- Cultura 1.out.2015
“Perdido em Marte” é um dos blockbusters mais espertos e divertidos do ano
Ridley Scott abandona a austeridade de seus últimos filmes e se beneficia da leveza do bestseller escrito por Andy Weir
⚠ AVISO: Contém spoilers
“Perdido em Marte” é um grande indício de que alguma dose de leveza faz bem a Ridley Scott. Dono de uma carreira inconsistente, marcada por sucessos estrondosos e fracassos retumbantes, o diretor abandona a austeridade de seus últimos projetos — principalmente “Êxodo: Deuses e Reis” e “O Conselheiro do Crime”, de méritos que não resultaram em ampla aceitação de público e crítica — em prol de uma aventura preocupada mais em entreter do que em provocar reflexões filosóficas. A mudança de rumo funciona em todos os seus componentes, resultando em um dos longas mais interessantes do circuito anual de blockbusters.
Como os títulos brasileiro e original (“O Marciano”, em tradução literal do livro de Andy Weir) anunciam, há alguém isolado no planeta vermelho. Interpretado por Matt Damon, Mark Watney é um astronauta deixado em Marte por sua equipe após ser atingido por uma antena durante uma severa tempestade. Considerado morto, ele precisa encontrar formas de sobreviver naquele ambiente inóspito para se comunicar com a NASA e solicitar resgate.
Ridley Scott faz uma aposta certeira ao comprimir o tempo e definir tudo em pequenos momentos, através de gestos e falas igualmente breves
De início centrado quase exclusivamente no protagonista, o filme é hábil ao construir sua personalidade, o que permite que o espectador aceite a plausibilidade de uma missão no mínimo improvável e abrace suas diversas possibilidades. Logo em sua primeira cena, ainda ao lado dos companheiros, o personagem sugere uma manobra arriscada, que utilizaria outros equipamentos, para evitar que a plataforma de lançamento tombe. Em um segundo momento, já abandonado depois do acidente, ele é ágil ao cortar os cabos que prendem seu corpo a uma antena. Assim, de maneira simples, o rapaz é definido como alguém prático, racional, decidido e de raciocínio rápido — todas características fundamentais para o caminhar da trama.
É essa economia que guia todo o filme. Scott faz uma aposta certeira ao comprimir o tempo e definir tudo em pequenos momentos, através de gestos e falas igualmente breves. A reação imediata de Watney, por exemplo, é conduzida dessa maneira: um “fuck!” sinaliza seu desespero; um curto depoimento em vídeo indica sua compreensão da situação; uma fala (“Eu não vou morrer aqui”) revela sua decisão. O que se segue é a mesma lógica de encadear problemas e soluções. Em alguns trechos, sobretudo quando os eventos na Terra passam a ser focados, a sensação é de que a estrutura vacila e perde seu foco por acelerar demais ao apresentar respostas, mas o ritmo volta ao normal quando se estabelece o contato entre as duas partes e uma passa a alimentar os acontecimentos da outra.
Visualmente, a estratégia se repete. O cineasta, auxiliado pelo trabalho do diretor de fotografia Dariusz Wolski, articula planos definidores o tempo todo, mesmo quando seus personagens desempenham apenas atividades corriqueiras. É o caso, por exemplo, do momento em que a Comandante Lewis (Jessica Chastain) volta para a nave, deixando o colega para trás. Filmada de baixo para cima, a cena remete à dualidade entre vida e morte que permeia a narrativa — ela ascende aos céus, ele fica preso no inferno. Em uma perspectiva mais ampla, essa associação religiosa aparece também no par de sequências em que 1) o sobrevivente queima um crucifixo para produzir fogo, o que aumenta suas chances, e 2) grita por Deus quando enfrenta problemas com sua colheita, o que, embora momentaneamente, delimita essa sobrevida.
O mesmo pode ser dito sobre três cenas — talvez as únicas do filme — em que o verde é dominante. A primeira é aquela em que um broto surge em Marte, símbolo de esperança, seguida imediatamente pela segunda, no funeral do astronauta, em um cemitério gramado e vibrante. A relação entre vida e morte aqui explicitada ainda ganha ecos no fim do longa, quando um parque florido é cenário para que o protagonista contemple sua própria existência.
O balé espacial do último ato é registrado com enorme fluidez, ainda que o diretor pouco aproveite a imensidão e o potencial visual do próprio planeta
Em termos de movimento, os artifícios utilizados por Scott para levar a trama adiante também são bem óbvios, priorizando a contenção. Inicialmente, a câmera se aproxima lentamente do rosto de Watney enquanto ele busca soluções; em seguida, o segue pelas costas, segurada nas mãos, enquanto ele reconhece o ambiente ao seu redor; e, por fim, passeia pela estação para que ele e o próprio espectador identifiquem os recursos disponíveis na missão. O exibicionismo estético só ganha força quando o restante do universo além-atmosfera é explorado. O balé espacial do último ato é registrado com enorme fluidez, mas chega a incomodar pelo fato de que o diretor pouco aproveita a imensidão e o potencial visual do próprio planeta.
É preciso reconhecer, por outro lado, que esse não é o aspecto central de “Perdido em Marte”. Ainda que trabalhe elementos em comum com projetos recentes como “Interestelar”, “Gravidade” e mesmo “Tomorrowland: Um Lugar Onde Nada é Impossível”, o enfoque se dá mais nos desafios, individualmente, do que em qualquer outra coisa. Nesse sentido, os acertos de Scott são vários. Sem se render ao melodrama fácil, o filme traz as interações familiares e afetivas como elemento paralelo, apresentado de modo pontual para estabelecer determinadas questões — a solidão de Watney ao falar pela primeira e única vez de seus pais, por exemplo.
Auxiliado ou não por figuras externas, é o protagonista quem deve fazer o maior esforço para permanecer vivo, e Ridley Scott compreende isso.
Parece digno de nota, ainda, como se constrói o vínculo entre a técnica empreendida nos desafios e o caráter psicológico do protagonista. Desviando-se de seguir em um caminho meramente procedimental, o roteiro permite que seu estado emocional se revele por meio desse passo a passo um tanto mecânico. Uma amostra disso é a pausa que o astronauta se dá para fazer a barba antes de seguir em frente, refletindo ao se encarar no espelho entre um apertar de parafusos e outro. Trata-se de uma cena isolada que indica mais sobre sua condição do que qualquer narração ou monólogo explicativo. Força semelhante carregam os segmentos de humor, que aliviam a tensão e o impacto emocional da ótima trilha de Harry Gregson-Williams por meio de faixas dançantes dos anos 90, uma maneira descontraída de aproximar o rapaz de sua tripulação e de uma vida normal.
Finalmente, a despeito dos problemas mencionados, a transição constante entre a Terra e Marte, em especial após o ato inicial, possui valores interessantes. “Prometheus”
, do mesmo diretor, se desdobrava sobre os erros seguidos de sua tripulação, ao passo que aqui os equívocos, que aparecem mais em solo terrestre do que no espaço, surgem sempre na busca racional por soluções. A mudança de abordagem é significativa porque oferece uma nova visão sobre histórias similares em muitos fatores: os gritos de “eureka” agora surgem não apenas dos personagens em risco, como também daqueles que, a minutos-luz de distância, buscam compreender suas ações. Deste modo, o roteiro se centra no embate entre o impacto de decisões coletivas e individuais sem perder de vista as diferenças de pressão e peso de cada uma das situações. Auxiliado ou não por figuras externas, é o protagonista quem deve fazer o maior esforço para permanecer vivo, e Scott compreende isso.
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