e legitimidade do Conselho Nacional Eleitoral, não sem antes ter produzido um desgaste dos seus próprios seguidores após quatro meses de tensão fomentada por esse mesmo comando.
(Bloco 5) 20’ – 24’59”
Gustavo [lido por Cris]: Agora o povo que apoiou a Constituinte com 8 milhões de votos está à espera de que se enfrente a impunidade e que sejam julgados os principais responsáveis pela onda de violência política que tem acontecido na Venezuela. Voltando à questão do poder aquisitivo venezuelano, vemos como, ao falhar, o que aqui popularmente se chama de guarimba, que é a ação desestabilizadora, callejera, no sentido de ato de rua, se ativa a guarimba econômica, de maior alcance inclusive que a anterior, pois é a que está erodindo a base popular de apoio ao processo revolucionário, não apenas ao governo bolivariano, pois foi graças à sabotagem econômica que a direita conseguiu tomar o controle da Assembleia Nacional – que é o Parlamento – depois das eleições de dezembro de 2015, não por mérito próprio, já que nem sequer expuseram claramente o programa que executariam caso se elegessem. Nós, do campo popular, não temos dúvidas de que o que fariam não seria outra coisa do que colocar em prática uma agenda neoliberal. Refiro-me ao problema da economia porque, precisamente, o grande clamor da população em relação à Constituinte, é que se acelere a aplicação de uma política efetiva para superar a situação econômica atual que efetivamente tem elementos associados ao esgotamento de um tipo de capitalismo de aluguel, dependente do comportamento da cotação do petróleo no mercado internacional. Há que se admitir que a grande fragilidade do processo da mudança política e social bolivariana, entre seus muitos sucessos, tem sido, precisamente, não ter superado até agora este modelo econômico, e essa fragilidade tem sido empregada pela pseudo burguesia antinacional monopolista, importadora e especuladora da Venezuela. Não é fácil explicar rapidamente a forma como se combinam múltiplos fatores na situação que nos afeta, enfocando especialmente o assunto de como a maioria da população tem experimentado a crítica situação econômica e política. O que posso assinalar é o seguinte: sobretudo a partir de 2014, e agravando-se a partir de 2015, com a queda abrupta de preços do petróleo, a maioria dos venezuelanos reduziu consideravelmente o consumo de calorias, e houve um retrocesso nos grandes êxitos da Revolução na década passada, como ter estado próxima a eliminar a pobreza extrema, porém o governo liderado por Nicolás Maduro tem amortecido o impacto de um dano devastador, contrário ao que se diz, em nível mundial, à imprensa e às grandes cadeias de rádio e televisão privadas, não é nas empresas, que principalmente por corresponderem a setores estratégicos para a Nação, que foram estatizadas, a situação está bem longe de chegar ao extremo da fome generalizada, como querem fazer acreditar irresponsáveis através dos meios de comunicação privados no exterior.”
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Ju: Vamos ouvir também o depoimento da venezuelana Victoria Giménez – ela morou no Rio de Janeiro por muitos anos, então ela fala bem o português – vocês vão ouvir o depoimento na voz dela, ela mora em Caracas.
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Victoria: Olá! Meu nome é Victoria Giménez. Sou venezuelana, moro em Caracas, morei 9 anos no Brasil e voltei à Venezuela há 7 anos. Pediram para eu falar um pouco de como é viver hoje na Venezuela. Eu só posso dizer que tem se tornado praticamente impossível. Para poder falar da vida aqui, eu tenho que começar dizendo que o salário mínimo, pra gente, ao câmbio negro – já que o outro praticamente nem existe – é de 6,25 dólares, e o vale refeição é de 14,72 dólares. Isso dá um total de 20,97 dólares por mês. O problema é que, para julho de 2017, a cesta básica alimentar foi calculada em 138,97 dólares. Isso equivale a aproximadamente 7 salários mínimos – salário mínimo mais vale refeição – isso só falando na comida, o que quer dizer que a gente está trabalhando praticamente só para comer, os nossos salários inteiros não alcançam para mais nada. Aí a gente entra na parte de achar os alimentos. A escassez na Venezuela é uma coisa inacreditável: a gente chega nos supermercados e acha muito poucos produtos, pelo menos o básico, como arroz, leite, pão, etc., é quase impossível de achar. E, quando você acha, é tudo importado e caríssimo. Um quilo de arroz está em 1,68 dólar, aproximadamente, o que, de repente, para quem mora fora, é um preço normal e chega até a ser barato, mas quando seu salário é de 20 dólares, é um absurdo. Se a gente falar em escassez, eu não posso deixar de falar dos medicamentos. A crise de saúde que estamos vivendo é uma das piores do mundo: as pessoas estão morrendo nos hospitais, nas clínicas particulares, por falta de medicamentos. A gente tem mortes até por coisas básicas, como os antibióticos. É praticamente impossível de achar os protetores gástricos, anti-hipertensivos, insulina, pílulas anticoncepcionais, etc.
(Bloco 6) 25’ – 29’59”
Victoria: E quando você acha, ou é no mercado que são os famosos bachaqueros, como a gente chama, ou de vez em quando, muito de vez em quando, chegam nas farmácias e os preços são absurdos. Por exemplo, uma caixinha de anticoncepcionais chega a custar 15 dólares. Pra quem ganha um salário de 20 dólares é impossível de pagar. Uma das coisas que mais nos afeta há muitos anos já é a insegurança. Cada vez temos menos policiais, os vigilantes eles não podem estar armados por lei, e os bandidos fazem o que querem já que são eles que estão realmente armados até os dentes. Aqui já não temos mais nem bairros seguros e inseguros. Tudo agora aqui é inseguro. Aqui as pessoas deixaram de sair à noite por medo. Todos os locais, inclusive as lojas do shopping, estão fechando muito mais cedo. É quase um suicídio a gente andar com o telefone na rua porque o problema é que, não é só o roubo, é que aqui te matam pra te roubar o telefone, a sua bolsa, o seu carro, qualquer coisa. Possivelmente quem vem de visita, quem mora fora, não faz ideia de que aqui está acontecendo tudo isso, já que aqui a censura que a gente tá tendo nos canais de TV e de rádio é cada vez pior. Não se pode falar mal do governo, nem transmitir eventos da oposição porque o meio, ele corre o risco de ser fechado. Por exemplo, com as manifestações nesses últimos cento e trinta e poucos dias, você não consegue ver nada pela televisão. Eles não falam das mortes, nem nada. A gente está mais informado pelos canais de fora do que pelos nossos. O nosso meio de informação hoje são as redes sociais. Há evidências claras de que as mortes que ocorreram foram causadas pela bruta repressão das forças de segurança do Estado que também, ele vem eles realizando detenções arbitrárias a cidadãos que sofreram e alguns continuam sofrendo torturas e ajuizamento e tribunais militares. Essas são apenas algumas das coisas que eu posso falar da atuação daqueles que, em teoria, eles deveriam trabalhar em função e para o povo. Essa ditadura… porque isso aqui não tem outro nome, ela faz o que quer. Os prefeitos de oposição, que foram eleitos pelo povo, estão sendo presos. Dizem eles que por permitirem os protestos nos seus municípios. Só que os protestos que estão acontecendo em todos os municípios – sejam de oposição, sejam de governo. Outro exemplo, é o que tá acontecendo com a Assembleia Nacional que foi eleita pelo povo e que tá sendo pisoteada desde o começo e agora com Assembleia Nacional Constituinte definitivamente parece que não existe. Na consulta popular do dia 16 de julho ficou claro que a grande maioria dos venezuelanos queremos uma mudança de governo, queremos uma qualidade de vida, mas definitivamente o governo não quer sair. Eu particularmente acho que é por todos os problemas que teriam com a justiça internacional por causa do narcotráfico – coisa que também está comprovada se saíssem do governo. Todo mundo sabe que a Venezuela se transformou em um Narco-estado.
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Ju: Carol, explica pra gente. Ela falou de eleição, de Assembleia, de que o povo votou, de que o povo quer uma mudança. O que que aconteceu, o quê que é essa Assembleia? Qual foi a votação? Qual foi o resultado? E… e por que que ela tá dizendo que a voz do povo, a vontade do povo não foi respeitada.
Carol: Bom a gente tem em 2015 as eleições legislativas. É a primeira eleição legislativa que o [Nicolás] Maduro assiste como presidente e tem uma vitória esmagadora da oposição. É a primeira vez que o gap entre oposição e governo fica tão grande. Então assim, é evidente que a população está muito descontente com o rumo do país. A oposição conseguiu a grande maioria das cadeiras no Parlamento, que é a Assembleia Nacional, mas houve uma… uma denúncia de compra de votos de 3 deputados do Estado do Amazonas que seriam, na verdade, representantes indígenas que, inclusive, tem áudios, né, do governador do Amazonas – que é um governador da oposição – negociando a compra de votos. Então, embora muitas vezes tenha sido apontado como um tipo de perseguição do governo pra diminuir a maioria na Assembleia Nacional, existem indícios de que realmente houve compra de votos. O fato é que a justiça, então, determinou que esses três deputados não deveriam ser nomeados na Assembleia Nacional e, de qualquer forma, mesmo sem essas três cadeiras, a Oposição manteria uma maioria muito importante para conseguir votar projetos, para conseguir mudar várias coisas tendo esse poder legislativo nas mãos. O problema foi que a Assembleia Nacional decidiu colocar esses deputados no seus cargos à revelia da Justiça. Então, desde então, a gente tem essa luta entre o Poder Judiciário que desde muito tempo favorece o Governo Chavista, né, o Executivo, e o Parlamento que passou a ser tomado pela oposição. Na transição entre a Assembleia Nacional antiga – que era composta por maioria de Chavistas – pra oposição, eles fizeram, digamos assim, uma nomeação relâmpago de vários juízes para conseguir concretizar ainda mais esse domínio do Poder Judiciário pelo Chavismo. Ou seja, a gente tem dois movimentos aí que são interessantes da gente observar: o governo tenta estrangular a oposição de um lado, né? Tentando dominar ainda mais a Justiça; e por outro lado, a gente também tem uma oposição acusada fortemente de compra de votos.
(Bloco 7) 30’00” – 34’59”
Ju: Não, mas nesse caso específico que você tá falando, por exemplo, você tá comparando, desobedecer as regras e torturar as regras.[Carol: Exato.] Porque assim, o que o governo fez nesse caso de apressar a votação dos juízes, é uma coisa que a própria oposição fez com o Obama agora, ao contrário, né, mas de impedir que ele nomeasse o novo ministro da Suprema Corte, pra esperar a eleição que eles previam, como de fato aconteceu, que eles iam ganhar. Então esse jogo de apressar, atrasar, isso tá dentro do jogo político. [Carol: É, exato.] Não é quebrar a ordem. Comprar voto é quebrar ordem, e quando a justiça decreta que aquelas pessoas não podem ser empossadas e você vai desconsiderar o que a justiça falou, você também tá pisando na regra, certo?
