- Cultura 7.out.2016
Humor adulto e sátira social são destaques de “Festa da Salsicha”
Novo trabalho dos responsáveis por “Superbad” e “É o Fim”, animação é irregular ao conciliar suas questões “para adultos” e uma aventura convencional
⚠️ AVISO: Contém spoilers
Imaginar o que as coisas, os outros seres vivos fazem quando não estamos olhando é, desde sempre, um dos recursos prediletos das histórias infantis. A animação costuma ser o espaço mais favorável para a realização dessas ideias: somente na era da computação gráfica, franquias como “Toy Story”, protagonizada por brinquedos, e longas como “Pets — A Vida Secreta dos Animais”, para citar o exemplo mais recente, foram lançadas e atraíram multidões de jovens e adultos para os cinemas.
Em vários sentidos, “Festa da Salsicha” representa uma continuação dessa lógica. Criada por Seth Rogen, Evan Goldberg e Jonah Hill (colaboradores, em níveis variados, desde os tempos de “Superbad”), a comédia funciona como qualquer filme dos estúdios Pixar, Disney ou DreamWorks, ainda que seus traços pareçam menos sofisticados. Os alimentos têm rostos, braços e pernas, agem como seres pensantes e existem em uma sociedade desconhecida pelos humanos.
A diferença fundamental é que o humor, aqui, se assemelha mais a uma versão comportada de “South Park” ou “Team America” do que, digamos, a um “Zootopia” direto e agressivo — o quarteto tem em comum o fato de chamar atenção para questões sociais mais ou menos graves, ainda que com tons e estilos obviamente distintos. De uma maneira mais ampla, que abarca desde as temáticas até a estrutura dos filmes, a comparação mais justa seria com “É o Fim”, também de Rogen e Goldberg.
Desta vez, o palco do apocalipse é um supermercado no qual os produtos à venda acreditam na existência de um paraíso após cada compra. Nesse cenário em que os clientes são tratados como divindades capazes de selecionar aqueles que serão salvos, a salsicha Frank (o próprio Rogen) e a bisnaga de cachorro-quente Brenda (Kristen Wiig) cultivam um romance que ocupa praticamente toda a meia hora inicial de projeção.
Ambos desejam consumar a relação, mas precisam resistir à tentação para “não contrariar os deuses” e, assim, garantir as chances de ter um espaço reservado longe dali. A premissa serve de base para uma bateria de piadas que sexualiza todo e qualquer alimento e objeto. Por sua vez, a computação permite que os autores, aliados a Greg Tiernan e Conrad Vernon (diretores experientes na área), explorem aspectos novos do mesmo tipo de humor que sempre fizeram, o que torna as gags visuais tão frequentes quanto os trocadilhos e tiradas habituais.
Estabelecidos os pilares desse universo, o filme consolida duas dinâmicas centrais. A primeira delas é questionar a crença vigente. Essa afirmação parece séria demais para o produto em questão, mas é o que ocorre: quando um pote de mostarda com mel (Danny McBride, ótimo) é devolvido ao mercado e revela que o paraíso não passa de uma farsa, Frank decide ir atrás da verdade.
“Festa da Salsicha” utiliza as seções, corredores e prateleiras como metáforas para divisões sociais, étnicas e culturais
Ao abalar essa ordem e estabelecer um prazo para que tudo se resolva (o feriado da independência americana, quando milhares de hot dogs são devorados anualmente), o roteiro coloca os personagens e a trama em movimento. Por outro lado, a adoção dessa narrativa aparentemente obriga Rogen, Goldman e Hill a estabelecer um vilão determinado a impedir a conclusão da jornada dos protagonistas. Surge, então, a ducha (Nick Kroll), que concentra boa parte das piadas sexuais e acaba sendo o elo mais fraco e desconectado do filme.
Voltando ao par de elementos citado anteriormente, é preciso destacar o modo como esses grupos de produtos se organizam. “Festa da Salsicha” utiliza as seções, corredores e prateleiras como metáforas para divisões sociais, étnicas e culturais. A divisão prepara o terreno para dezenas de piadas relacionadas a hábitos e sotaques, é verdade, mas cumpre outro papel ainda mais relevante: o de propiciar reflexões sobre fé e tolerância.
A partir daí, ganham espaço figuras que simbolizam visões de mundo distintas. Na voz de um bagel chamado Sammy, Edward Norton rouba a cena com a melhor imitação de Woody Allen possível, sempre em interações com um lavash (David Krumholtz) que servem de pretexto para discussões sobre o conflito árabe-israelense. Ao mesmo tempo, Frank e Brenda — além da salsicha Barry (Michael Cera), o coadjuvante de maior destaque — se separam e exploram diferentes situações em que interagem com humanos e outros produtos, em um verdadeiro catálogo de personagens cujas aparições, geralmente brevíssimas, variam em termos de sucesso.
É impossível negar o grau de ousadia do ato final, que enfileira duas sequências extremas sem o menor pudor ou cerimônia
“Festa da Salsicha” perde seguidas oportunidades para variar a forma como trabalha suas sátiras. Na preparação para o clímax, acumulam-se um número musical fracassado, xingamentos que se repetem à exaustão, perseguições pouco criativas e outras distrações que pouco se relacionam com o que diferenciava o longa em primeiro lugar — mesmo uma sequência construída em outro estilo de animação parece banal, envolta em uma aventura episódica pra lá de convencional. Enquanto isso, o humor físico/gráfico segue sendo o componente mais eficiente, agora acompanhado apenas de referências pontuais mais interessantes, como a recriação de um trecho de “O Resgate do Soldado Ryan”.
Se a anarquia esperada não contamina todo o filme, no entanto, é impossível negar ou tentar diminuir o grau de ousadia do ato final, que enfileira duas sequências extremas sem o menor pudor ou cerimônia. Infelizmente, em retrospectiva, a sensação é de que o potencial concentrado no desfecho poderia ter sido melhor distribuído — ou, ao menos, de que aquela explosão final, tão subversiva e inesquecível, poderia ter sido melhor preparada.
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