- Cultura 21.dez.2015
BB-8, a alma de “Star Wars” no novo “Star Wars”
Como o novo dróide representa a decisão criativa fundamental para o sucesso de “O Despertar da Força”
⚠ AVISO: Contém spoilers menores
Quando George Lucas cometeu uma nova trilogia de “Star Wars”, no começo dos anos 2000, uma crítica recorrente era de que faltava a alma. O espírito dos três primeiros filmes não se fez presente, pelas inúmeras razões que já foram discutidas incessantemente pela crítica e pelos fãs.
Temos muitos motivos para criticar os episódios I, II e III, principalmente de que são irrelevantes para a saga, mas o que mais me incomoda é como são higiênicos, plásticos e artificiais. Eu sei, você já esta aí gritando outros palavrões, mas vamos deixar de lado os roteiros e furos, as más decisões narrativas tomadas por Lucas, e vamos focar apenas no visual.
George Lucas tinha feito os episódios IV, V e VI na unha, como não querer experimentar o maravilhoso mundo dos efeitos digitais?
A imagem acima é uma piada, claro. Mas sabemos que o criador da franquia estava entusiasmado com computação gráfica, certo? Compreensível. Ele tinha feito os episódios IV, V e VI na unha, como não querer experimentar o maravilhoso mundo dos efeitos digitais? Some a isso um senhor cheio de poder e auto-suficiente, com um legado que impediria qualquer um de contestar as ideias do chefe.
Não podemos acusá-lo também de não ter tentado manter algo dos efeitos práticos de “O Império Contra-Ataca”. O Yoda original de “A Ameaça Fantasma” era um boneco. Horroroso, é verdade. 30 anos de evolução da humanidade depois, e o Yoda do século XXI parecia uma meia amassada tirada da gaveta. Bem menos crível e simpático que seu antecessor (ou sucessor, dependendo do ponto de vista).
Era tão ruim, que Lucas abandonou a ideia e Yoda também virou digital nos filmes seguintes, inclusive na refação de “A Ameaça Fantasma” para a versão DVD/Blu-ray anos depois.
Não é força de expressão dizer que a Industrial Light & Magic concebeu a saga em um ferro velho
Avancemos uma década no tempo depois de “A Vingança dos Sith”. A Disney compra a Lucasfilm e temos J.J. Abrams fazendo “O Despertar da Força”. A tecnologia evoluiu ainda mais, com filmes inteiros sendo feitos com fundo verde. Aliás, alguns nem isso. Tenho a impressão de que Zack Snyder faz seus filmes sem nem levantar da cadeira (Eu gosto de “Homem de Aço”, diga-se de passagem).
Ainda que com essas facilidades ao alcance de milhões de dólares, a primeira decisão criativa de Abrams e da Disney foi resgatar o aspecto natural, sujo e real do qual nasceu “Star Wars”. Não é força de expressão dizer que a Industrial Light & Magic concebeu a saga em um ferro velho.
Tal universo sucateado – que rendeu o Oscar de Direção de Arte ao designer de produção John Barry (que morreu cedo) em 1978 – está presente em “O Despertar da Força” de muitas maneiras. Até uma das protagonistas, Rey, é catadora de lixo, veja só. É através da construção de cenários de verdade, com serrote e martelo (é como eu imagino), de efeitos práticos, de explosões com pólvora e combustão reais, de roupas sujas e desgastadas, de veículos amassados e arranhados pelo uso. Ou seja, aquela índole original de Barry de ir caçar elementos de cena em aviões abandonados (isso, um catador de lixo).
Porém, essa fundamental decisão criativa que impele “O Despertar da Força” tem um embaixador. Ele atende pelo nome de BB-8.
O sétimo filme da saga tem muitas qualidades além dessa. É divertido, nostálgico, emocionante, empolgante. “O Despertar da Força” consegue ser uma homenagem reverente ao filmes clássicos ao mesmo tempo que introduz novos e interessantes elementos. É tudo o que a trilogia original nos mostrou, exceto a nostalgia, claro.
O filme de J.J. Abrams carrega sua alma – aquela que faltou nos prólogos de Lucas – condensada em um robô redondo
Mas o filme de J.J. Abrams carrega sua alma – aquela que faltou na segunda trilogia – condensada em um robô redondo. Muitos podem confundi-lo como um mero alívio cômico ou um peça de merchandising para vender brinquedos. Mas é ali, naquele conjunto de movimentos reais e sons, que vive o espírito de “Star Wars”, tomando conta, tendo participação vital e influenciando tudo o que acontece ao seu redor.
Assim foi com R2-D2 por várias gerações. Crescemos com esse ícone, que sempre teve apelo para todas as idades, e que além do humor desempenhava importante função narrativa.
BB-8 é o R2-D2 de Abrams, mas com poder de atração quintuplicado pelo seu design e atitude (foi mal R2). É o Wall-E live action. O exemplo maior dessa busca de Abrams pelo que é real e orgânico, trilhando com sucesso o mesmo caminho aberto pelo adorável Artoo. O fator “wow” durante a Star Wars Celebration 2015 demonstra isso. Foi ali que ficou comprovado que o novo dróide não era CGI.
BB-8 não é uma criança, nem um mascote, ele tem uma missão
Posso apostar que o despertar (sem trocadilho) desses sentimentos no público não seria possível se Abrams tivesse simplesmente mandado o pessoal da computação gráfica resolver. “Me entrega aí um robô que gira até as 18h30. Sem atrasos!”.
