- Cultura 29.out.2016
Emily Blunt enfrenta crise de consciência em “A Garota no Trem”
Baseado no romance de sucesso escrito por Paula Hawkins, filme combina protagonista interessante e trama problemática
⚠️ AVISO: Pode conter spoilers
Ano após ano, os meses de outubro e novembro se confirmam como a época de desova de filmes de suspense no cinema norte-americano. O período marca as estreias de títulos que não parecem projetados para o verão no hemisfério norte, quando os principais blockbusters costumam ser entregues ao público, nem são destinados à prateleira dos dramas que inevitavelmente batalham por indicações ao Oscar nas semanas seguintes. O recorte é amplo e compreende tanto sucessos do porte de “Garota Exemplar”, lançado nos Estados Unidos em 3/10/14, quanto exemplares de pouquíssimo destaque, como “Antes de Dormir”, que chegou às salas sem alarde apenas alguns dias depois.
“A Garota no Trem”, também baseado em um romance bastante popular, é o último a se juntar ao grupo. Sua proposta se aproxima mais de David Fincher do que de Rowan Joffe, mas a direção de Tate Taylor e o roteiro de Erin Cressida Wilson (adaptando o texto de Paula Hawkins) jamais conseguem escapar de suas limitações.
É verdade que não falta ambição. Logo nos primeiros segundos de projeção, o filme se propõe a acompanhar uma personagem que sugere certa complexidade. Todos os dias, sempre a bordo do mesmo vagão e acomodada no mesmo assento, Rachel (Emily Blunt) vai e volta de Nova York. Pela janela, ela observa as pessoas que moram às margens da ferrovia, criando cenários possíveis para suas vidas. O que importa, para o longa e para ela, não é tanto o que ocorre na saída e na chegada às estações, no trabalho ou dentro de casa, mas esse fluxo constante: da esquerda para a direita durante o dia; na direção oposta durante a noite.
Taylor ergue toda sua lógica visual a partir dessa ideia. Em determinado momento, quando um evento externo desperta a atenção da protagonista, o diretor e a fotógrafa Charlotte Bruus Christensen registram sua reação por meio de um movimento que parece artificial. Sem cortes perceptíveis, a câmera gira em torno dela e passa de dentro para fora do trem, como se atravessasse o vidro e quebrasse essa barreira entre quem observa e quem é observado.
Não satisfeita em se concentrar nesse expediente, porém, a narrativa carrega um agravante. Rachel sofre de alcoolismo e, por isso, seu relato em primeira pessoa acaba comprometido pela impossibilidade de recordar os fatos com a clareza necessária. Sua confusão é transmitida ao espectador pela manipulação das imagens. Flashes de luz, trechos em câmera lenta e enquadramentos distorcidos se somam para causar essa desorientação, seguindo aos mesmos ritmo e fluidez das viagens da garota sobre trilhos.
Preso na necessidade de construir estritamente uma história policial sustentada em uma visão da protagonista, “A Garota no Trem” se complica
As tentativas de se envolver nas vidas que observa à distância isolam a personagem do ambiente que a rodeia. Um truque de foco, por exemplo, destaca seu corpo do casal formado por Anna (Rebecca Ferguson) e Tom (Justin Theroux). Vê-los em primeiro plano enquanto ela surge perdida em segundo nos informa muito sobre tais figuras e as relações entre eles, e planos como esse existem aos montes no filme.
Como não poderia deixar de ser, o processo de retomada de consciência gera implicações na trama. Preso na necessidade de construir estritamente uma história policial sustentada em uma visão de Rachel, “A Garota no Trem” se complica cada vez mais. Quem sobe o tom é a detetive Riley (Allison Janney), que representa o descrédito geral diante da protagonista, colocando em dúvida suas versões do caso.
Peça central da campanha de divulgação do filme (“O que ela viu?” e “Baseado no livro que chocou o mundo” são frases encontradas nos pôsteres), o mistério passa a ocupar o centro de tudo e, assim, altera as dinâmicas estabelecidas até então. A construção da tensão funciona quando os sintomas da paranoia se manifestam: há sempre alguém (uma mulher com o filho no colo, um senhor, uma antiga conhecida) observando Rachel, que caminha apressadamente nessa jornada solitária. Frequentemente, a câmera cola em seu rosto, como se tentasse extrair dele alguma emoção ou verdade — recurso um tanto óbvio e que poderia ser mais eficiente não fossem seu excesso.
A construção da tensão funciona quando os sintomas da paranoia se manifestam
O que definitivamente não funciona é o desenrolar da investigação. Diversos coadjuvantes ganham destaque, criando subtramas e apresentando temáticas que servem apenas como distração ou, ainda, plataforma para novas reviravoltas. Não se trata de um problema de interpretação (as performances secundárias são sólidas, em sua maioria), mas de formação de personagens. Seus interesses e motivações, inicialmente usados para provocar reações na protagonista, acabam se resumindo a acessórios para justificar suas ações.
Determinados trechos em que “A Garota no Trem” resgata sua proposta inicial, como aquele em que ela reflete sobre a própria vida durante uma sessão de terapia, são a exceção. No resto do tempo, sobram duas sensações. A primeira, de que há um filme muito interessante sobre uma consciência em crise perdido em meio a provocações sobre fidelidade e posse. A segunda, de que Emily Blunt, que já se provou competente lidando com materiais bem mais problemáticos, merecia coisa melhor.
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