- Cultura 13.nov.2016
Oliver Stone faz filme morno sobre Edward Snowden
Diante de um material tão incendiário, o diretor se mostra comedido, com poucos momentos de intensidade que remetem aos seus melhores trabalhos
Ao longo de décadas de carreira, Oliver Stone nunca fugiu de controvérsias. A ditadura em El Salvador, a Guerra do Vietnã, a corrupção em Wall Street, os atentados terroristas de 11 de setembro, a ascensão de líderes latino-americanos, a morte de JFK, a vida de Nixon e a tragicomédia de Bush: todos foram, direta ou indiretamente, objetos do olhar do cineasta. Entre premiações pela excelência de seu trabalho e críticas relacionadas à credibilidade de suas fontes, muita coisa mudou desde sua estreia na direção.
Seus filmes realizados na segunda metade dos anos 80, em especial “Platoon” e “Nascido em 4 de Julho”, despertavam paixões e produziam discussões acaloradas sobre lealdade, autoridade e patriotismo. Na maior parte deles, havia uma urgência própria do jornalismo, uma busca por trazer para a frente das câmeras o que mídia e governo muitas vezes optavam por omitir. A fama de teórico da conspiração ganhou força pouco tempo depois, intensificando-se na virada do século, quando o interesse do público pelo trabalho do diretor, bem como a qualidade desse trabalho, diminuiu significativamente.
Hoje, mesmo diante de um material tão incendiário, Stone parece mais comedido. Uma das razões para essa postura diz respeito à complexidade das questões levantadas por Edward Snowden há pouco mais de três anos. “Os olhos se voltam para o mensageiro quando a mensagem é complicada demais”, afirma o próprio diretor ao discutir o assunto. Por essa razão, é preciso compreender ao menos uma porção dos eventos antes de fazer juízo sobre a vida do personagem — uma ordem que a cobertura sensacionalista dos eventos, obcecada por criar heróis e vilões instantâneos*, jamais respeitou.
O ponto de partida é o encontro entre o personagem do título (Joseph Gordon-Levitt), o jornalista Glenn Greenwald (Zachary Quinto) e a cineasta Laura Poitras (Melissa Leo) em um hotel de Hong Kong, já registrado anteriormente no excelente documentário “Citizenfour”. Aqui, a reunião serve como base para uma série de flashbacks que pretendem traçar um panorama evolutivo do sistema de vigilância do governo dos Estados Unidos ao mesmo tempo em que constroem o protagonista. Nesse sentido, trata-se de um filme sobre decisões técnicas e procedimentais que se enfileiraram ano após ano para formar um enorme aparato de opressão de modo natural, silencioso e nada democrático.
Trata-se de um filme sobre decisões técnicas e procedimentais
Em termos estéticos, Stone (em seu primeiro longa de ficção rodado digitalmente) e o diretor de fotografia Anthony Dod Mantle (“No Coração do Mar”) abraçam essa ideia. A decisão de evitar grandes arroubos visuais permite manter o foco na trama e confere maior impacto aos momentos mais explosivos, quando a montagem acelerada e o uso de câmeras e lentes distintas entram em ação, alterando a aparência da imagem para sinalizar essa confusão entre virtual e material.
Como a de outros protagonistas de Stone, a jornada de Snowden é marcada por desilusão
Além disso, mudanças recentes na relação entre sociedade e tecnologia desobrigam o filme de explicações que seriam fundamentais anos atrás, mas que hoje são imediatamente assimiladas. A percepção de que linhas de código digitadas na tela de um computador podem ser tão decisivas para uma guerra quanto a ação no campo de batalha é um dos exemplos mais drásticos. A violação de privacidade por meio de acesso remoto a uma webcam, um dos mais palpáveis. O que em outros tempos soaria absurdo, hoje surge como marca de um realismo quase inevitável.
O medo de Snowden é bastante particular nesse universo. Como a de outros protagonistas de Stone, sua jornada é marcada por desilusão. Foi ele, um jovem responsável que se alistou para lutar no Iraque, quem ajudou a construir esse sistema. Por isso, o filme se dedica a pontuar as principais descobertas e decepções do rapaz antes da revelação final. Há duas questões principais em jogo: de que modo ele adquire consciência sobre as violações da Agência Nacional de Segurança? E o que ele deixa para trás? As respostas passam por caminhos semelhantes.
O relacionamento com Lindsay (Shailene Woodley) se faz presente em todos esses momentos. Embora o constante choque de opiniões entre eles crie dinâmicas interessantes, revelando dados sobre o hacker que nos escapariam de outra maneira, a personagem feminina é desenvolvida aquém de seu potencial. De certo modo, é como se ela existisse apenas para percebermos as mudanças pelas quais ele passa. Ele sofre por não saber mais, depois por saber demais sobre a garota, enquanto ela vive tateando no escuro, sem que o longa jamais trate com a mesma humanidade sua decisão de permanecer ao lado de alguém tão distante emocionalmente.
O roteiro não consegue apresentar informações que realmente importam sem maiores rodeios
Parte do problema se explica, ainda, porque as sequências dentro de casa parecem saídas de um filme televisivo que se restringe a estabelecer plano e contraplano para filmar diálogos já pouco empolgantes — e o tom monótono da voz de Gordon-Levitt contribui para isso. Talvez seja um sintoma da falta de força dramática na relação entre os dois personagens, talvez apenas outra evidência de limitações antigas do cineasta.
Crítica semelhante pode ser feita à passagem de Snowden pelo exército. Incomoda que o responsável por dois dos filmes de guerra mais aclamados das últimas décadas capture esse segmento de maneira tão banal. O roteiro, que o diretor assina ao lado de Kieran Fitzgerald, frequentemente não consegue apresentar a informação que realmente importa sem maiores rodeios. Nesse caso, o único dado relevante em mais de dez minutos de treinamento militar é o impulso patriótico do garoto pós-11 de setembro de 2001 — o restante é perfumaria.
É só diante do medo de serem encontrados, que os personagens transformam “Snowden” em um autêntico thriller
O problema é que essa gordura extra se acumula, tornando o ritmo do filme menos fluido e suas 2h15min de projeção, mais cansativas. Quando opta pelo caminho mais curto, tudo funciona melhor. O pragmático Corbin (Rhys Ifans) e o frustrado Hank (Nicolas Cage), mentores de Snowden no período em que ele trabalhava para a CIA, são adições importantes nesse sentido. Suas aparições, que sempre introduzem problemas ou resolvem pendências, são eficientes para acelerar a trama.
O mesmo pode ser dito do grupo reunido no quarto de hotel. Ali, diante do medo de serem encontrados, os personagens transformam “Snowden” em um autêntico thriller, com a intensidade dos melhores trabalhos de Stone. É uma pena que, no limite, o diretor encare o destino do protagonista de maneira tão moderada — atento aos perigos da vigilância constante, mas desprovido da agressividade que o tornou reconhecido.
*Em entrevista à revista GQ durante recente vinda ao Brasil, Stone afirmou “não gostar” do subtítulo do longa (“Herói ou Traidor”) no país.
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