Carol: Exato. O problema foi que a justiça também deveria ter chamado novas eleições no estado do Amazonas pra, portanto, eleger novos representantes, já que aqueles teriam comprado votos. Isso também não aconteceu. Então ficou num limbo jurídico esses deputados, a assembleia decidiu colocá-los ali dentro e aí ela ficou em desacato. Eaí a gente teve aquele grande momento, né, que a justiça decidiu tomar pra si o poder do parlamento que foi agora no começo do ano, né. E que isso causou uma comoção muito grande na Venezuela, inclusive dentro do chavismo. Porque muitos chavistas, assim ferrenhos defensores do regime, se viram numa situação de grande incoerência, porque digamos que até aquele momento o governo, mesmo tendo algumas ações que poderiam ser questionadas, ele conseguia fazer tudo dentro, mais ou menos, da lei, né, poderia ser questionado, mas ele tinha uma justificativa legal. Então essa ação mais direta da justiça contra o parlamento, de tomar o poder pra si efetivamente, fez com que muitos chavistas reclamassem e isso também…
Ju: [interrompe] Não, isso é a base do nosso sistema de pesos e contrapesos, não existe isso de um poder tomar a totalidade do outro. [Carol: É, é, tomar o outro.] A gente sabe que no Brasil, por exemplo, o judiciário legisla, o executivo legisla, a gente sabe que isso acontece, a gente vive falando nos programas aqui, de: “Olha, isso aí é ruim hein, você tá desequilibrando o jogo dos poderes.” Mas uma coisa é: estamos brincando em território não permitido; outra coisa é você efetivamente falar assim: “ Não, então escuta, o Ministério Público”, por exemplo, “não vai aceitar o referendo que a constituinte, que o Maduro acabou de fazer a votação. Ah então a gente troca, então troca então o promotor e coloca outra pessoa.” É, isso é um passo além, né.
Carol: É, exatamente. Então a gente tem essa luta, né, entre os dois poderes. Entre a justiça e o parlamento, na verdade a justiça sempre favorecendo o executivo, né. E aí que que aconteceu? Parte desses chavistas, que estão se tornando cada vez mais críticos ao governo do Maduro – por isso que a gente pode falar em chavistas e maduristas. Ou seja, tem pessoas que não veem mais o Maduro como uma liderança fiel ao legado do Chávez. Eles começaram, portanto, a reivindicar que o governo voltasse atrás e isso, de certa forma também, explica também que a justiça voltou atrás naquela decisão. Fora a pressão internacional, mas principalmente a pressão interna, né, que aconteceu. Então, é importante notar também que essa crise ela também marca uma fragmentação dentro do chavismo. Então assim como a oposição por muito tempo esteve fragmentada, que depois se uniu na M.U.D. que é a Mesa de Unidade Democrática, hoje o chavismo também tá fragmentado. Então, a gente tem, digamos, uma ala que tá, digamos assim, tendo uma maior preponderância nas decisões do que as outras. Então essas dissidências do chavismo podem vir a ser, e aí já pensando mais pra frente numa solução pacífica aí pra Venezuela, uma ponte entre os chavistas mais tradicionais e a oposição.
Ju: Então, Charleaux, qual foi a saída que o Maduro propôs quando você tem uma assembleia em desacato: “Então essa assembleia não pode legislar, eu vou jogar ela fora e vou pedir uma nova.” Como é que ele fez… Que saída legal, jurídica, política, ele fez pra conseguir uma assembleia que fosse, vamos dizer assim, mais amigável?
Charleaux: É, ele convocou essa experiência que teve início dia 30, né, de julho, que foi a assembléia constituinte. Então ele sacou essa ideia de construir um parlamento paralelo que teria super poderes pra legislar sobre uma série de questões, né. A oposição se opôs à ideia por princípio, como uma ideia absurda, e também levantou questionamentos sobre a forma como essa eleição se deu, né. Como vem acontecendo há muitos meses na Venezuela, todo esse processo foi acompanhado de inúmeros protestos e repressão, prisões, morte… mas a eleição acabou acontecendo no dia 30 de uma forma ou de outra. E como tudo na Venezuela, como dizia a professora, mais uma guerra de versões veio à tona. E a guerra do dia era então: Qual a representatividade dessa eleição? E, portanto, qual a representatividade dessa assembleia constituinte? Então o governo falou numa coisa parecida com 40% dos eleitores da Venezuela e celebrou o número dizendo: “Puxa, aí você vê como a adesão ainda é grande. São 40% ainda num contexto em que as pessoas tinham dificuldades física, logística de votar, porque às vezes tinham barricadas e ameaças e violência nas ruas e tal.”
(Bloco 8) 35’00” – 39’59”
Charleaux: A oposição disse que era uma mentira; que na verdade 12% dos eleitores tinham votado e que isso era um percentual muito baixo. E teve um fato também curioso que um dos donos da empresa que forneceu as urnas eletrônicas, etc e tal, fez uma entrevista coletiva em Londres e disse que pelo menos um milhão de votos tinham sido fraudados, computados de maneira fraudulenta, que reduziria não a 12% da oposição, não manteria 40% do governo, mas deixaria em alguma coisa, não sei bem, como 32% ou 36% no mínimo, não me recordo, de participação. Qualquer coisa na verdade Venezuela desperta esse tipo de disputa de versões de fatos e tal. A questão é que a assembleia foi eleita, ela tem uma composição esquisita pro nosso padrão porque ela não é só uma… Bom, dizer que o Brasil hoje tá discutindo o distritão, né. Vê a confusão que dá. Bom, lá é uma coisa parecida, quer dizer, como é que nós vamos eleger as pessoas? E a fórmula que o governo propôs foi que tivesse representações setoriais e tal. Então representação dos portadores de deficiência física, representação dos sindicatos, representação dos estudantes, de maneira a chamar a participação direta popular de setores que o governo considera que sejam menos protagonistas, ou até por condição econômica ou sei lá o quê. O que provoca uma distorção sem um juízo de valor da minha parte, se é uma distorção boa ou ruim, mas é uma distorção, né? Às vezes você distorce pra enxergar melhor, você põe o óculos, às vezes você distorce pra turvar a vista, né? Mas de fato é uma distorção. Uma distorção que, no contexto Venezuelano, despertou imediatamente novas acusações de que na verdade se tratava de uma tramoia do Maduro pra construir uma assembleia paralela. Agora, ontem…
Ju: [ interrompe ] É difícil mudar a regra quando você tá num clima de tanta desconfiança, né?
Charleaux: Uma das características é que não sabem mais onde tão as regras dessa história, né? [Ju: Exato.] Tanto que mudam. Mas ontem eu conversei com uma pessoa que foi eleita pra essa assembleia constituinte, chamada Taís Dias, e ela me mostrou na Constituição três dispositivos, artigo trezentos e pouco, trezentos e setenta e tal, 378, que prevê a realização da assembleia constituinte, que fala da assembleia constituinte.
Ju: Mas tem que ser por pedido popular, pelo que eu vi.
Charleaux: Não, ela pode ser convocada. Aí que tá, ela pode ser convocada pelo presidente da República e pelos ministros; ela pode ser convocada pela assembleia nacional; ela pode ser convocada por referendo popular, por votação popular. Tem várias formas de chamar, inclusive a mais despótica teria sido a do presidente chamar e ele teria poderes pra isso, de acordo com a constituição. E foi feito via eleitoral, né. Isto tá previsto na constituição, e a constituição que o colega do Xadrez Verbal mencionou de 99, que não só foi feita por juristas e etc e tal, mas também foi levada a sufrágio popular, as pessoas foram lá e disseram que era isso que elas queriam. Então no ponto de vista dela, que é governista e madurista, a posição do governo na constituição dessa assembleia, é totalmente constitucional, né, e a oposição é que estaria desestabilizando, que estaria indo contra a letra de uma carta que não só foi aprovada legalmente, como tem apoio popular. Então cada passo que eu dou na apuração sobre Venezuela, e basicamente é isso que eu faço todo dia, em relação a vários assuntos, eu me surpreendo. Eu brincava com colegas na redação, talvez seja interessante contar isso pra algumas pessoas que ouvem o programa, eu brincava ontem dizendo assim: “Puxa, eu acabei de falar com um cara que é da oposição e eu saio completamente convencido de que ele tem razão.”
[Risos]
Charleaux: Em seguida eu falei com uma senhora do governo e falei que ela também tem razão. Eu não quero com isso ficar em cima do muro, mas meu trabalho basicamente é perguntar e entender. E eu acho fascinante o contexto, porque realmente, não só tem fake news pra todo lado, [Ju: Sim.] como você mencionou, como também tem fatos verdadeiros pra todos os lados e que você pode interpretar de diversas formas.
Cris: E aí eu acho muito interessante porque essa interpretação basicamente passa pela carga cultural que você carrega. [Charleaux: Como tudo, né?] Porque, se você está na Venezuela e pede um depoimento de um brasileiro de direita e um brasileiro de esquerda, vão chegar duas informações completamentes diferentes pra você, e você vai falar: “Peraí, não tô entendendo.” Né? Então eu acho que isso vem muito do que a gente tem lido num total, as informações que chegam na maioria da mídia elas tão vindo de onde, né? Eu acho que é esse questionamento que a gente precisa ter, porque eu acho que hoje mesmo só, mesmo vivendo na Venezuela, deve ser difícil separar o fato da percepção e da realidade. O que definitivamente é um fato e foi citado pelos dois depoimentos dados, é a escassez de alimentos. E eu acho que inclusive sem comida, ninguém pensa direito. Então eu acho que ainda contribui pra essa confusão toda um povo desnutrido mais desnorteado ainda.
