- Cultura 3.set.2016
Sônia Braga é uma força extraordinária na obra-prima “Aquarius”
Equilibrando-se entre o estudo de personagem e o retrato complexo da sociedade, Kleber Mendonça Filho demonstra enorme habilidade para trabalhar questões como memória e resistência
⚠️ AVISO: Contém spoilers
“Aquarius” é gigante. Construído como um mosaico em torno de Clara, sua protagonista, o segundo longa-metragem de ficção de Kleber Mendonça Filho dá conta de uma variedade enorme de questões empregando recursos que demonstram a habilidade do cineasta em flutuar entre o estudo de personagem e o retrato social, o naturalismo e o melodrama.
De imediato, identifica-se um expediente similar ao de “O Som ao Redor”
, sua obra anterior. Fotografias antigas de Recife sinalizam as mudanças pelas quais a cidade e, em especial, o bairro de Boa Viagem, têm passado nas últimas décadas. Na praia, a sombra agradável das árvores dá lugar à sombra bruta dos prédios, verdadeiros arranha-céus instalados na orla. O resgate da memória do local parece fundamental para que se compreenda a resistência da personagem, única moradora de um prédio de pequeno porte à beira-mar que o trator do progresso, na figura de uma construtora, insiste em tentar derrubar.
Antes que esse conflito em particular se estabeleça, porém, conhecemos Clara ainda jovem (vivida por Bárbara Colen). Ela se diverte dando voltas de carro pela areia, onde aparenta se sentir em casa, antes de chegar à festa de aniversário de sua tia Lúcia (Thaia Perez), que completa setenta anos. Há muito em comum entre essas duas mulheres, como se a mais velha antecipasse, de maneira convicta, uma série de traços que seriam incorporados pela mais nova em seguida — a liberdade sexual, a ausência do companheiro, a memorabilia que desperta paixões, as marcas do tempo trazidas no corpo.
Ainda durante o prólogo, descobrimos que ela se curou de um câncer, enfrentado ao lado dos três filhos e do marido, cuja fala, celebrando a superação da doença, surge carregada de serenidade, mas abatida pela melancolia. De todo modo, a sensação corrente é de alívio. Ganha a tela, então, uma das elipses temporais mais delicadas do nosso cinema recente: ao som de Gilberto Gil, o enquadramento fixo da sala do apartamento vê a noite virar manhã e 1980 se transformar no presente.
A partir daí, Clara (agora interpretada por Sônia Braga) se revela aos poucos. Naquele mesmo local, anos depois, sua vida existe em momentos mais ou menos cotidianos. Da janela da frente ela acompanha tudo o que se passa ali: a largada de uma corrida na calçada, um casal que não se constrange enquanto transa na praia, pessoas entrando e saindo do edifício pelo corredor que dá acesso à portaria.
“Aquarius” flutua entre o estudo de personagem e o retrato social, o naturalismo e o melodrama
O ritmo é paciente, nunca lento, e espalha rastros de informação que podem ou não ser resgatados posteriormente, mas que definitivamente servem para construir uma atmosfera bastante particular. Não há muito espaço para exposição. Mesmo durante uma entrevista realizada por uma jovem repórter, ainda nesse segmento inicial, a protagonista prefere contar uma história a narrar a própria. Como se atirasse ao mar mensagens em garrafas, Clara entrega detalhes sobre sua trajetória nas interações com o mundo ao seu redor.
Não é mais regra a companhia dos filhos, agora adultos, que transitam pelo filme natural, mas pontualmente. Aqui e acolá, emergem problemas do passado ainda carentes de resolução (a falta do pai, uma dita ausência da mãe na infância), mas que encontram relativa paz no presente graças a ações e objetos que fogem do distanciamento que domina essas relações, como um abraço entre lágrimas com os rostos colados ou um um pedido de desculpas “pelas horas de lazer que lhes foram roubadas” impresso em um dos livros escritos pela protagonista.
O ritmo é paciente, nunca lento, e espalha rastros de informação que constróem uma atmosfera bastante particular
Quando entra em cena Diego (Humberto Carrão), o responsável por levar adiante o projeto do Novo Aquarius, Clara se vê obrigada a reagir. A tensão domina o ambiente, com esboços de explosão ocorrendo constantemente. O carro que passa acelerado pregando a salvação pela religião em alto volume, o véu gigantesco que se desprende do prédio vizinho, os adesivos da construtora pregados na porta: tudo isso perturba a tranquilidade da personagem central.
A tensão é inescapável e ganha corpo pelo brilhante uso do som, que confere maior força dramática a elementos supostamente secundários em sequências também aparentemente triviais. Em determinado trecho, por exemplo, o ferver da água no fogão se mistura aos estalos do fogo que queima no pátio e torna tudo mais sufocante e imprevisível. Ainda, quando a moradora pede ao construtor que retire seu carro do caminho para sair da garagem, o som das janelas se fechando se soma ao barulho dos pneus tocando o chão. A sequência dura apenas alguns segundos, com cortes simples variando entre os dois personagens, mas seu impacto é enorme, como se Clara e Diego não resistissem mais ao choque.
Mendonça Filho volta o olhar para a arquitetura excludente e alienante da metrópole pernambucana, microcosmo da realidade brasileira
De fato é o que ocorre. Trata-se de uma luta política, de uma mulher forte que tenta preservar sua memória contra homens sem medo que aportam do futuro decididos a lucrar. Esse embate invade toda a narrativa, transformando imagens convencionais em símbolos desconcertantes, como o passado sendo atirado num saco de lixo durante a sequência no cemitério e o rosto expressivo da empregada doméstica sendo distorcido pelo zoom e o movimento simultâneo da câmera. Haverá limite para os golpes contra a protagonista?
Novamente, Mendonça Filho volta o olhar para a arquitetura excludente e alienante da metrópole pernambucana, microcosmo da realidade brasileira, em que prédios espelhados se impõem sobre casas sem qualquer tipo de acabamento e com carências ainda mais consideráveis. É evidente que a questão vai além das fachadas e contamina comportamentos, discursos e olhares. Sem se esquivar dos aspectos mais espinhosos, o diretor constrói um pesadelo constante em que a desigualdade é um mal que possui apetite voraz e ataca em várias frentes.
Dona de uma força extraordinária, a personagem de Sônia Braga só é possível na tela do cinema
A perpetuação do abismo entre classes faz com que graves problemas pareçam indissociáveis da vida em sociedade e, por isso, sejam tratados com normalidade ou indiferença. O racismo que gera suspeita sobre um grupo de garotos negros e isenta de responsabilidade um criminoso branco, o machismo que não tolera uma mulher livre, as vontades particulares que se sobrepõem às coletivas, as relações trabalhistas marcadas por preconceito e disparidade de condições, o proselitismo religioso que vende mentiras, a ilusão da segurança que se resume a excessos de vigilância e violência, a extensão dos vínculos familiares para além do que é privado e a atuação de uma mídia que se orienta por interesses escusos são algumas das manifestações dessa desgraça cotidiana no filme.
Em meio a tudo isso, existe uma fonte de luz chamada Clara. Dona de uma força extraordinária, a personagem de Sônia Braga só é possível na tela do cinema, tamanho o magnetismo de sua imagem. Ainda assim, ela conserva uma humanidade imprescindível, que evita o distanciamento que o cultivo de sua figura ao longo de décadas de carreira poderia produzir. De certo modo, é como se o peso do passado fosse tão significativo para a atriz quanto é para o próprio “Aquarius” — e igualmente bem trabalhado por ambos. Haja hoje para tanto ontem.
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