- Cultura 23.nov.2015
Com “A Bela e a Adormecida”, Neil Gaiman moderniza o clássico conto de fadas
Ilustrado por Chris Riddell, obra mostra que mulheres não precisam - necessariamente - serem resgatadas por homens
“The Sleeper and the Spindle” foi lançado este ano no exterior e chegou ao Brasil pela Editora Rocco como “A Bela e a Adormecida”. É uma história ilustrada, no mesmo estilo de “João e Maria“ (de Neil Gaiman e Lorenzo Mattotti), que revisita o conto da Bela Adormecida e faz algumas mudanças bastante significativas.
Os anões, que a gente reconhece da história da Branca de Neve, estão em busca do tecido mais bonito para o vestido de casamento da Rainha e ouvem falar de um lugar em que a maldição do sono tomou conta. Todos dormem um sono pesado há mais tempo do que a memória alcança. Ao contar isso para a Rainha, ela decide adiar o casamento e resolver o problema com as próprias mãos. Há todo o preparo da história falando que é um lugar difícil de chegar, que muitos morreram tentando e tudo o mais, mas a Rainha vai mesmo assim.
Essa Rainha, de longos cabelos negros e pele branca, se assemelha muito à Branca de Neve, ainda que seu nome não seja dito. Em dado momento, o narrador nos conta que “a Rainha tinha um nome, mas ultimamente as pessoas só a chamavam de Vossa Majestade. Os nomes estão meio em falta nessa história”. Complete as lacunas como você quiser.
“Existem escolhas, pensou ela quando já estava sentada ali por algum tempo. Existem sempre escolhas.”
A Rainha está com o casamento marcado, mas parece em dúvida. Não a respeito do que precisa fazer – ela sabe que é esperado que ela se case e tenha filhos -, mas não sabe como se sente a respeito.
Em uma semana estarei casada. Isso parecia ao mesmo tempo improvável e extremamente definitivo. (…) Ela podia ouvir os carpinteiros no prado ao pé do castelo fazendo os bancos que permitiriam o seu povo a assistir o casamento. Cada golpe de martelo soava como a batida de um coração.”
O núcleo do livro é todo feminino e as mulheres são ótimas nas mãos de Gaiman
A agonia dela está presente em cada linha pensada ou falada. Tanto que ela não hesita quando recebe esse chamado para a missão como Rainha. Ela adia o casamento, veste a cota de malha, pega sua espada e parte em direção ao Leste em cima de um cavalo.
O núcleo do livro é todo feminino e as mulheres são ótimas nas mãos de Gaiman. A personagem inspirada na Branca de Neve está passando por um período de dúvidas, mas entende o que precisa fazer como Rainha. E aqui é legal porque nas histórias tradicionais a Rainha sempre ordena que os outros cumpram suas ordens, e aqui é a Rainha quem parte em busca da solução.
O tal do beijo
Todo o buzz em cima da cena do beijo só mostra como isso ainda é anormal para muita gente. Para quem não acompanhou o falatório, há um quadro em que a Branca de Neve beija a Bela Adormecida. E o mundo parou por causa disso. Pessoas condenaram o Gaiman por “tirar a inocência de uma história infantil”, por faltar criatividade para criar uma nova história ao invés de “estragar a original”, entre outras coisas.
Para falar a verdade, essa cena do beijo é bonita e importante para a narrativa, mas não significa o que todo mundo acha que significa. E isso não tira o mérito dos autores porque afinal de contas eles poderiam ter ido pelo caminho clássico do príncipe que beija a princesa e a acorda para uma vida eterna de sorrisos e cerquinhas brancas. Mas não. Eles mudaram o caminho. E como o Neil Gaiman comentou em uma entrevista ao Telegraph:
Não tenho paciência com histórias em que mulheres são resgatadas por homens. Você não precisa ser salvo por um príncipe”
A leitura mais clara é o amadurecimento e a busca por algo que nos satisfaz (e isso pode ser aplicado em qualquer esfera da nossa vida). A Branca de Neve está passando por um período difícil e sair em busca da Adormecida é apenas um pretexto para fugir de algo que ela não quer fazer e reunir coragem para trilhar outros caminhos. Claro que essa é apenas uma das várias interpretações, já que a beleza da literatura é poder extrair para si o que é mais relevante no momento.
O melhor trabalho de Riddell
“A Bela e a Adormecida” é uma obra muito bonita, delicada e ilustrada de forma belíssima. Ao mesmo tempo em que mantém os elementos originais dos contos de fada, traz coisas completamente diferentes para as personagens. Com relação às ilustrações, este é o melhor trabalho de Chris Riddell até hoje.
A Editora Rocco poderia ter feito a edição mais simples possível para o livro, mas topou seguir o projeto gráfico original e brindou os leitores com uma edição de altíssima qualidade. Capa dura, sobrecapa de papel transparente e todas as ilustrações em preto, branco e dourado.
A Disney amaciou os contos para que as crianças pudessem extrair metáforas delas, e Neil Gaiman e Chris Riddell atualizaram as linhas para algo moderno
Muitas vezes os detalhes em dourado ressaltam elementos importantes da trama, como uma amarra sufocante em um vestido de noiva ou os olhos de um lobo. A quantidade absurda de detalhes nos traços do Chris Riddell chega a deixar o leitor entretido mais tempo com as ilustrações do que com a história.
Por fim, é fato conhecido que os contos de fadas registram um pedaço do tempo da nossa humanidade. Refletem dificuldades, valores e costumes enquanto contam uma história que pode nos ajudar em vários momentos da vida. A própria Disney amaciou os contos para que as crianças pudessem extrair metáforas delas, e Neil Gaiman e Chris Riddell atualizaram as linhas e criaram algo novo e diferente para nós. Algo atual.
E que merece ser lido por você. :)
FICHA TÉCNICA
Título: A BELA E A ADORMECIDA
Autor: Neil Gaiman
Ilustrador: Chris Riddell
Tradução: Renata Pettengill
Editora: Rocco
Páginas: 70
Raquel Moritz é publicitária, autora do Pipoca Musical
e, assim como Chesterton, acredita que contos de fadas contam a pura verdade.
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