(Bloco 9) 40’00” – 44’59”
Ju: Então, mas uma coisa que comecei a receber um monte de link quando comecei a falar que ia falar da Venezuela, e as pessoas já têm uma opinião muito formada sobre isso; e me cobrando assim: “Não, como é que você pode não ter uma opinião formada? Porque tem isso e tem aquilo e tem aquilo outro e tal.” Eu falei: “Calma, estou aqui puxando fios pra tentar formar a minha opinião.” Uma das coisas que começa a me tocar e começa a me deixar desconfortável, é quando, por exemplo, você chega em realidades objetivas e você tem explicações muito elaboradas e muito redundantes e muito circulares que você espreme, espreme, espreme aquelas palavras e não sai nada. Então assim, objetivamente, a população tá passando fome, aí você pergunta, pra uma pessoa que é a favor do regime: “O que que tá acontecendo?” Ela fala: “Estamos passando fome, por causa do capitalismo, por causa…” “Não, tá, olha só, vocês estão há 20 anos embaixo do mesmo governo e ele é um governo que tem considerável poder.” Ele arrebanhou pra si muitos dos poderes, e aí tem essa discussão que a gente tá falando: “Ah, é o jogo democrático, abuso daqui, abuso dali.” Mas assim, inequivocamente ele tem muito poder e com todo esse poder que ele tem, o resultado é esse. Então, existe uma crítica quanto a isso, tipo, existe uma autocrítica, então assim: “Olha, um governo que nos deixou nesse ponto, tem algum erro que a gente cometeu no meio do caminho. Então assim, olha, eu não quero jogar esse governo fora, porque eu acho que fez bem isso, fez bem aquilo, fez bem aquilo outro. Eu olho pro outro lado e eu não confio na pessoa que tá do outro lado, eu não acho que ela faria melhor, eu não acho que o caminho que ela propõe é um caminho que vai trazer o bem estar pra maior parte da população, então eu não quero o outro lado, mas eu quero que esse lado aqui faça escolhas diferentes.” Né? É isso que eu não escuto, por exemplo quando a gente escutou esse primeiro depoimento, ele fala: “Olha, a gente tá passando fome, a situação nunca teve tão grave assim na Venezuela, mas nenhum problema aqui. Não tá acontecendo nada. Olho pra cima e não tá acontecendo nada. O problema tá do outro lado.” E assim, também não tem do lado de quem é contrário ao regime, então é terrível, é narcotraficante, é ditador; então muitas palavras de ordem. [Cris: Uhum.] E também não tem uma autocrítica de assim: “Bom, o que que a gente teria que fazer de diferente?” Que é o que o menino falou assim: “Cadê as propostas?” Então assim: “Ah, o que a gente propõe é: bom, quando o Chávez assumiu, já tínhamos esse problema de inflação, já tínhamos o problema de dependência extrema do petróleo, já tínhamos um problema de desnutrição e de analfabetismo e tal.” Então o modelo que se tinha antes dele, não funcionou. “A gente não quer voltar pra isso.” O que que a gente propõe, então assim: “Ah, a gente objetivamente acha que a gente chegou nessa questão financeira tão absurda e extrema em função desses erros, dessas escolhas erradas do Chávez e do Maduro. A gente gostaria de mudar isso, isso e isso.” Não, não é isso que você vê, porque o debate é muito pessoal e muito binário, né? O outro lado é o horror e a gente só tá nessa situação ruim, por causa do outro lado.
Carol: Olha, eu vou te contar uma experiência recente minha, eu passei dois meses nos Estados Unidos fazendo trabalho de campo com os venezuelanos que moram lá, que se organizam politicamente contra o governo. E eu fiz uma série de entrevistas com lideranças de várias organizações, que eram organizações desde humanitárias que enviam medicamentos, comida pra Venezuela, até organizações políticas que dizem que são venezuelanos perseguidos políticos no exterior. E uma das primeiras perguntas que eu fazia pra eles era a seguinte: “Como era a Venezuela antes do Chávez?” E a resposta era sempre muito parecida: “Era um país maravilhoso, a gente não tinha pobreza, não tinha desigualdade social e ele destruiu o país. O Chávez destruiu o país porque ele criou uma divisão que não existia entre os venezuelanos, entre nós e eles, ele destruiu o tecido social.” Então esse discurso de que a Venezuela antes do Chávez era o paraíso é muito recorrente, é muito preocupante, porque demonstra que essas pessoas também não consegue ter uma visão crítica do que era o processo antes, né. Então eu acho que quando você menciona a palavra autocrítica, eu acho que é exatamente isso que tá faltando na Venezuela dos dois lados, ou de todos os lados possíveis que possam existir. Exatamente essa radicalização acaba tornando esse ambiente pra autocrítica, mais difícil ainda, né, dela prosperar; porque as pessoas querem defender seu ponto de vista com tanta paixão, que elas justamente não consegue ver a realidade objetiva, como você mencionou.
Ju: É, uma coisa que a gente fala em relação a casamento é que quando o dinheiro sai por uma porta, o amor sai pela janela, alguma coisa assim… Então assim, é difícil falar de política sem colocar a economia no meio. Por quê? Se a gente tiver, eu tenho uma série de críticas à condução do Maduro e mesmo do Chávez, eu acho bem pouco democrático várias questões ali, mas inegavelmente, inequivocamente, se o dinheiro continuasse fluindo, a gente se furtaria muito mais de fazer crítica e o debate acho que ficaria muito mais acalorado, daria muito mais espaço pra opinião e ponto de vista enquanto tá todo mundo alimentado, enquanto os índices de analfabetismo caem, enquanto você tem um país onde as pessoas têm mais oportunidades; é muito mais difícil você discutir o ‘como’, os ‘meios’, se os objetivos conseguem mostrar alguns indicadores sociais bons. Então eu queria que você falasse um pouco, Charleaux, do modelo econômico chavista e justamente traçar, porque eu acho que não tem tanta diferença assim. Existem algumas diferenças, mas no que é essencial ele manteve um modelo que já vinha antes dele, né?
(Bloco 10) 45’00” – 49’59”
Charleaux: O petróleo é central, né? A gente ouviu na fala do colega ali e é uma situação que não é exclusiva da Venezuela, quer dizer, o petróleo é uma benção e uma maldição ao mesmo tempo. Se você tem um país que funciona bem economicamente com o petróleo, porque você vai arrumar problema, né?
Ju: Dá trabalho produzir, né? Imagina plantar e tudo, é complexo.
Charleaux: É complexo. Então funcionava, quer dizer, e também num período, se você pensar, em que houve por aí o que se chama de boom de commodities né, quer dizer produtos que são de uma fase primária da economia estavam num momento muito bom e produziu efeitos muito positivos, se você pegar a taxa de crescimento nesse período no Peru era incrível, né, e o Brasil coincidiu com esses anos Lula e coincidiu com uma série de governos mais ou menos parecidos ideologicamente – cheio de nuances entre si, mas mais ou menos do mesmo bloco – que estavam concomitantemente aqui na região. Alguns países fizeram melhor, outros fizeram pior, maior distribuição de renda, mas o fato é que esse ciclo terminou e pra Venezuela a consequência foi um pouco mais grave por duas razões: primeiro porque dependia mais do petróleo e segundo porque fez uma coisa que é muito provocativa, né, que é o que realmente divide a sociedade, que é controle dos meios de produção. Esse é o problema, né? Que enquanto você tá lidando com esmalte da unha, tudo bem, as coisas funcionam mais ou menos dentro disso que você descrevia. Bom, não é exatamente como diz a lei, mas também não é fora da lei, tudo funciona um pouco pra lá e pra cá. Agora quando o Estado se mete em controlar os meios de produção, aí a gente vê que avançou muito pouco desde o fim da 2ª Guerra, porque aí realmente fica os azuis e os vermelhos e não se entendem, né? O governo começou a estatizar empresas inclusive do setor alimentício…
Ju: Inclusive do petroleiro, de onde eles dependiam, 95% da economia dependia disso, né?
Charleaux: Mas o Evo Morales fez a mesma coisa na Bolívia, né? E se recuar ainda mais no tempo, acho que é um exemplo que deve ser revisitado, foi um pouco a questão do Allende no Chile com o cobre, né? Que também passou por falta de produtos, escassez de alimentos, etc e tal. Então toda vez que esse assunto aparece, realmente aí você tem uma divisão muito pesada. E quando o Estado centraliza a economia, tenta fazer uma economia planificada, esse é o modelo socialista do Chávez que ele chamava de socialismo do século 21, o Estado fica como o grande distribuidor de benesses, mas também como o grande culpado quando tudo dá errado, né, esse Estado provedor, né? Foi um pouco essa mistura que aconteceu, acho que foi uma tentativa ousada de fazer um modelo socialista de economia planificada e centralizada, coincidindo com o momento terrível de queda no preço do principal produto do qual o país dependia; sem um grande desenvolvimento de agricultura, de indústria, importando, como a menina disse ali, importando contraceptivos, importando o diabo, quer dizer. [Ju: Tudo, né.] É uma tempestade perfeita, né, por certo tem questões políticas, é evidente que a oposição vai dizer que teria feito completamente diferente, é evidente, e até aí eu acho que não é um fato desprezível, isso que a professora comentava de que os chavistas também vão discordar, porque acham que o Chávez teria feito diferente do Maduro. E também existe, eu acho, e eu ouvi isso, a autocrítica dentro do governo, no sentido de que: “Putz, perdemos uma chance”. Mas enfim, são opções muito difíceis de tomar num momento em que tudo tá funcionando, né?
Cris: Quando nada funciona e quando as atitudes, né, o que eles fizeram as escolhas que eles fizeram, levam a isso, como por exemplo o Chávez assumir, mandar embora, demitir funcionários da base técnica, pra colocar pessoas do governo que não tinham experiências técnicas; foram 18 mil funcionários mandados embora da principal – a Petrobras deles – na verdade, é o país inteiro, né. Eu acho que é legal a gente fazer esse paralelo pros brasileiros terem isso mais claro, mas a PDVSA ela representa 90% da economia, como se a Petrobras representasse 90% da economia brasileira e de repente o nosso produto é super desvalorizado, e de repente você tem trabalhando dentro dessa empresa centenas de funcionários que não sabem muito bem o que tão fazendo ali, porque o cargo deles é político, não é técnico, então é uma mistura muito explosiva.
Charleaux: Soa familiar essa história , não?
Cris: Não?
Ju: Muito!
Carol: É eu lembro, na época da demissão, ela acontece justamente num período bastante conturbado pro Chávez que foi o período entre o golpe e a chamada do recall, que é aquele mecanismo de referendo pra revogar o mandato dele; e naquele contexto entre 2002 e 2003 que é justamente o momento também que o Lula tá chegando ao poder no Brasil, ele acaba ajudando a negociar ali oposição e governo, é um momento em que há amparo petroleiro, né. Então, o setor petroleiro que justamente tava na mão da PDVSA, que é essa empresa, os funcionários, boa parte deles eram de oposição ao governo e eles simplesmente pararam de produzir petróleo. Então naquele momento a Venezuela tinha que comprar gasolina do Brasil.
Cris: Lembro disso.
(Bloco 11) 50’00” – 54’59”
Carol: Então assim, a resposta do governo… [Cris: É muito surreal.] Então, exatamente. A gente tem um movimento que é extremamente… é muito radical de um lado, que é assim, simplesmente parar de produzir petróleo pra levar um caos social e o governo de alguma forma sofreu, né, o revés desse movimento; e por outro lado a gente tem um governo que demite todos esses funcionários e não tem quem colocar no lugar.
Ju: Então, mas eu acho que esse é o centro de tudo que a gente vai falar aqui, que é a questão do diálogo, né, do autoritarismo de ambos os lados, né, porque quando você força a mão e eu falo assim: “Você acha que cê tem um poder, mas o poder está na minha mão porque a produção tá na minha mão, porque a grana tá na minha mão e agora vou te fazer sangrar, eu vou te tirar daí à força”, o outro fala assim: “Cê acha que é poder?” Aí vamos lembrar do House of Cards. “Você não sabe a diferença entre poder e dinheiro. Dinheiro não é poder e agora vou te mostrar poder puro.” Embora todo mundo… cinquenta por cento da mão de obra na rua. Aí que eu vejo disso, a minha leitura disso: assim, cara é o respeito que, assim, não existe relação que não é intermediada pelo respeito, né? Porque dos dois lados você vê assim, tudo bem que cê colocou 50% dos caras embora e aí a gente tem os dados aqui ó… em 99, a Venezuela produzir 2.6 milhões de barris de petróleo por dia enquanto isso o Brasil produzia 800 mil, que é o que você falou, que chegou ao absurdo da gente exportar para eles. Em 2017, a produção da Venezuela caiu para 2.1 milhões enquanto a do Brasil aumentou para 2.6 milhões por dia. Então, a gente era um naniquinho e a gente virou enorme.
