- Cultura 31.ago.2015
“O Homem Irracional” é mais um trabalho medíocre de Woody Allen
Mesmo com um grande filme aqui e acolá, o diretor mantém a irregularidade recente de sua carreira
⚠ AVISO: Pode conter spoilers
Ao discutir qualquer filme recente de Woody Allen, é praticamente inevitável ser levado a comentar a irregularidade de sua carreira nos últimos anos. Excetuando um grande filme aqui e outro acolá, parece haver uma tendência do cineasta a insistir em projetos que, escritos pelas mãos de outros, seriam facilmente deixados de lado. É o caso também de “O Homem Irracional”, um trabalho que incorpora em sua plenitude essa mediocridade, trazendo alguns aspectos positivos e outros tanto deploráveis, todos eles muito próprios do histórico de seu realizador. O que talvez destaque este exemplar dos demais, de todo modo, é a possibilidade de enxergar no próprio filme, em termos de narrativa, quase tudo o que se diz com relação ao método de trabalho e os resultados obtidos pelo nova-iorquino.
A trama gira em torno de Abe Lucas (Joaquin Phoenix), um professor universitário em crise que procura uma razão para viver. Recém-chegado em um novo campus, entre um gole e outro de uísque, ele se envolve tanto com uma colega, Rita (Parker Posey), quanto com uma aluna, Jill (Emma Stone), confirmando a fama de frequentemente se relacionar com mulheres e a fraqueza pela bebida.
O principal traço de sua personalidade, porém, é de natureza existencialista: ele se tornou um pessimista incorrigível, completamente desiludido e atacado por picos de ansiedade após um traumático evento — a morte de seu melhor amigo ou a infidelidade e posterior separação da esposa, de início não se sabe ao certo. E é justamente essa característica que motiva os maiores acontecimentos, incluindo as viradas de roteiro, e orienta as discussões que o diretor-roteirista pretende colocar em prática por meio do diálogo.
Abe leciona filosofia. Ao discutir Heidegger, Kierkegaard e Sartre, entre outros, dá voz a muitas das questões que sempre interessaram a Allen, no cinema, no teatro e na literatura. No entanto, diferente de outros de seus protagonistas (como Owen Wilson em “Meia-Noite em Paris”, para citar um exemplo mais recente), Phoenix não personifica o diretor. À parte trejeitos como a inquietação ao falar sobre temas da vida cotidiana e a predileção por autores renomados, o que o ator faz é se distanciar dele, tornando seu personagem mais intenso ao impor seu ritmo e rejeitar, de certa maneira, o tom habitual do texto dos protagonistas do cineasta. Ele, um acadêmico diferente dos demais e dono de uma negatividade menos cômica, mais carregada e sombria, definitivamente não pertence a este universo — o que é ótimo, dado que seu personagem é definitivamente um outsider.
Por outro lado, é interessante que sua marca mais importante possa também ser atribuída a “O Homem Irracional” como um todo. Ambos sofrem de um grave problema de identidade. Abe — mergulhado na autodestruição — e o filme — perdido entre o romance água-com-açúcar, a relação entre professor e aluna, o triângulo amoroso, o drama de um personagem depressivo e o suspense criminal — não sabem bem por que existem, então vagam entre discurso e ação sem um rumo bem definido. Essa indecisão, mencionada pela mãe de Jill (Betsy Aiden) em certo momento, diz muito sobre o próprio Allen, que parece ter se tornado um diretor que com frequência se vale de uma formatação básica para esconder problemas graves de conteúdo, e que só se livra deles ao assumir seu lado mais extraordinário, como nos casos de “Blue Jasmine”, “Vicky Cristina Barcelona” e “Match Point”, neste século.
“O Homem Irracional” traz alguns aspectos positivos e outros tanto deploráveis, todos eles muito próprios do histórico de seu realizador
Quando decide ser mais “Crimes e Pecados” e menos “Magia ao Luar”, contudo, o filme parece se encontrar. Trata-se de uma boa obra de mistério, com alusões curiosas a Alfred Hitchcock, e uma razoável/dispensável peça de romance. Evidentemente, este é um problema, uma vez que a trama caminha por dois terços de sua duração apenas flertando com o suspense, se decidindo apenas no ato final. Assim, embora o cinismo do protagonista seja uma constante, pouco se extrai de suas interações com os demais personagens, muito diferentes dele.
É somente quando o diretor incorpora esse caráter fora do comum à narrativa, para além da didática narração em off, que as coisas passam a fluir da maneira mais intrigante, subvertendo imagem e discurso, como nas sequências em que Abe finalmente contempla as possibilidades e a alegria da vida após um ato de crueldade. O contraste entre os dois elementos e a forma como o rapaz lida com a situação conferem energia ao filme, sobretudo porque exigem reações das demais figuras em cena, o que finalmente dá propósito às personalidades de Posey — uma professora que também carrega seus problemas, conjugais e com a bebida — e Stone — uma aluna fora de série dotada de vontade própria e enorme poder de observação —, tornando as duas algo além de acessórios não muito bem acabados do roteiro para fazer Phoenix brilhar.
A sensação é de que os roteiros de Allen, que antes o consagravam pela excelência e regularidade, agora constituem seu principal problema
Sob outros aspectos, “O Homem Irracional” possui méritos maiores. Talvez pela mencionada irregularidade do conjunto, por carregarem uma assinatura tão firme e por serem centrados majoritariamente em performances, os filmes de Allen são menos discutidos individualmente em termos estéticos, principalmente os recentes e menos ambiciosos no que diz respeito à escala. Aqui, o papel de Darius Khondji na direção de fotografia merece ser ressaltado.
Após incursões em produções de época, como “Era Uma Vez em Nova York” e mesmo “Magia ao Luar”, ele retorna aos tempos atuais — a despeito da atemporalidade da história — e constrói um universo marcado pelo alto contraste entre luz e sombra, o que reforça a principal temática em questão. Os dias ensolarados no campus e os acenos bem pontuais ao noir permitem que o filme explore a complexidade do protagonista, evitando sua unidimensionalidade.
O resultado poderia ser ainda mais elogiável caso Allen, hoje um “imperfeccionista” confesso, fosse capaz de acompanhar tamanha qualidade e atenção aos detalhes. A sensação é de que se seus roteiros, que antes o consagravam pela excelência e regularidade, agora constituem seu principal problema. Mais uma vez, resta a impressão de que a mediocridade é o suficiente.
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