Desenvolvido pelo departamento de Creature Shop da Lucasfilm, com metal e chips eletrônicos, BB-8 é um elemento tangível, mecânico, ocupando seu próprio espaço físico no set de filmagem. A cena em que Finn tenta carregar o dróide nos braços é particularmente marcante nesse sentido. O espectador sente, junto com ele, o peso do personagem. Da mesma forma quando ele começa a rolar pela Millenium Falcon.
Vale dizer que não é apenas a sua presença que conta, é claro, mas também as emoções que pode transmitir com tão simples elementos. BB-8 não é uma criança, nem um mascote, ele tem uma missão. Pode olhar assustado, bravo, procurar algo distante, se mostrar feliz ou triste com todo um vocabulário de movimentos e sons (criados com ajuda, veja só, do comediante Bill Hader).
Do rascunho para a tela (e para as lojas)
Certamente inspirado pelas artes conceituais de Ralph McQuarrie, feitas lá bem antes de “Star Wars” conquistar o universo, J.J Abrams veio com um rabisco de como BB-8 poderia ser: duas bolas uma em cima da outra, com um ponto como olho.
Christian Alzmann, concept designer da Lucasfilm, avançou com a ideia, enquanto brincava com bolas de futebol para chegar no layout final. Esse rascunho à direita foi feito por Alzmann em agosto de 2013, note que a cabeça flutuante ainda não tinha sido resolvida.
Transformar o desenho final em realidade foi outra história, comandada pela equipe do artista de efeitos visuais Neal Scanlan (vencedor do Oscar quando fez os bichos animatrônicos de “Babe, O Porquinho Atrapalhado”).
Scanlan produziu várias versões de BB-8. A primeira delas era estática, manuseada apenas para closes. Dois outros modelos eram dotados de rodas, que faziam o dróide ser operado via controle remoto, e outro que podia ser imediatamente ser jogado em uma cena sem nunca cair no chão, tipo um boneco joão-bobo. Por fim, a versão controlada pelos titeriteiros Dave Chapman e Brian Herring, essencial para as filmagens com os atores em cena. Um mexia a cabeça e o outro o corpo, criando dessa forma as nuances e atitudes do robô.
Os detalhes obviamente nunca foram revelados completamente, mas os pontos começaram a ser conectados quando a Disney revelou a Sphero como produtora do brinquedo de BB-8.
A startup foi uma das que recebeu investimento quando a Disney realizou seu primeiro programa de aceleração de empresas em 2014. Bob Iger, CEO da Disney, atuou inclusive muito próximo da Sphero como mentor.
O produto original deles, homônimo, era justamente uma bola robótica, controlada via aplicativo no smartphone. Já tínhamos dessa forma mais da metade do BB-8, faltava a cabeça – onde realmente está o segredo de cair o queixo.
Quando Bob Iger mostrou imagens e vídeos ainda sigilosos para a Sphero, eles tiveram 10 meses para dar vida a um BB-8 de brinquedo. Não foi uma simples adaptação, já que precisaram refazer os circuitos, compatíveis com Bluetooth para economizar energia e, claro, desenvolver a cabeça flutuante.
BB-8 é o brinquedo do ano, e a Sphero não está tendo capacidade para suprir a demanda
O site howbb8works.com demonstra o mecanismo do BB-8, baseado em robótica holonômica. E revelam, surpreendentemente, que a Disney já tinha registrado patente similar em 2010, dois anos antes de comprar a Lucasfilm, e quatro anos antes de investir na Sphero. Será que J.J. Abrams teve outra inspiração então? Ou a ideia veio direto da Disney?
Fato é que o BB-8 da Sphero é o brinquedo do ano, e eles não estão tendo capacidade para suprir a demanda. Para a “mágica” envolvida, até que custa barato: 149 dólares.
O dróide que a nova geração estava procurando (e não sabia)
Eu sempre acreditei que George Lucas, lá no fundo, deve ter se arrependido de matar Yoda, Palpatine e Darh Vader em “O Retorno de Jedi”. Tudo em uma tacada só. Sabemos que o próprio criador da saga não aguentava mais, e estava decidido a amarrar todas as pontas soltas para dar fim ao que começou.
O arco se fecha, claro, e isso pode ter sido fundamental para o sucesso duradouro de “Star Wars”. Mas, convenhamos, racionalmente era melhor deixar margem pro Vader voltar de alguma forma. Um ícone não podia sumir do mapa dessa forma (ainda que provavelmente ele esteja presente no spin-off “Rogue One” no ano que vem)
“O Despertar da Força” prova o enorme potencial da franquia em gerar novos e cativantes personagens. BB-8 é só o exemplo mais óbvio.
Porém, depois de “O Despertar da Força” estou convencido do enorme potencial da franquia em gerar novos e cativantes personagens. BB-8 é só o exemplo mais óbvio. É o espírito imaginativo de “Star Wars” concentrado, aquele que Lucas não encontrou em seus três últimos filmes.
Da mesma maneira que olhamos de forma nostálgica pra R2-D2 e C-3PO, assim vai ser BB-8 para a nova geração que acabou de assistir “Star Wars” no cinema pela primeira vez. Marca indelével de um produto cultural onipresente e a prova física de que este é o dróide que nós (e George Lucas) estávamos procurando desde 1983.
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