Carol: É um absurdo. Eles nunca recuperaram a produtividade daquela época.
Ju: Era para Venezuela hoje produzir em torno 4 milhões de barris por dia. Então, assim, esse é o preço que ele pagou pela bravata. E aí isso para mim é muito assim, durante todo o tempo que eu estudei, tudo o que eu li, isso para mim fica muito forte porque eu consigo me identificar com os objetivos, eu consigo me identificar inclusive com a narrativa de que “olha só, os mesmos de sempre controlam, os mesmos de sempre dão as cartas e se a gente quiser mudar o jogo, a gente vai precisar de algumas atitudes mais duras”. Então assim, o cara vai me dar o Zap, eu vou embaralhar o jogo todo, eu vou jogar o jogo fora, eu vou falar: “Não jogo mais esse jogo e o jogo agora é meu deu e as regras agora são minhas”. Eu consigo entender de onde vem a vontade, eu consigo… eu tenho empatia pelo desespero, mas assim, tem um preço. Quando você pega as pessoas que detém o conhecimento e fala: “Vão embora daqui porque vocês só tão atrapalhando”, isso é consistente com o que ele fez. Ele fez isso aqui, ele fez isso na agricultura, ele fez isso no geral. E não é só… Isso é interessante por ser no nível de trabalhador, mas isso tem a ver com o capital. A gente leu o livro do Sapiens e o cara explica de um jeito muito simples de entender e que eu pensei bastante na questão da Venezuela quando eu tava estudando para pauta que é assim: Como é que a Espanha, que tinha todo o ouro da América do Sul, perdeu poder e declinou perto de uma nação que não tinha nada, que era a Holanda? Como que a Holanda que não tinha recurso nenhum ascendeu a uma potência em tão pouco tempo? É simples, é só jogar o jogo do capital. O jogo do capital, jogo do futuro. “Olha, eu aqui não tenho condições de produzir nada, mas ver eu vou ter. Você me empresta dez aqui que eu vou organizar e aí, com esses dez eu produzo, te pago os dez direitinho, te pago os dois, sei lá, de juros direitinho, você volta me emprestar, eu volto a fazer e eu vou crescendo, você vai crescendo e é uma roda que funciona; quando você quebrou esse contrato, parou de pingar o dinheiro e se você perdeu a credibilidade – e a credibilidade pode ser as pessoas pararem de trabalhar para você, as pessoas pararem de querer começar um negócio no seu país, as pessoas quererem parar de te financiar – a roda não gira e suas intenções podem ser as melhores do mundo, mas, se você está disposto a parar a roda para alcançar os seus objetivos, aí para mim é onde é o limite. Um governo que se diz pelo povo e que coloca o povo na linha de frente para pagar os custos da sua decisão, para mim é muito claro depois de tudo que eu li, que uma série de escolhas – e que a gente vai falar um pouco mais sobre elas – que tanto o Chávez, quanto o Maduro fizeram, levaram a Venezuela a esse ponto e levaram à escassez que eles estão hoje e isso para mim é imperdoável! Não dá para você se dizer do povo e pelo povo se você toma suas decisões que levam o povo a sofrer desta maneira porque hoje quem tá sofrendo são os pobres, hoje quem tá sofrendo… quem tinha alguma condição saiu da Venezuela, a gente tem uma diáspora gigantesca e hoje o que é mais difícil é que quem tá saindo da Venezuela não são mais os brasileiros que tão descontentes com a eleição e vão para Miami fazer compras… Hoje quem tá saindo da Venezuela são as pessoas que estão pobres, que não têm condição nenhuma e que tão saindo da Venezuela por conta justamente de falta de futuro e de esperança.
(Bloco 12) 55’00” – 59’59”
Cris: É, a gente estava discutindo a produção, como está baixa produção de petróleo, mas ainda assim é uma produção bastante considerável. Tem volume ali que representa uma grana. E aí você fala: “Poxa, mas a Petrobras produz até mais”, mas ok, o Brasil é cinco vezes maior em população do que a Venezuela. Eu acho importante levar isso em consideração. A Venezuela tem hoje cerca de 32 milhões de população. É uma população, né… não é uma população pequena, mas ela é considerável. Esse dinheiro que entra é tão pouco assim? Tem pouco dinheiro? Não existe? Onde que tá o dinheiro da Venezuela?
Charleaux: É que se esse dinheiro entra via um produto que é de controle estatal, ele tá com o governo. O que eu acho que o problema é que esse ambiente de desconfiança fez com que o setor privado também deixasse de investir, produzir e quem gera emprego é o setor privado. As pessoas não se empregam no governo… Algumas sim, né? Mas o grosso, não.
Ju: Empregam porque tem muita coisa estatizada, mas assim, de maneira geral quem vai mais empregar é o [setor] privado.
Charleaux: Pois é… então, agora você vê…
Ju: [interrompe] E não é só isso. Ele tabelou os preços e não tabelou os insumos. Então pra muitas coisas ficou inviável produzir, porque o custo de produção já era maior do que o valor tabelado do produto. Tem produto tabelado de tudo que você pode imaginar; então isso você desincentiva a produção.
Charleaux: Sim. Agora, você descrevia muito bem um ciclo virtuoso onde a credibilidade leva ao crédito e tudo isso são mecanismos clássicos do capitalismo. É assim mesmo que funciona, então? Quando existe credibilidade existe o empréstimo, existe o crédito e com o crédito a pessoa consome e isso aquece o mercado e assim que funciona em qualquer lugar capitalista e tal. A questão, eu volto, é que a proposta que foi vencedora na Venezuela foi de não seguir esse caminho e é isso que nos deixa completamente perplexo[s]. A gente tem dificuldade de lidar com isso. Os caras decidiram que não queriam isso… quer dizer, a gente pode questionar: “As pessoas tinham clareza do que estavam decidindo? Elas sabiam o que tavam fazendo?” Tudo bem, podemos questionar tudo isso. Mas o fato é: Acabou que um cara foi eleito lá em 98, 99 com essa proposta. E ele foi eleito pra isso e daí ele fez uma aposta muito ousada que foi de mexer na economia venezuelana levando para uma outra direção de economia, onde o Estado exerce um papel centralizador de planificação da economia, de indutor do desenvolvimento, essa coisa toda que é coisa que a gente via lá na União Soviética, que a gente vê em Cuba e isso foi feito uma forma democrática. Um cara que era militar, né, e que tentou um golpe de Estado! Olha quanta coisa para confundir a gente. Aí ele venceu lá uma eleição. Em 17 anos fizeram 21 eleições e durante o período do Chávez essas eleições tinham todos os observadores internacionais e que agora não estavam lá.
Ju: Exato. Isso que é importante. Isso é bem importante dizer. Eu fiz essa pergunta porque todo mundo fala que… de um lado: “Sim, ele é democraticamente eleito” e de outro lado: “Não, não é democraticamente eleito”. Aí eu falo assim: “Não, pera. Ou bem nenhuma eleição vale – inclusive não vale essa da Assembleia que é da oposição – ou bem toda eleição vale. O que que está acontecendo?”
Charleaux: É que ele passa a controlar o conselho eleitoral, enfim é cheio de nuances [Ju: Exato. Isso que é importante] O que eu acho importante é voltar a uma coisa que a gente tem vergonha de falar, que é assim: Houve uma aposta socialista de estatização e centralização da planificação da economia na Venezuela. Assim como a Bolívia fez em menor grau, assim como o Correa [Rafael Correa, Presidente do Equador] tentou fazer no Equador; vários governos bolivarianos na região tentaram fazer… e toda vez que isso aconteceu na região foi traumático. Foi traumático. A nossa história é essa. Por que aconteceu o golpe de 64 no Brasil? Porque o Jango ia, né? [Carol: Formas de barrar…] Por que aconteceu um golpe no Chile em 11 de setembro de 73? Por que o Allende ia… [Salvador Allende, presidente do Chile de 1970 a 1973 deposto por um golpe militar] E a situação na Venezuela está totalmente ligada a essa divisão ideológica e tal… e todos os outros fatores que nós estamos falando – não é só isso – mas, eu acho assim, que a gênese do problema é esse. E foi desastroso o que ele fez, nem eles negam. Isso invalida qualquer experiência desse tipo? Não sei… tem que saber pra saber. Não pode achar.
Ju: O que eu achei interessante assim é essa discussão de que o mercado, ele não troca dinheiro, ele troca informação. E que se você descentralizar, você tem milhares de pessoas tentando trocar a informação, então tentando saber: “Ah, o que que é melhor eu produzir agora sapato ou plantar soja? O que é melhor agora? Investir no petróleo ou fazer um restaurante para aproveitar o fluxo de dinheiro das pessoas que estão vivendo do petróleo?” Então, são milhares de pessoas tomando essa decisão. [Charleaux: Não, mas são milhares de pessoas…] E essas milhares de pessoas podem quebrar, tipo: “Ah, eu fiz uma escolha errada, eu quebrei, mas a Cris fez uma escolha certa, então ela…” e que é muito mais arriscado quando é só uma pessoa [Charleaux: Claaaro. Os riscos são muito maiores] tomando essa decisão. Os riscos são muito maiores.
Charleaux: A diferença é que quando várias pessoas estão pensando isso que você descreve, o pensamento é: “Onde eu vou ter uma possibilidade de lucro maior?” [Ju: Exato] E não onde as pessoas estão precisando mais. E, teoricamente – a gente vê que na Venezuela na prática não tá acontecendo, foi um desastre – mas, teoricamente uma economia de planificação ou centralizada o que faz é dizer: “Onde as pessoas estão precisando mais?” e não “Onde eu vou lucrar mais?” e essa é a promessa que fazem quando propõem isso e não existe grande exemplo histórico de que isso tenha funcionado.
Ju: Exato.
(Bloco 13) 1:00’00” – 1:04’59”
Cris: Inclusive porque é muito difícil fazer uma escolha completamente diferente daquela que todos os parceiros comerciais e todo mundo que você vai lidar faz. É como se tivesse todo mundo de um lado e você sozinho do outro, você não tem apoio político, não tem apoio econômico, não tem experiência pra se balizar e nisso, eu particularmente falo numa puta boa, o Chávez era muito lunático. Ele tinha um sonho de poder muito louco, pessoa… Queria ter a metade da autoconfiança de Chávez, que fez coisas desde estatificar tantas empresas até: “Ah, vamo mudar a bandeira do país porque o cavalo tá olhando pra trás e a partir de agora… O cavalo que tem na bandeira do país está olhando pra trás e a partir de agora, da era Chávez, o cavalo só olha pra frente.” Então assim, tem uma sééérie de coisas que são propostas ali que são bem folclóricas mesmo, né, umas coisas bem América Latina…
Carol: Muito! E faz muito parte da cultura política venezuelana essa coisa do caudilho e da figura forte, que vem desde Juan Vicente Gómez, da década de 20, passa por outros caudilhos e o Chávez consegue, de uma maneira que eu acho muito habilidosa, reunir todas essas características do militar, do líder messiânico numa figura só.
