- Cultura 29.jul.2016
Carente de grandes momentos, “Jason Bourne” fica devendo em relação à trilogia original
O diretor Paul Greengrass repete as dinâmicas que funcionaram anteriormente, mas não consegue aprofundar a mitologia da série
⚠️ AVISO: Contém spoilers
Construídos a partir de variações mínimas do mesmo formato, os filmes da série Bourne se destacam uns dos outros mais por algumas imagens memoráveis do que por uma evolução propriamente dita do todo, capaz de criar capítulos isolados facilmente identificáveis. Interpretado por Matt Damon, o personagem principal parece, consciente ou instintivamente, buscar esses momentos emblemáticos em meio a tramas intrincadas de conspiração. O rapaz e a franquia colecionam tais segmentos e os valorizam como se cada grande explosão de adrenalina significasse estar mais próximo da verdade, seu único objetivo.
Em “Identidade”, chamam a atenção o encontro violento com policiais em uma praça congelada, a perseguição a bordo de um simpático Austin Mini e a caçada de um brutal assassino com um rifle. “Supremacia”, por sua vez, tem como destaques o tumultuado trecho durante um protesto na Alexanderplatz, a fuga pelo metrô berlinense e a morte de Marie (Franka Potente), par romântico do protagonista. Já em “Ultimato”, o que importa da ação se concentra no terminal mais movimentado de Londres, em um quarteirão de Nova York e nas ruas de Tânger.
A maior atração de “Jason Bourne” é uma sequência passada em Las Vegas em que, estima-se, quase duzentos carros são destruídos. Trata-se de uma realização impressionante em termos de escala, mas que revela um problema no olhar de Paul Greengrass, responsável também pelos capítulos dois e três da franquia — o primeiro teve comando de Doug Liman. Aqui, a preocupação central do cineasta difere daquela dos longas anteriores, quando a ação era orientada para confirmar ou subverter os anseios do protagonista.
O objetivo não é mais alcançar uma verdade reveladora e decisiva, uma faísca de lucidez no momento mais caótico, uma consciência instantânea que moverá a trama adiante. A ação existe em unidades fechadas e que praticamente suspendem o enredo enquanto se desenrolam, como se a superação dos obstáculos fosse meramente procedimental, não essencial para a jornada de descoberta e rebeldia de Bourne.
Greengrass novamente aposta no ritmo frenético de corpos, objetos e luzes em movimento para reproduzir tanto a confusão do protagonista quanto a urgência de sua missão. A estratégia é eficiente, mas bastante limitada tanto por não ir além de elementos explorados anteriormente quanto pela timidez de sua proposta formal, que em nada se beneficia das contribuições de Christopher Rouse, montador da trilogia original, como roteirista. Tendo domínio sobre o produto final, o cineasta opta por variar apenas um ou outro ingrediente sem incorporar novas técnicas à receita. O resultado pode até ser maior, mas passa longe de superar em qualidade os capítulos prévios.
Essa saída segura é frustrante, sobretudo, quando se pensa na natureza do personagem, em deslocamento constante e traído pela própria memória. Exceto quando investiga suas lembranças, Greengrass não se aprofunda nas relações entre o visto e o não-visto, o decifrável e o indecifrável, fundamentais para Bourne e marcantes nas melhores obras recentes do gênero, como aquelas assinadas por Jaume Collet-Serra e Tony Scott.
Greengrass novamente aposta no ritmo frenético de corpos, objetos e luzes para reproduzir a confusão do protagonista e a urgência de sua missão
Sem grandes pretensões estéticas, o retorno do agente ao cinema segue o mesmo esquema de reciclagem visto em “Supremacia” e “Ultimato”. Nos demais saltos entre filmes, entretanto, as inovações pareciam suficientes: o segundo longa é mais ágil e tenso em função do agravamento do pesadelo do rapaz e da troca de direção, enquanto o terceiro antecipa questões importantes ao colocar o protagonista no epicentro de uma crise de segurança institucional.
No episódio mais recente, a parte rotativa do elenco é trocada e os cenários mundo afora também se alteram, mas tornam a aparecer dinâmicas semelhantes erguidas sobre uma base já conhecida. A analista Heather (Alicia Vikander) é quem faz as vezes de elo possível para Jason na agência, como Pamela Landy (Joan Allen) anteriormente.
Embora seus jogos de poder com o diretor da CIA (Tommy Lee Jones) contribuam para a atmosfera de desconfiança generalizada, seu impacto é restringido pelas escolhas do filme, que se prende excessivamente a planos fechados das expressões preocupadas dos personagens, olhares por cima dos ombros, tremores durante caminhadas apressadas e a uma trilha sonora incessante para construir tensão. Quase não há momentos de calmaria como em “Identidade”, quando o agente ainda tateava no escuro analisando seus vestígios e o raciocínio precedia a ação.
Tendo domínio sobre o produto final, Greengrass opta por variar apenas um ou outro ingrediente sem incorporar novas técnicas à receita
Além disso, falta repertório para construir Bourne como um fato do nosso tempo. É evidente a tentativa de trabalhar as demandas de um mundo pós-Snowden, sobretudo pela presença de Aaron Kalloor (Riz Ahmed), criador de uma rede social envolvido em discussões relacionadas ao direito à privacidade. O personagem, porém, não se livra da condição de acessório e jamais consegue fazer com que a vigilância se torne um perigo real, não apenas componente do clima de paranoia.
No limite, as aparências dessa disputa entre gato e rato promovida por Greengrass sugerem uma complexidade que o filme não carrega de fato — ou, ao menos, não pela primeira vez. Carente de grandes momentos e vítima da incapacidade do diretor em explorar novas camadas da mitologia, o último capítulo da franquia só possui um aspecto ainda obscuro: o próprio Jason Bourne, refém da fórmula que o consagrou.
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