- Cultura 19.ago.2015
Um passeio pela antiga Nova York nas páginas de “Golem & o Gênio”
Helene Wecker reúne mitologia popular, ficção histórica e fábulas em uma narrativa que mescla as culturas árabe e judaica.
Essa é a história de duas criaturas antigas que precisam encontrar a melhor forma de lidar com situações para as quais nenhuma delas está preparada. A maravilhosa fantasia de Helene Wecker me colocou em uma máquina do tempo e me transportou para um cenário antigo e charmoso: a Nova York de 1899.
Com muito talento e um vocabulário rico, a autora mesclou misticismo, conflitos, amizade e o segredo da vida eterna em seu romance de estreia, indicado ao Nebula Award 2014 como Melhor Romance.
Uma fábula eterna
“Golem & o Gênio” é uma fábula que se passa em Nova York na virada do Século XX e fala sobre a chegada de dois seres místicos na América, uma Golem e um Gênio, que acabam cruzando seus caminhos e criando uma amizade que contraria a lógica de suas próprias naturezas. Para quem não está familiarizado com os conceitos, um Golem é uma espécie de autômato subserviente feito de terra ou argila, uma figura da mitologia judaica; o Gênio (ou Djinn) é um ser independente de fogo, presente na mitologia árabe.
Golem é uma espécie de autômato subserviente feito de terra ou argila, uma figura da mitologia judaica; o Gênio está presente na mitologia árabe
A Golem foi criada por um rabino envolvido com a cabala numa cidade que pertencia à Alemanha antes da Segunda Guerra, com o objetivo de ser a esposa perfeita de um homem que queria fazer uma nova vida na América. Mas ela chega a Nova York sozinha, desorientada e surpresa com tudo, porque no trajeto da Europa para a América seu mestre morreu acometido por uma doença. Uma de suas habilidades é sentir os medos e desejos do seu mestre para melhor atendê-lo, mas já que ele faleceu, a Golem fica sujeita à atender aos desejos de todos ao redor, o que a coloca em uma pequena confusão. É quando ela encontra um rabi chamado Meyer, um sujeito que conhece a natureza destas criaturas e sabe que um Golem sem mestre é um perigo, então ele se torna praticamente um pai para ela, e a nomeia Chava.
Todos nós nos sentimos solitários de vez em quando, não importa quantas pessoas tenhamos a nossa volta.” – Rabi Meyer
O gênio por outro lado, chega à América de uma forma bem diferente. Durante o conserto de uma garrafa, um latoeiro acaba libertando o Gênio que ficou ali dentro por mil anos. Preso à forma humana por conta de um bracelete de ferro, o Gênio acaba usando suas habilidades com fogo para trabalhar na latoaria e participar da comunidade síria instalada em Nova York. Para isso, ele ganha um nome – Ahmad – e uma história falsa para esconder sua identidade verdadeira.
Helene Wecker tem uma escrita maravilhosa, que conseguiu ser traduzida pro português de forma delicada e mantendo o espírito original
Durante boa parte do livro acompanhamos as atividades e decisões de cada personagem dentro de sua própria comunidade em NY, mas também conhecemos cada cantinho de suas personalidades. É fascinante ver a Nova York do outro século respirando viva nas páginas do livro, e entrar na cabeça de dois personagens tão maravilhosos quanto Chava e Ahmad. A Golem é toda recatada, prestativa e curiosa; absolutamente perfeita e produtiva no que faz, acaba arranjando um emprego em uma padaria e se vê frente ao desafio diário de lidar com pessoas e seus sentimentos. Para a Chava, ler pensamentos e entender emoções é fácil, mas para os humanos é um verdadeiro mistério – o que rende excelentes e profundas discussões com o rabi que a acolheu e com nós, leitores.
…sentindo-se como se estivesse preso em um único dia que se esticava como vidro derretido.”
O contraponto é o Djinn, um cara tempestuoso, sarcástico, questionador e inquieto. Um corpo humano, fraco e repleto de limitações é um pesadelo diário para ele, e as alfinetadas que ele distribui são sempre divertidas. O Gênio, aliás, é quem nos guia por essa Nova York antiga e maravilhosa. Como não suporta ficar dentro de quatro paredes, ele aproveita a noite para explorar a cidade e nos leva para áreas distantes.
Uma série de acontecimentos acaba fazendo com que os dois personagens se cruzem em um determinado momento. A aproximação é cautelosa e causa muitos conflitos, mas de certa forma é essa natureza que faz com que os dois se entendam, pois não tem mais ninguém em Nova York que entende o que é ser o que eles são. E a forma como a história dos dois é amarrada faz cada uma das 512 páginas valerem a pena.