Ju: Então, mas é o autoritário, né? Querer resolver as coisas na base… na marra, então por exemplo no auge da crise monetária, então falta dinheiro, o dinheiro não vale nada, as pessoas dependem pra grandes quantias de usar o cartão, aí o credicard não funcionou, teve falha… numa época [Cris: Só prendeu os diretores.] Ele prendeu os diretores, entendeu? Então, o que eu acho é isso, é a lógica, não tem como não fazer uma crítica a isso, sabe. Não tem como não fazer uma crítica assim: “Cara, assim não vai funcionar.” Se você resolver prender as pessoas que falharem, porque tudo é um ataque ao governo, tudo é um plano contra o meu governo, mania de pers… Assim, não vai funcionar assim, é impossível funcionar assim, entendeu?
Cris: É muito isolado, na real, né? A pessoa fica completamente isolada. Eu queria, Carol, que você falasse um pouquinho pra gente dessa relação de amor e ódio da Venezuela com os Estados Unidos. [Carol: Aham] Que é o imperialista, mas ao mesmo tempo compra bastante, né, do meu produto.
Carol: É. Sabe que esse é o tema da minha tese de doutorado inclusive, né?
Cris: Eita!
Ju: [ri] Ah, então é simples, em cinco minutos você consegue explicar!
[risos]
Carol: Bom, eu vou fazer um resuminho básico. Porque na verdade a gente tem, principalmente durante o período chavista, esse discurso muito anti-imperialista, de combate aos Estados Unidos, mas que mantém os Estados Unidos como principal parceiro comercial. Então o fluxo que segue, na verdade fica até mais intenso durante o período chavista.
Cris: [Interrompe] É muito passional essa relação, gente.
Carol: É bastante. E a gente percebe que esse discurso ele serve tanto pro lado chavista de dizer: “Olha, tudo o que acontece de ruim aqui é culpa dos Estados Unidos que querem nos boicotar…” Um discurso muito parecido com o que Cuba faz também, né? Todos os problemas de Cuba são causados pelo embargo e não porque o governo fez escolhas econômicas ruins. E por outro lado ele também serve pra oposição justificar algumas ações, né? Então assim, a gente tem um governo que é beligerante aos Estados Unidos, mas nós acreditamos nos mesmos ideais que os americanos, de liberdade, de democracia, de tentar se aproximar, então a gente tem por exemplo algumas, alguns partidos políticos da oposição que foram financiados por organizações americanas, como a USAID, por exemplo, que envia anualmente, para vários países, uma quantidade x de dólares para promover a democracia no mundo. E parte desses dólares vai para alguns partidos políticos venezuelanos justamente utilizando da retórica do governo: “Tá vendo, o governo é antiamericano então, portanto ele é autoritário, então faz sentido a gente receber essa verba de vocês também.” Então assim, é um jogo que no final essa retórica, por isso que digo que é retórica, porque na realidade a gente tem, né, outras coisas acontecendo, ela acaba funcionando pra todos os lados, né? Então todo mundo acaba ganhando de alguma forma com essa visão, né, de ser um contraponto aos Estados Unidos na região.
Ju: Toda vez que um governante tenta colocar um inimigo lá fora que é grande, que é feio e que ele atenta contra a nossa soberania e nós somos grandes e nãnãnã… Esse discurso pra mim é tão velho, é tão horrível – e é do Trump também, fiquem à vontade, tipo, nada contra a Venezuela – isso já de cara já me descredencia, sabe. Tipo, no meu checklist mental já nem escuto mais o que a pessoa tá falando, porque não é que tenha, ah tem crítica, e não é que os americanos interferem – pô, tavam escutando até a Dilma – sim, eles não interferem porque eles querem brincar de geopolítica, eles interferem porque eles têm interesse no petróleo, eles têm interesse numa série de coisas. Sim, eles interferem, mas é o jeito de falar que já quebra a comunicação, né. Quando você coloca ali, você pinta um diabo aí você tira, desvia toda a atenção pra aquilo, pra mim você já não é sério, né? O Arthur Scatolini que veio aqui e já falou em alguns programas sobre política, ele falou uma coisa que a gente sempre volta, que é assim: “Política, você não vê só o que as pessoas falam, você vê o gesto.” Então isso é um gesto político. Você colocar, introduzir como grande tema da discussão política nacional o “nós e eles”, “os Estados Unidos são um problema”, isso é um gesto político importante, pra mim.
(Bloco 14) 1:05’00” – 1:09’59”
Charleaux: Não, é… Concordo contigo e vou acrescentar uma coisa um pouco adversativa. Normalmente as pessoas não entendem isso, vão achar que eu estou me contrapondo. Eu concordo com o que você falou, mas tem um problema: a gente mora numa região onde efetivamente [Ju: De fato.] os Estados Unidos desempenharam um papel terrível.
Ju: Sim. Inegavelmente, inequivocamente.
Charleaux: Essas coisas deixam cicatrizes que custam muito a não infeccionar mais, volta e meia a gente é surpreendido por infecções ainda dessas chagas, né, e não porque seja só uma coisa no campo político discursivo, a gente tá falando de vida, de pessoas e tortura, de coisas que marcam, no Brasil até bem pouco, mas você vai em alguns países onde proporcionalmente o número de pessoas torturadas foi maior e a gente tá falando de cicatrizes muito reais. Eu tenho amigos que… [Cris: E recentes, né?] E muito recentes. Eu tenho amigos que têm a minha idade que tem problemas seríssimos, mas assim, é uma coisa que afeta a vida cotidiana da pessoa, né. Ou porque nasceu fora do país e até os 15 ou 18 anos não sabia falar o próprio idioma direito, vive um pouco… Essas coisas são complicadas e eu acho que tudo isso vem à tona também quando essas relações entre os países tão sendo discutidas. Agora, existe um uso político midiático, caudilhesco, etc e tal nesse negócio, é evidente. Os políticos vivem disso, de criar um inimigo externo que justifique a coesão nacional diante dessa suposta ameaça ou dessa ameaça até real, que seja. Ela é evidente, ou superestimada, amplificada como uma ferramenta pra tentar fazer a coisa, né.
Ju: É uma cortina de fumaça, eu acho, pra você não falar das decisões que você mesmo tomou que são decisões polêmicas, né. As coisas não são claras, né. O Rafa quando veio aqui falar, né, no programa de futuros possíveis, ele tá andando toda a América Latina pra ver inovação política, então novos jeitos de fazer, pessoas que estão fazendo diferente e ele falou de um prefeito que fez a difícil escolha entre pedagogia e demagogia. Ele escolheu a pedagogia. Então ele falava as coisas que as pessoas não queriam ouvir, porque o mandato dele era pra explicar pras pessoas como é que as coisas funcionavam. Eu acho que é isso que me causa tanto estranhamento, eu acho que a gente alguns pedágios que a gente tem que parar de pagar. Sabe? Então assim, como eu concordo com os seus objetivos eu vou fechar o olho pra isso, pra isso, eu acho que a gente tem que parar de pagar esses pedágios, entendeu? A gente tem que começar assim: “Óh, não dá. É imprescindível, pra conversa política, que as pessoas confiem; então você tem que começar a falar as coisas como elas são, entendeu? E você vai ter que ter pessoas que vão te apoiar, você falando as coisas como elas são. Que não dá mais pra ficar assim, entendeu?
Cris: Que são duas faces, né? Você fala, mas você precisa ter alguém pra ouvir. Então acho [Ju: Exatamente.] que todo mundo tem que ficar meio adulto, nesse jogo, né? Porque eu também só quero ouvir aquilo que eu gostaria que acontecesse e não a realidade. Queria, Charleaux, te perguntar um pouco sobre os meios de comunicação hoje na Venezuela; né, uma rede de televisão de 50 anos foi fechada, uma grande dificuldade dos jornalistas em trabalhar, deve ter colegas lá que tão trabalhando também, como que você vê isso?
Charleaux: Eu acho que é só mais uma área da política e da economia em que a dicotomia se instalou de forma insolúvel, né? Hoje o governo controle boa parte da informação que circula, por exemplo, nos canais abertos de TV e fechou um bocado de rádio; por outro lado, e olha que complexo, né, eu me informo pela internet por meios venezuelanos que tem ampla liberdade de informar, né? Então é um contexto complexo em que você tem pedaços de democracia e pedaços de ditadura convivendo num mesmo ambiente, a gente… É esquisito isso, né?
Cris: É bem louco, né? [Charleaux: Pois é…] Na internet a galera tá falando lá, você vê e lê…
Charleaux: Exato.
Ju: Mas isso que é complicado. Porque num pago esse preço. Pra mim não rola, entendeu? Se você pode me dizer, se o poder tá na sua mão, é você que define quem pode falar e quando pode falar; então assim, a internet eles tão falando porque ele tá deixando ainda. Porque na rua as pessoas, eles já tão indo atrás de telefone, porque você tem que mostrar o telefone celular, o policial te pede pra você apagar a conversa, pra você apagar vídeo, pra que não vaze os vídeos que tão mostrando as coisas que tão acontecendo. Então assim, quando o governo tem o poder de falar isso, pra mim já não dá mais pra chamar de democrático, quando o governo… Quando aah, então assim, fechou rádio, fechou TV, mas na internet ainda pode. Quando é o governo que define quem pode falar, e o que pode falar, já não é democrático pra mim.
(Bloco 15) 1:10’00” – 1:14’59”
Charleaux: É. Uma constelação de fatores fazem você tirar uma determinada conclusão. Os fatos isolados eu acho muito difícil, né? [Ju: Exato.] Porque a polícia de São Paulo também obrigou muita gente a apagar [Ju: Exato.] muito vídeo de protesto. Isso não faz de São Paulo uma ditadura no Brasil…
Ju: [Interrompe] Não, mas isso é um indicador muito preocupante e a gente denuncia isso aqui, sim.
Charleaux: Exato. Agora há uma constelação de comportamentos como esse, eu acho que vai indicando qual é a direção que um determinado governo tá tomando. E aí quem diz, né, quando virou ditadura, quando não virou; várias pessoas dizem, a Folha de São Paulo é uma, né, disse: “Bom, pra nós é uma ditadura, é uma ditadura.” O governo brasileiro, e os governos da região, pegar os que se reuniram agora em Lima e também a reunião do Mercosul, a palavra ditadura não aparece; aparecem termos como ruptura da ordem democrática, né. A ruptura pode ser de várias formas, você pode ter decapitação é uma ruptura, você pode ter um estiramento muscular é uma ruptura também. [risos] Então você percebe que embora também politicamente se faça muito agito, na hora do “vamo vê”, nos assuntos de Estado, a linguagem é um pouco diferente, percebe? Então essa questão das gradações ela tá existindo, né, mesmo na manifestação de governos que são antipáticos à Venezuela, como é o caso do Brasil. Isso é meio novo, né? Porque mesmo no caso do Brasil a gente tem essa situação de: “Foi golpe/Não foi golpe.” Essas coisas não existiam. Antigamente a gente costumava pensar que uma coisa era ou não era, hoje você tem sistemas em que o judiciário funciona, o legislativo funciona, mas não muito, porque “puxa, veja só como fazem as coisas”. E a gente fica em dúvida sobre se tá realmente num sistema vigoroso e saudável ou num teatro, né? [Ju: Sim.] Então não é só na Venezuela, né? A gente… isso é o que causa um tremendo desconforto em todos nós de que os limites entre as coisas ficaram bem mais tênues, né?
