- Cultura 20.fev.2016
“O Quarto de Jack”: Um drama convencional ou símbolo da mudança da indústria?
Diretor Lenny Abrahamson inscreve mais um trabalho preciso na proposta da produtora A24
⚠ AVISO: Pode conter spoilers
Em pouco menos de três anos, a distribuidora A24 se tornou um dos elementos mais chamativos da indústria cinematográfica nos Estados Unidos. O lançamento de filmes como “Spring Breakers”, “Sob a Pele”, “Ex Machina”, “O Fim da Turnê” e, finalmente, “O Quarto de Jack” confirma a proposta da companhia: ocupar uma lacuna do mercado, em tempos recentes bastante segmentado entre produções de orçamentos minúsculos e os principais blockbusters de cada temporada, realizando dezenas projetos que não se incluem nessa descrição, ou seja, os intermediários, de olho nos serviços de streaming, longe das salas de cinema.
Muito já se falou sobre o potencial quase revolucionário dessa empreitada, que poderia salvar a lavoura ou não mudar tanto as coisas em Hollywood, e, embora as análises de conjuntura sejam frutíferas e necessárias, olhar para os filmes parece mais importante do que se posicionar de um lado ou de outro do debate — ou, como o crítico Andrew Sarris dizia, é preciso prestar atenção nas árvores em vez de se perder na floresta.
Sexto longa dirigido por Lenny Abrahamson (de “Frank” e “What Richard Did”), “O Quarto de Jack” se inscreve com precisão na proposta da A24. Trata-se de um drama de médio porte, estrelado por uma atriz habituada ao circuito alternativo americano (o exemplo mais claro é “Short Term 12”) e baseado em um celebrado livro, ingredientes mais do que capazes de criar um pequeno fenômeno, como provam as quatro indicações ao Oscar.
No meio do caminho, porém, surge uma questão fundamental. Os aspectos citados acima são anteriores ao filme, pertencem mais à divulgação do que à obra propriamente dita. Assim sendo, o que se vê na tela sustenta o carimbo de autoria aparentemente determinado pelo selo da distribuidora? Seria Abrahamson um cineasta capaz de escapar da lógica pré-estabelecida e entregar algo verdadeiramente distinto? “O Quarto de Jack” oferece argumentos para ambos os lados.
Desde a premissa, é possível perceber que existem dois filmes aqui. O primeiro deles é um pesadelo; o segundo, um sonho ruim — e isso é um elogio (comedido, mas elogio). Na porção inicial do longa, o personagem do título (Jacob Tremblay) e sua mãe, Joy (Brie Larson), são mantidos aprisionados em um só cômodo por um sequestrador. Ele está ali desde o nascimento; ela, há sete anos. Quando alcançam a liberdade, tudo muda de figura e nasce um segmento completamente distinto em termos de tom e forma.
Desde a premissa, é possível perceber que existem dois filmes aqui: O primeiro deles é um pesadelo; o segundo, um sonho ruim
A partir do roteiro de Emma Donoghue, também autora do romance original, Abrahamson inicialmente opta por uma abordagem um tanto segura, que aposta no balanço entre a inocência de Jack e a crueldade da situação. Nesse espaço reduzido, a câmera está quase sempre em movimento, em panorâmicas curtas que geram claustrofobia e em trechos nos quais o tremor produz tensão.
É um trabalho de restrição: naquele universo, gritar é inútil, falar sobre o que existe fora dali é proibido, e se desdobrar para manter o menino seguro é mais que necessário. O diretor filma como se estivesse com as pernas tremendo de ansiedade e quisesse controlá-las, fazê-las parar a todo custo. Essa tentativa de autocontrole é uma marca bastante forte, porque traz para o campo da narrativa sensações particulares de seus personagens.
Sair do pesadelo, por sua vez, é um processo conturbado. A concepção de mundo de Jack é frágil, quebradiça, e se rompe, ainda que não por completo, quando ele vê a luz do dia. A descoberta de uma nova realidade, registrada de maneira um tanto lírica apesar do risco existente, se contrasta com o enclausuramento de Joy. Atordoado, o protagonista insiste em buscar lugares familiares (a mãe, a cama, o quarto — tudo aquilo que ele conhece). Tremblay, que por vezes parece uma versão menos irritante e histérica do garoto de “Tão Forte e Tão Perto”, sustenta bem o papel, mas Abrahamson abusa da câmera subjetiva, tentando assumir esse olhar infantil, e acaba por tirar força da atuação.
Quanto a Joy, cabe explicar a farsa criada, se confrontar com o ineditismo desse universo expandido e remediar danos. O filme não funciona tão bem quando vira um jogo de culpabilização entre ela e o restante da família (com destaque para a mãe, interpretada por Joan Allen), mas ao menos oferece material para Larson, atriz de grande qualidade, trabalhar.
É no caminho percorrido pelos personagens que “O Quarto de Jack” alcança seu maior valor
Os personagens ganham energia, sobretudo, quando se defrontam com um ambiente que é também opressor (a claridade, o medo de altura) e claustrofóbico (a presença esmagadora da mídia). A partir desse momento, a câmera se aquieta, enquadra à distância e em planos fixos, deixando que a tensão se construa pelos gestos e olhares — e também não-olhares, na figura do avô, vivido por William H. Macy, que não consegue olhar o menino nos olhos.
Por outro lado, “O Quarto de Jack” se mostra menos inspirado na escolha de seus símbolos. São convencionais, para não dizer banais, as referências a “Alice no País das Maravilhas”, o uso de LEGO como metáfora para construção e desconstrução, e mesmo o nome Joy (Alegria, em português), dito em voz alta apenas quando ela se livra do cativeiro.
Dentre as imagens evocadas, a que melhor funciona é a das árvores, que o protagonista considerava irreais, vistas em momentos-chave como indicativo da liberdade conquistada. É no caminho percorrido pelos personagens, porém, que o filme alcança seu maior valor: no fim, é o garoto quem enuncia as palavras com confiança e a mãe quem fala baixinho, sentindo-se o mais confortável possível, mesmo que todo conforto seja pouco diante de um pesadelo tão assustador.
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