Harmonia e delicadeza na história
Tem uma porção de coisas incríveis em “Golem & o Gênio”, detalhes que fazem a gente se envolver de verdade com a história. Helene Wecker tem uma escrita maravilhosa, que conseguiu ser traduzida pro português de forma delicada e mantendo o espírito original. Tudo vai sendo desenhado na sua cabeça enquanto você lê, e é impossível não se emocionar com certas coisas, como quando a Golem olha a Estátua da Liberdade pela primeira vez e não sabe o que é aquilo, pois sua bagagem cultural é completamente diferente da nossa, e percebemos ali que essa aventura será penosa. E também temos a clara fixação do Djinn por pássaros. Ele cria pingentes e esculturas de pássaros com o metal, uma alusão à sua paixão pela liberdade, e vez ou outra seus pássaros são criados dentro de gaiolas. É fácil perceber como ele se sente.
Sobre a estrutura do livro, acredito que “harmonia” seja uma boa palavra para descrever a obra. A história de Chava e Ahmed é contada capítulo a capítulo, mas a de outros personagens também. E inclusive uma outra linha de tempo está no meio das páginas, nos contando uma história que aconteceu há muito tempo. E não tem quebra, não é algo que você queira pular para voltar à história principal. Você está em harmonia com essa estrutura e percebe que cada capítulo é uma peça do quebra-cabeça, apresentada na hora certa e do jeito certo.
À medida que avançamos na leitura, vamos descobrindo um pouco mais sobre a história dos protagonistas, mas também dos personagens secundários, ricamente explorados e detalhados. Dentre vários, destaco principalmente o Saleh Sorvete, um sorveteiro acolhido pela comunidade síria em Nova York depois de uma tragédia que lhe custou a sanidade.
Pesquisa e inspiração de Helene Wecker
O mapa da cidade é super detalhado. A autora diz que a pesquisa para ser fiel à realidade foi enorme. Ela não tinha ideia de como era a vida em Nova York em 1899 e acabou no porão da biblioteca da Universidade de Columbia, desenterrando mapas, fotos antigas e dados do censo. O Saleh Sorvete, por exemplo, foi inspirado em um homem de turbante que a autora viu em uma foto do New York Daily Tribune de 1892 durante suas pesquisas. A legenda da foto dizia que o homem era um vendedor de sorvete e sua mente imaginativa criou uma nova história para ele.
A inspiração para o livro veio na época em que Wecker estava na faculdade e começou a escrever uma série de histórias curtas que combinavam os contos de sua família judia com os de seu marido árabe-americano. Ela tentava inserir os temas mais comuns entre essas culturas, em especial no que dizia respeito à imigração dos antepassados para os Estados Unidos e as dificuldades passadas, mas acrescentou o elemento mágico – o que transformou a história. “Golem & o Gênio” também é relevante porque, mesmo que se passe há um século atrás, fala de preocupações que são modernas até hoje: a mistura de culturas, a globalização, as tensões religiosas, o sentimento de deslocamento que os imigrantes sentem em uma terra diferente, e tudo o mais.
“…Vivera tanto tempo na expectativa de sua morte que contemplar o futuro era como estar à beira de um abismo, encarando o vertiginoso impacto do céu.”
Os contrastes do livro são tratados com delicadeza. Há judeus e árabes, terra e fogo, servidão e liberdade, subserviência e poder, mas há também a possibilidade nada remota de amizade e superação em um cenário incrível.
“Golem & o Gênio” foi lançado em 2013 pela HarperCollins e ganhou edição brasileira em 2015 pela DarkSide Books. O projeto gráfico do livro é de uma beleza única e merece comentários à parte. O livro em capa dura tem detalhes em dourado e uma ilustração única do arco da Washington Square Park. Na parte interna temos algumas fotos da antiga Nova York e todo um trabalho gráfico voltado ao tema do livro. Tenho certeza que vocês vão curtir muito.
Se você gosta de fantasia, em especial dessas fantasias com elementos urbanos e mistura de culturas, a leitura de Golem e o Gênio é obrigatória. Aproveite a viagem. :)
FICHA TÉCNICA
Título: GOLEM E O GÊNIO
Autor: Helene Wecker
Tradução: Claudia Guimarães
Editora: DarkSide® Books
Páginas: 512
Raquel Moritz é publicitária, autora do Pipoca Musical
e adoraria conhecer o Palácio do Djinn no deserto sírio.
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