Ju: Então eu vou fazer a pergunta de um milhão de dólares, a penúltima pergunta, pra todo mundo da mesa responder com as informações que você tem, segundo o seu conhecimento: estamos diante de uma ditadura ou não?
Carol: Olha, é a pergunta de um milhão de dólares mesmo, viu. [risos] É, eu que venho de uma área da ciência política, a gente tem uma série de autores, uma série de critérios, que a gente pode utilizar pra determinar se é uma ditadura ou não. Eu tenho dificuldade de encaixar a Venezuela num modelo muito fechado, então pra mim é um modelo híbrido, que é uma possibilidade também que a gente tem na literatura pra descrever. Tem algumas características de democracia e algumas características de autoritarismo, e a gente tem um movimento que eu acho que é muito interessante, durante o chavismo, que é um movimento entre o autoritarismo competitivo, ou seja, aquele que permite competição que existam eleições, que a oposição tem chance real de ganhar, embora não consiga os votos; e o autoritarismo clássico que é o que digamos que o Maduro tem deixado mais claro. Então a gente vê a Venezuela transitando entre esses polos, né? De autoritarismo competitivo, autoritarismo clássico. Então eu não me arrisco a dizer que é uma ditadura fechada nos modelos como a gente tá acostumado a pensar, porque realmente a gente ainda tem alguns espaços de democracia, alguns espaços em que a oposição consegue fazer algum tipo de movimentação, que em uma ditadura clássica isso não aconteceria, né? Mas por um outro lado a democracia tá assim, é… duramente ferida na Venezuela, então… e eu não diria que a culpa é só do governo, a culpa é de vários, de vários elementos aí, inclusive da oposição que muitas vezes não soube jogar o jogo democrático também.
Ju: Charleaux?
Charleaux: Eu não respondo a esse tipo de pergunta… [Ju ri.] É. Não, e é importante explicar: eu sinto que eu cumpro um papel na sociedade que pra ele ser bem desempenhado eu preciso ter um leitor que não seja acautelado em relação ao que eu penso, porque o que eu penso não importa tanto quanto as pessoas que eu ouço. Então sempre que me perguntam se a Dilma saiu com um golpe ou não; se a Venezuela é golpe ou não e coisas do tipo, eu prefiro não responder, embora eu tenha as minhas opiniões, é evidente, senão eu não trabalharia com jornalismo e política. Mas assim, eu perco uma coisa muito importante que é o fato de eu ter um leitor acautelado em relação ao que eu produzo e não só a mim e aos lugares onde eu trabalho. Então eu acho que eu tenho mais serventia na sociedade, nessa profissão, continuando a circular entre leitores de visões opostas, que possam ler e tirar suas próprias conclusões. Porque no momento em que eu saio a dizer esse tipo de coisa, imediatamente eu paro de ser lido com informações que poderiam ser importantes prum lado e pro outro. Então não é uma questão de fugir do debate, mas uma questão de saber onde eu, e de forma talvez um pouco pretensiosa, a sociedade pode ganhar mais, entende?
Ju: E você, Cris?
Cris: Eu não tenho conhecimento suficiente pra saber. Eu acho que é necessário viver na Venezuela hoje, pra poder entender um pouco melhor sobre isso. Eu entendo que a democracia, menino, a democracia tá sofreeendo… [risos] Tá lá, acoadinho, tadinho, tá num cantinho lá em posição fetal. Acho que tá ruim pra todos os lados, mas eu também não conheço o suficiente de ditadura pra denominar o estado hoje, no país, dessa maneira. E me apoio muito nas falas da Carol porque eu consigo ver os dois lados acontecendo. Ao mesmo tempo que eu olho pra oposição e falo: “Nossa, os caras estão falando.” Eles tão sem receber, né, é importante falar isso que desde que a assembleia assumiu eles pararam, os deputados pararam de receber, o congresso parou de receber o salário, e eles estão lá empenhados e completamente crente na visão deles de mundo e de Venezuela e de construir um país melhor, da mesma maneira que a gente vê o governo defendendo essa mesma posição. Então eles tão ambos acoados, defendendo-se um do outro e usa-se qualquer método pra fazer isso. Inclusive é o que a gente vê bastante acontecendo aqui, nesse vizinho enorme que vos fala, que é essa dificuldade de realmente dialogar uma transferência de poder e uma democracia real praticada em acordos e em votações claras. Porque quem tá no poder hoje sempre acredita que tá fazendo o melhor que pode ser feito. E que quem vota nem vai saber escolher tão bem assim: “Deixa que eu faço.” Então eu acho que isso acontece dos dois lados lá na Venezuela. Pra você, Juliana?
(Bloco 16) 1:15’00” – 1:19’59”
Ju: Olha, eu não me aprofundava sobre nada e me repelia o assunto justamente pelo grau de polarização da discussão, entendeu? Então as pessoas tinham muitas certezas e as certezas dos dois lados, elas não tinham nenhum ponto de contato. E eu não tô falando nem dos venezuelanos, que eu só fui escutar eles agora, mas eu tava falando quando esse assunto chegava pra mim, no Brasil mesmo, a opinião das pessoas no Brasil, era muito assim, os relatos parece que você tá falando de dois planetas diferentes. Não tem justaposição das coisas, entendeu. E isso pra mim é muito estranho e muito ruim. Então eu fui ler pra pauta e li um monte de coisa e fui tentar entender e assim, o sentimento que eu fico, que é pessoal, mas acho que eu – o Mamilos é espaço pra isso mesmo – depois de fazer isso existe um ponto onde há o debate, então eu acho que no Brasil a gente tá num ponto em que há o debate, eu acho que é de um jeito e você acha que é de outro; eu acho que é golpe, você não acha que é golpe. Há espaço pra debate, e eu fiquei muito me perguntando, a coisa que eu mais me perguntei nos primeiros dias que eu comecei a ler sobre a Venezuela, é: se existe um ponto em que a gente ultrapassa a linha da opinião. Se existe um momento em que você fala assim: “Cara, não dá pra discutir; a partir disso é estudo de caso, isso aqui é uma bandeira do que não deve ser feito. Isso aqui é uma bandeira…” Tipo, tá. Eu acho que o mundo deveria ser mais pra direita, você acha que o mundo deveria ser mais à esquerda, mas assim não deveria ser, entendeu. Eu fiquei muito me perguntando sobre isso. Pra mim, Juliana, a Venezuela chegou nesse ponto. Por que eu falo isso? Porque várias vezes a gente fala do PSOL, que a gente concorda com vários posicionamentos do PSOL, e tal. E o PSOL soltou um manifesto de todo apoio e aí aquilo ali, eu fiquei assim, “tá, então… eu consigo engolir isso?” Pra mim, Juliana, não tem como. Então tem algumas coisas, lendo e estudando, que pra mim tão dentro do que irrita, mas que é parte do jogo sujo democrático. Então a corrupção, o fato de que toda essa economia centralizada, de que o… Tanto o Chávez quanto o Maduro terem centralizado tudo, gerou muito mais corrupção que era o problema que eles vinham combater, isso faz parte do jogo pra mim, é ruim, mas faz parte do jogo. O aparelhamento do Estado, então tudo aquilo que a gente conversou, de substituir tecnocratas por pessoas fiéis ao governo, isso é sórdido pra mim, mas ainda faz parte do jogo, dá pra discutir, como a gente discutiu aqui. “Tá, mas eles também estavam fazendo um jogo de força comigo, então eu fiz também”, dá pra gente discutir. O personalismo, a política transformada em culto, tudo o que eu lia dele e que falava… os programas de TV, quando eu lia o que os programas de TV falam, isso me arrepia, isso pra mim é insuportável, mas ainda é parte do jogo. A mídia parcial me irrita demais; isso pra mim assim, não existe democracia se não existe acesso à informação. Você não tem como escolher se você não sabe o que tá acontecendo; então isso pra mim é péssimo, mas também é parte do jogo. Estados Unidos tá sofrendo disso, o Brasil tá sofrendo disso, o mundo tá sofrendo disso, todas as coisas que eu tô falando são distorções, são ruins, mas são parte do jogo, é o crescimento, são as dores de participar do jogo. O que que pra mim não é parte do jogo, indica que a gente cruzou a linha: a violência. Então quando eu li que eles armaram 500 mil seguidores do governo com arma de uso exclusivo de força armada pra defender o regime, eu entendo da onde vem isso, mas pra mim ultrapassou, entendeu? Tu entrega o poder antes de fazer isso, tu não arma a população. Aí assim, pra mim isso ultrapassou demais. Tu não sabe mais o que tu tá defendendo quando faz isso. Relatório da OEA comprovando tortura sistemática de preso político, pra mim já deu. A gente tem dois programas do Mamilos sobre sistema carcerário no Brasil.
