- Cultura 15.jul.2016
“Caça-Fantasmas” aposta na nostalgia, mas não esquece a representatividade
Com provocações direcionadas aos misóginos da internet, Paul Feig mais uma vez transforma um universo dominado por homens em um espaço ocupado por mulheres
⚠ AVISO: Pode conter spoilers
Em 1984, quando ainda era estudante de cinema, Paul Feig compareceu à estreia de “Os Caça-Fantasmas” e, como boa parte do público, se apaixonou pelo filme. Anos depois, já cineasta, recebeu uma oportunidade que parecia imperdível: comandar o terceiro episódio da franquia — o segundo havia sido lançado em 89 — com base em um roteiro aprovado por Ivan Reitman, produtor e diretor do original.
Nessa versão, o grupo liderado por Bill Murray passaria o bastão para uma nova equipe formada por três homens e uma mulher. A oferta acabou recusada, em parte porque Feig não queria que suas personagens simplesmente recebessem as chaves do castelo das mãos dos cientistas conhecidos pela audiência.
Após uma década e meia marcada por uma forte parceria com Melissa McCarthy (com quem trabalhou em seus últimos três filmes) e por investidas divertidíssimas em seriados (além de ter criado “Freaks and Geeks”, sua obra-prima, foi o responsável por episódios de “Arrested Development” e “The Office”), o diretor decidiu começar tudo do zero. Ao lado de Katie Dippold, roteirista de “Parks and Recreation”, reuniu um quarteto formado por algumas das melhores comediantes do planeta para um reboot. Reitman não tardou a dar sua benção.
Seguindo os moldes de trabalhos anteriores, como “A Espiã Que Sabia de Menos” e “As Bem-Armadas” (“Spy” e “Heat”, nos títulos originais), Feig mais uma vez transforma um universo dominado por homens em um espaço ocupado por mulheres. Novamente protagonista, McCarthy ganha a companhia de Kristen Wiig, que retorna ao centro de uma comédia cinco anos após “Missão Madrinha de Casamento” (ou “Bridesmaids”), e de duas das mais interessantes componentes do “Saturday Night Live” atualmente, Leslie Jones e Kate McKinnon.
De modo democrático, há espaço para que todas elas brilhem. McCarthy é menos vibrante do que em outros projetos, mas seu tempo cômico segue ótimo. Já Wiig demonstra sua habilidade sobretudo quando interage com o personagem de Chris Hemsworth, um secretário burro e extremamente ineficiente que, sem a atriz, se resumiria a uma piada de uma nota só.
Jones, por sua vez, é capaz de contornar até mesmo as falhas de construção da personagem com seu carisma inigualável e sua enorme versatilidade — além de subir o tom sempre que necessário, é ela quem melhor explora o próprio físico em prol do humor.
De modo democrático, há espaço para que todas as protagonistas brilhem
Ainda assim, o grande destaque é McKinnon, cuja insanidade ganha o filme por completo a cada aparição. No papel de Holtzmann, a engenheira responsável pelos equipamentos das Caça-Fantasmas, ela mostra um amplo repertório que engloba desde sua postura (a maneira de sentar, andar e até mastigar) até sua fala (especialmente ao explicar conceitos científicos em ritmo frenético para as demais). Sua energia constante ao longo do filme é recompensada no desfecho, e é uma pena que, ao menos por enquanto, não a vejamos mais em modo super-heroína.
“Caça-Fantamas” funciona melhor nos momentos em que reúne suas atrizes e permite que elas mergulhem no material de maneira mais livre, pela via do improviso
Não se trata, contudo, de um problema exclusivo da personagem. Pouco hábil na condução das sequências mais agitadas do terceiro ato, Feig desperdiça uma série de oportunidades de fazer humor a partir de detalhes da ação para se concentrar somente nas reações mais óbvias. A reprodução quase exata de frases, cenários e planos do filme original, em especial nas interações com os fantasmas, gera a dúvida: trata-se de uma preocupação exagerada com certo referencial ou de uma inventividade que até existe, mas esbarra nos limites do próprio material? A resposta passa um pouco pelas duas coisas.
Nesse sentido, o novo “Caça-Fantasmas” funciona melhor nos momentos em que reúne suas atrizes e permite que elas mergulhem no material de maneira mais livre, pela via do improviso ou buscando o tom e o timing certos para cada piada. Inseridos entre participações pontuais do elenco principal anterior (exceção feita a Harold Ramis, também roteirista daquele filme, falecido em 2014) e reaparições de locações conhecidas, são os trechos menos vinculados à mitologia da série aqueles que brilham verdadeiramente, se transformando em mais do que acenos obrigatórios a um público mimado.
Pouco hábil na condução das sequências mais agitadas, Feig desperdiça uma série de oportunidades no terceiro ato
O principal desafio é estrutural. Em seu esqueleto, o reboot repete as batidas de “Os Caça-Fantasmas” sem maiores problemas. Por outro lado, a narrativa sofre pela dificuldade em enfileirar os esquetes, saltando de cena em cena sem que o desenvolvimento e o humor se estabeleçam por completo. Além disso, Feig e Dippold perdem tempo preparando o terreno para acontecimentos que nunca entregam o prometido, muito porque os roteiristas parecem não saber o que fazer com os elementos à disposição. São exemplos disso a criatura misteriosa a que o filme dedica longos minutos no início da projeção, a sequência de dança movida do terceiro ato para os créditos finais, e o próprio papel de Murray, desperdiçado.
Ainda que faltem ao longa momentos originais memoráveis, o que de certa maneira parece reflexo desse compromisso com o olhar sempre no retrovisor, outras questões dão motivos de sobra para comemoração. A atenção para a amizade entre as personagens, a ausência de um interesse amoroso dentro dos padrões de Hollywood e as alfinetadas direcionadas aos misóginos da internet são evidências tímidas de um movimento que é necessário e urgente.
Look at these childhoods that have been ruined! pic.twitter.com/DBUX0swyvS
— Zach Heltzel (@zachheltzel) July 11, 2016
Não se trata de um ato revolucionário de equipe e elenco, mas de uma manifestação de consciência que é resultado de décadas de avanço em termos de representatividade — o próprio Feig provavelmente teria feito um filme bastante diferente se não tivesse rejeitado o convite de Reitman anos atrás. “Caça-Fantasmas” está longe de ser perfeito e é, antes de tudo, produto de uma indústria ainda conservadora sob muitos aspectos. Mas sua existência importa, e fotos como essa acima pesam mais na avaliação do que o número de avaliações negativas infantilmente feitas ao trailer do filme no YouTube, recorde histórico do site.
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