(Bloco 17) 1:20’00” – 1:24’59”
Ju: A gente faz tortura todos os dias no Brasil, é uma vergonha. Isso é a pior coisa que a gente já fez, o pior programa que a gente já fez disparado, é o nosso sistema prisional. Isso é uma vergonha. Mas o que ele tá fazendo é preso político, é tortura pelo que você pensa, isso pra mim é odioso, é cruzar a linha. Não dá pra defender uma coisa dessas. Falta de transparência, então a posição da Venezuela no ranking de transparência internacional é o 166 num ranking de 176 países. Pra mim isso também é o deal breaker, se eu não sei o que está acontecendo, se eu não tenho como auditar nada, você não tem informação, não tem escolha, não tem democracia. É pressuposto básico, entendeu. Pra mim cruzou a linha. Militarização da sociedade, então militar em tudo, desde a parte de alimentação, fronteira, tudo, tudo é militarizado, as empresas são conduzidas por militares, então pra mim isso também é um limite. Controle de imprensa também é um limite, não tem democracia se você tem um controle de imprensa. Aí você vai falar assim: “Poxa, mas no Brasil a imprensa tá na mão de poucos e tal…” Também acho que é um problema, mas é um conjunto de fatores. O fim do equilíbrio da separação dos três poderes que a gente falou muito bem. Então assim, é… Rompeu, sabe, passou o outro lado. Quando a gente chegou nesse ponto que o judiciário fala “Ah não, então deixa. Eu faço a parte do legislativo.” Quando o Ministério Público não reconhece uma eleição e aí você troca, não tem mais o que discutir, assim pra mim sabe, é… A gente já passou muito do limite. E quando você chega numa economia num colapso desse tanto, todos os números que a gente falou no início, tem mais números para citar, acho que nem precisa porque vocês viram pelos depoimentos das pessoas. Denúncia de fraude eleitoral: aí assim, todas as democracias têm denúncias de fraude eleitoral, todas. Mas quando você começa a ver que, bom, você junta os fatores: não tenho como auditar, tem denúncia de fraude eleitoral, quem faz a oposição tá preso. É um conjunto de fatores que é muito difícil você chamar isso de democracia, entendeu. E de jogo democrático, e de uma democracia fragilizada, não é mais democracia pra mim, entendeu. Enfim, é uma série de fatores que eu acho que colocam a Venezuela num espaço em que a gente precisa entender melhor pra, não, eu concordo com o Charleaux que assim, poxa, é… Rotular diminui a discussão, diminui o debate, mas eu acho que algumas coisas tem que ter nome e algumas coisas tem que ser… A gente tem que concordar sobre o mínimo, sabe. Tipo, tá, olha só, passou a linha, passou a linha, não dá, tem um limite a partir do qual a gente vai falar assim: “tá, eu concordo com muitas coisas disso, mas aqui passou o limite, não dá mais” e pra mim, a Venezuela passou o limite, mas é muito e tem muitos sinais de que passou o limite. Agora é importante falar, como que vocês acham que a gente poderia, que a Venezuela poderia melhorar disso? Como é que se resolve esse impasse? Então assim, a gente percebe que existe uma espiral descendente. É possível interromper o ciclo de descida e começar a subir, construir uma, aos poucos, uma volta ou eles vão precisar chegar até o fundo do poço pra pegar embalo pra subir?
Carol: Também outra pergunta de um milhão de dólares, né.
[risos]
Ju:Só pergunta fácil hoje.
Carol: Só! Sabe que há duas semanas eu tava no Panamá numa reunião de representantes de todos os países do hemisfério americano, e eu fui representando o Brasil pra gente justamente pensar em uma resposta regional pra crise venezuelana, ou seja, o que nós enquanto vizinhos, enquanto estudiosos e defensores dos direitos humanos que conhecemos a situação da Venezuela podemos aportar pra essa situação. E a discussão foi muito intensa, a gente ficou dois dias ali trazendo muitos dados, pensando em soluções, e a gente percebe que, no meu caso, como internacionalista, que é uma coisa que a gente já sabe, mas enfim, que o caso da Venezuela expõe isso de uma maneira muito clara: os limites do direito internacional, né. Até que ponto que a comunidade internacional pode efetivamente intervir ou não dentro de uma situação dessa. Então a gente tem por exemplo a impossibilidade da OEA conseguir efetivamente impedir que a Assembleia Nacional Constituinte seja levada a cabo, porque a OEA, parte dos países da OEA, não reconhece o próprio Mercosul também não reconheceu a eleição. Quais são os mecanismos, como é que a gente faz? Então uma das coisas que eu pensei, enquanto brasileira e pensando naquilo que a gente tá conseguindo fazer apesar de todas as dificuldades da crise, eu pensei em uma coisa que já vem sendo falada na Venezuela que é a Comissão da Verdade. Porque muitos desses crimes que foram ditos aí na perseguição aos opositores ou mesmo chavistas que vem sendo atacados nas ruas, né, eles têm sido utilizados pelos dois lados pra dizer: “tá vendo? Você que tá fazendo a violência e não eu”. [Ju: sim] Então fica esse jogo de empurra, né. Quem é que viola os direitos humanos? “Não, não sou eu, é a oposição”. “Não, não é a oposição, é o governo”. Então assim, vamos apurar o que realmente tá acontecendo? E o que a gente percebe é que, nesse instante, isso não tem como acontecer, né. Porque os lados tão muito envolvidos, talvez a gente precise de atores externos pra mediar, mas assim…
(Bloco 18) 1:25’00” – 1:29’59”
Ju: Então, mas tem que deixar entrar, né.
Carol: Tem que deixar entrar, claro. O problema é: os lado confiam? [Ju:Exato.] Por exemplo, no caso do Brasil, né, que foi a pauta que eu levei lá: o governo brasileiro não é reconhecido como legítimo pelo venezuelano, portanto o governo brasileiro não se credita como mediador da crise, ele já tá fora. E a gente tem toda uma expertise dos nossos diplomatas que são muito bem treinados pra esse tipo de negociação, de mediação internacional, que já se perde numa situação dessa. Por conta dessa polarização também, então pensando em termos, assim, conjunturais, nesse instante é muito difícil que o diálogo e que qualquer tipo de apuração do que tá acontecendo, posso acontecer. Então talvez a perspectiva que eu acho que é a mais realista, embora eu não gostaria que ela acontecesse, que é a Venezuela vai ter que chegar no fundo do poço mesmo, pra que haja um esforço real de construir um novo país. E aí nesse esforço de construir um novo país, é que podem entrar esses autores, inclusive o Brasil, e não to dizendo o governo brasileiro, mas entidades brasileiras que participaram da comissão da verdade aqui, né, que não tão ligadas ao governo, que não tão ligadas a partido e que podem ajudar com a nossa experiência aqui, na experiência lá. Então vamos apurar os crimes, né. Quem cometeu o crime? A oposição cometeu o crime? Muito bem, vai ser penalizado. O governo cometeu o crime? Ele também tem que ser punido. Então assim, o que se percebe é que a Venezuela precisa urgentemente que a justiça funcione para os dois lados, né. Então eu acho que esse tipo de cooptação da justiça é o mais cruel que pode existir, porque quando você não tem justiça, você não consegue nada. Então a gente percebe justamente que a Venezuela começa a cruzar a linha, né, que você mencionou, justamente quando a justiça para de funcionar efetivamente, né, quando ela só arbitra pra um lado e pro outro não. Então eu acho que um dos caminhos que a gente pode pensar é esse. De mediação, de diálogo, que no curto prazo não parece ser possível, então vai ser trabalho aí pra mais alguns anos, talvez até décadas.
Ju: Charleaux?
Charleaux: Não sou muito bom de prever o futuro. [Ju ri] Masss…
Ju: Não, mas de aconselhar, talvez. De desejar. [Charleaux: O que eu acho…] Não prever, desejar.
Charleaux: Ah, desejo que tudo dê certo. [Ju ri] O que muita… A palavra paz, ela é muito traiçoeira, sabe. Eu trabalhei muitos anos com questões ligadas a conflito armado e a paz é quando a manutenção do status quo é favorável por uma maioria que consegue se impor. E a minoria insatisfeita encontra um lugar em que ela não consegue desestabilizar. Essa é a paz, né, porque a sociedade sempre tem idiossincrasias, mas a paz não significa que todos os problemas estão resolvidos. Então, desse ponto de vista, a paz na Venezuela é possível quando um dos lados atingir essa hegemonia, né? O que é muito trágico dizer, porque significa aplainar diferença ainda que seja à força, que é um pouco o que os dois lados tão tentando. Quando que chega nesse ponto, em que é possível fazer isso? Não tem limite. Você olha o caso da Síria que tá há seis anos em guerra civil, ou mais do que guerra civil, um conflito armado interno internacionalizado e não tem limite, pode muito ir longe. Você olha aqui do lado a Colômbia, a Colômbia tinha uma situação oposta, né. Tinha um grupo armado de esquerda tentando exercer o controle do país, ou pelo menos sob uma porção do território. Passaram 52 anos em conflito armado interno e não conseguiram resolver a situação, foi se resolver agora, né. Com a fadiga total da dinâmica que existia ali.
Cris: Cansaço…
Charleaux: É, é… Então pode ir muito longe uma situação como essa. A paz eu acho que ela vem numa situação de dicotomia tão forte quanto essa, muito mais pela capacidade de sobrepujar a diferença do que de construir uma ponte de diálogo. Eu não vejo isso acontecer na Venezuela agora, porque as posições contrárias estão muito exacerbadas. E o papel que os atores internacionais têm desempenhado ali, tem sido muito pouco construtivo a essa altura. Eu não sei dizer se seria possível ter um papel mais construtivo e qual seria esse, acho que é muito mais um trabalho pra ela, mas assim tem sido um papel de assumir um lado claramente e de pressionar pela queda do Maduro. Uma aposta arriscada também, porque se isso não acontece, o que que vai acontecer? E mesmo que aconteça, a última coisa eu vou dizer: não tenho a certeza de que uma posição que ascenda ao poder tenha um comportamento tão positivo assim em relação aos que deixaram o poder.
Ju: [interrompe] É, isso que eu queria deixar claro. É, eu também não tenho e nem que vão fazer escolhas boas, nenhuma, nenhuma…
Charleaux: Eles tem a chance de tentar, né?
Ju: E eu acho que é muito importante a gente ter essa clareza e essa possibilidade, de que criticar duramente um lado, não quer dizer concordar com o outro lado. Porque a gente fica refém dessa posição dual de que se eu critico um, então necessariamente eu gosto do outro. Então é não mesmo.
Charleaux: Talvez nesse sentido os chavistas não madurista desempenham, venham a desempenhar um papel interessante de terceira via, né? Eles tão chamando de despolarizados. É uma possibilidade, quer dizer, pessoas que vão dizer: “puxa, o projeto em todo não era ruim, mas a forma como vem sendo conduzida, nós não concordamos, a oposição também é muito maluca, tentou um golpe em 2002, não nos interessa, nós somos o caminho do meio”. É possível, é possível que se construa uma coisa assim. E a eleição é ano que vem, um cenário muito parecido com o cenário brasileiro.
[risos abafados]
(Bloco 19) 1:30’00” – 1:34’59”
Cris: Tantas coisas…
Ju: É.
Charleaux: Quer dizer, ano que vem tem eleição presidencial, como é que isso vai se resolver? Se tiver eleição, né. [Ju: É… Exatamente.] Né, porque se é especialista em mudar a data da eleição ou de fazer protesto pra querer sanar o contexto, pra que as pessoas não votem. Enfim, tem pra todos os gostos. Mas existe o risco de não acontecer de fato.
Ju: Cris, o que que cê acha?
Cris: Eu apostaria todas as minhas fichas que do cansaço nasce a autocrítica. Assim como os dissidentes do governo Maduro em algum momento falaram: “Epa, peraí. Não era bem por aí.” Acho que acontece a mesma coisa em algum momento com a oposição, inclusive em algum momento acho que eles podem se unir, essa oposição dissidente com esses governistas dissidentes, podem traçar efetivamente um caminho do meio. É tão cansativo viver nessa eterna desconfiança e você não governa, né, você só se defende. E a oposição não cria nada, ela só tenta atacar. Eu acho que as pessoas dentro desses próprios movimentos elas vão criando ali um processo de tipo: “talvez seja não por aqui”. E essas primeira pessoas que saem dos movimentos, eu acho que a gente tem que ficar de olho é nisso, porque tem ali um pontinho de senso crítico que pode ser muito importante pra população, porque traz um discurso novo, né, e é com discurso novo que cê vai ver um novo caminho. Mas acho que ainda vai longe esse negócio, vai looonge…
Ju: O que de todas as coisas que eu tinha lido, eu não tinha visto o que o Filipe falou que os dois principais opositores, que inclusive estão presos, foram presos no meio da madrugada, estavam envolvidos lá naquele golpe do Chávez. [Carol: Sim.] Eles surgiram assim. [Carol: Surgiram lá.] Então assim, você… Não tem santo no puteiro, né? [Carol: Não…] Então, assim… [Charleaux: O Chávez tinha dado um golpe.] É, sim, não, mas assim… Qual é o meu ponto? Meu ponto é: o desrespeito pela democracia. Aí você grita que não tá respeitando a Constituição, mas você também tá cagando pra ela, é só uma retórica, entendeu. (Perdoe o meu francês.) Mas o que eu acho, o que eu vejo como uma saída que não é pra agora, mas é que assim, o diálogo é o caminho pra mim, a democracia é o caminho, que a gente consiga debater sem inviabilizar o outro, sem invisibilizar o outro, sem desumanizar o outro, que a gente consiga resolver os nosso conflitos conversando e não na rua. [Voz embargada] E eu acho que pra mim foi bem emocionante ler sobre a Venezuela porque tem muitos pontos parecidos com o Brasil, porque eu ouvi em momentos exasperados assim de pessoas próximas: “Ai, então tem que ir pra rua mesmo, tem que ir. Não tem jeito. Não nos escutam, dão golpe, então é guerra civil.” E esse é o preço gente, esse é o preço, vão escutar o relato, vão lá, vão… Como o Charleaux falou, tá disponível pela internet, vão escutar o preço que o povo tá pagando. É um preço, muito, muito alto pra não conversar. E eu acho que assim, todos nós; eu sou, todos nós somos muito autoritários. A gente quer resolver à nossa maneira. Se você tá vendo uma solução, se tem uma coisa que tá clara pra você e o outro não tá vendo, você vai impor e depois você vai discutir, depois você vai conversar. E não tem como. Uma coisa que o Rafa também fala é que assim, não dá pra você querer mudar as coisas se você não tiver diferença, transformar o seu próprio processo. Então essa desculpa que a gente já se escondeu por tempo demais, de que se o jogo é sujo, eu jogo sujo, isso não vai nos levar a lugar nenhum diferente. Então eu vejo isso na Venezuela também, a única saída, a única saída possível que não seja aniquilação dos dois é que exista pontes, que exista o respeito pela democracia; que se comece pelo seu lado. Então eu vou andar direitinho, se você for fazer tudo errado, mas eu vou andar direitinho e eu vou abrir pontos de diálogos e eu vou aceitar que você existe e eu vou te entender e eu vou buscar um diálogo empático que entenda, Tá, eu sei onde você quer chegar, eu valoro onde você quer chegar, a gente tem diferenças de como atingir, vamos lidar com essas diferenças.” A única saída que eu vejo da Venezuela é a mesma saída que eu vejo pra gente.
Cris: Vamos então para o Farol Aceso?!
Ju: Vamos.
[Trilha]
Cris: Vamos então para o Farol Aceso! Vamos começar com a Carol. Querida, o que você tem pra indicar?
Carol: Olha, eu indica a série: 4 Estações em Havana. [ “Crítica:”] Que é de um escritor cubano, que chama Padura, baseada num livro dele, que conta um romance policial que se passa em Havana, então é muito interessante. Tá no Netflix.
Cris: Oba. Ju, que que cê indica?
Ju: Nessas férias do Mamilos, em um mês eu li quatro livros. Considerando que em cinco meses de produção do Mamilos eu não li nenhum. Então é realmente, as férias rendem. Eu, dois eu não vou indicar, porque vocês já morreram de ouvir no Braincast que é o Sapiens, e o outro é da Chimamanda. Eu já falei bastante dela aqui, basicamente leiam tudo dela. Mas um eu vou falar agora e o outro eu falo no outro programa. Chama Os Despossuídos, da Ursula Le Guin. Eu já falei pra vocês dela, ela fala de ficção científica. Eu falei da “Mão Esquerda da Escuridão”, eu acho que falei, alguma coisa assim, outro livro dela que é muito bom. E eu li esse e fiquei mais tocada ainda. Muito a ver com a nossa discussão de hoje, ela monta dois mundos, dois universos em ficção científica. Um que é capitalista como o nosso e o outro uma lua anarquista. Então o mundo sem contato, sem contato nenhum, como funcionaria viver… Mostra todos os conflitos de uma sociedade anarquista e todos os conflitos da sociedade capitalista. E ela fala bastante sobre individualismo e coletivismo, as vantagens de cada um e os problemas de cada um. Eu achei muito, muito bom o livro, ele me fez pensar bastante, é uma leitura deliciosa, rápida, muito gostosa, muito provocativa e eu já tinha ouvi mais de uma vez a provocação de: entre liberdade e igualdade, você não pode ter os dois. Qual que você escolheria? E eu sempre pensava assim: “Ai, o que que adianta uma igualdade onde você não tem nenhuma liberdade? Pra que isso, que que eu vou fazer com isso? Com a minha liberdade eu posso fazer qualquer coisa, inclusive trabalhar pela igualdade.” Então me parecia que a liberdade era mais negócio. Ela consegue explicar muito bem porque que isso não é verdade, como que isso não é assim e ela me fez entender que uma sociedade sempre vai precisar de revoluções. Então uma sociedade sempre vai tender, qualquer sistema político, qualquer organização, qualquer agrupamento de pessoas, sempre vai tender pra problemas, pra disfunções. Então sempre vai precisar de revoluções. Eu prefiro ser uma revolucionária numa sociedade igualitária, contradizendo tudo o que eu disse durante o programa. [Risos.] Então assim, muito, muito bom, recomendo, leiam. E a outra dica é o The Handmaid’s Tale. Só vou citar que vamos fazer um programa sobre isso. Então busquem a série, porque ela não está disponível de nenhuma maneira legal no Brasil, vocês vão ter que realmente baixar. Vale muito a pena, tem muitas discussões importantes, eu entendi uma série de coisas que eu ouvia falar, eu consegui entender com essa série. Assistam. O que vale lembrar é que as duas coisas foram indicações de mamileiros; vocês sempre falam que aprendem com a gente, mas a gente aprende muito, muito, muito, com vocês.
(Bloco 20) 1:35’00” – 1:39’59”
Cris: Diga, por favor, Charleaux.
Charleaux: Então, eu vivi um período muito especial, acompanhar um amigo que tá com câncer, no hospital, e foi muito bom e muito ruim, né. [risos abafados] Mas é muito bom também. Porque põe a gente em contato com coisas muito interessantes sobre as quais a gente pensa muito pouco e nesse período dormindo lá e acompanhando e tal, me recomendaram um livro e eu li, chamado O livro do tibetano do Viver e do Morrer. Trata de morte. E é interessante em vários sentidos, assim, um deles é porque essas pessoas são meio de outro mundo né, o cara do Nepal antes da ocupação chinesa, como funciona a cabeça de uma pessoa assim, né. O autor, o Rinpoche, ele mudou depois de ir lá, na ocupação chinesa, ele sai de lá e vai morar nos Estados Unidos, então ele trabalha muito esse contraste, como as duas culturas lidam com o mesmo assunto, que é a morte, né. E eu me reconheci muito nas coisas que ele fala, né. De que aqui pra nós a morte é um assunto considerado meio mórbido, de mau gosto, né, não é uma coisa sobre qual a gente fala. A morte sua, de parentes ou a nossa. E que ou a gente tem essa atitude meio de afastar ou ignorar, ou uma atitude muito negligente, do tipo: “Ah, todo mundo vai morrer, eu vou morrer e que se dane.” E ele se diz muito chocado com isso, porque pra nós isso é um tremendo assunto, não é muito fascinante e tal. E ele explica o porque, começa contando quando criança, experiências de morte que ele teve com as pessoas que iam morrendo, próximos dele, né. E como era esse processo, de ver a pessoa morrer, ver a pessoa agonizando e como ele foi sacando coisas diferentes, com um e com outro. E isso é uma introdução pra ele falar da religião dele que é o budismo tibetano, mas… Não tanto pela questão religiosa, mas mais pela questão mesmo de refletir sobre a própria vida, né. Opostos, né, possibilidades… Possibilidade não, porque não é uma possibilidade. [Ju: É certeza. Única certeza.] É uma realidade da morte. Faz a gente pensar de um jeito diferente sobre a vida, né. Então achei um livro bom. É grande e bom. E é duplamente bom, né, porque não acaba rápido.
[risos]
Ju: E você, Cris?
Cris: Eu li quatro livros e assisti três séries. E eu vou entregar só um por semana pra durar. Porque eu sei que não vou fazer mais nada [Ju: Exato.] até as próximas férias, então vai ser conta gotas, tá. Segura aí que foi um monte de coisa boa, tô doida pra contar, mas não vai rolar não. E esse primeiro episódio eu vou abrir mão dessa coletânea, dessa corrida que eu fiz durante as férias, pra poder ficar na pauta. Eu vou indicar, para que vocês conheçam, a maravilhosa Orquestra Sinfônica Simón Bolívar da Venezuela. Se tem uma coisa que eles fizeram direito foi esse negócio. [risos] E eu sou completamente apaixonada pelo Gustavo Dudamel, que é um maestro venezuelano, reconhecido mundialmente ele é um gato, e ele é jovem e tem muita energia. E assistir tem milhares de vídeos no youtube, põe aí que você vai ouvir. E a energia daqueles jovens, tocando tão maravilhosamente e aquele maestro tão engajado em trazer a beleza da sinfonia junto àqueles jovens é uma coisa comovente. E em vários espetáculos, a orquestra já ganhou prêmios e tudo mais, eles tocam vestidos com a jaqueta, com a bandeira do país, que inclusive virou uma jaqueta que o Chávez usava muito, pra quem não sabe, isso é também uma coisa boa que rolou nessa treta toda, o Chávez era muito apaixonado por música, e ele investiu em diversas escolas de música clássica no país inteiro. Então as crianças lá costumam ter contato com música muito cedo e o fruto disso realmente essa orquestra vale a pena ser conhecida, o Dudamel vale a pena ser conhecido e acompanhado, que é realmente uma coisa incrível que eles conseguem fazer, a energia que essa orquestra tem é maravilhosa. Escutem, vocês vão gostar. Temos um programa?!
(Bloco 21) 1:40’00” – 1:41’38”
Ju: Temos um ótimo programa de recomeço!
Cris: Êta! Fica a gostosa sensação de ter conversado mais um pouco. Muito obrigada, Charleaux, espero que volte sempre.
Charleaux: Obrigado.
Ju: Obrigada, gente.
Cris: Carol, a casa é sua, por favor, retorne! [Carol: Obrigada.] É isso pessoal, beijo!
Ju: Até a próxima semana!
[Trilha]
[Vinheta: Esse podcast foi editado por Caio Corraini.]