- Cultura 13.maio.2015
“Mad Max: Estrada da Fúria” reverencia trilogia original através de uma experiência imersiva
George Miller confere frescor narrativo, temático e estético a sua própria série clássica, dando a ela ares de inovação e vanguarda — talvez até de revolução no gênero
⚠ AVISO: Contém spoilers menores
“Mad Max”, lançado em 1979, seria crédito suficiente para estabelecer George Miller, seu diretor-roteirista, como um visionário. Quase quarenta anos depois, somente um projeto ambicioso como “Estrada da Fúria” poderia confirmar esta ideia e renovar os elogios a ele. Em nova investida neste mundo pós-apocalíptico, o cineasta confere frescor narrativo, temático e estético à série, dando a ela ares de inovação e vanguarda — talvez até de revolução no gênero — tão marcantes quanto aqueles do filme estrelado por Mel Gibson. Vale notar, aqui, que os inevitáveis paralelos entre os longas não visam estabelecer hierarquias de qualidade, mas apontar os recursos que, repaginados, possibilitam a reinvenção da franquia e estabelecem este capítulo como tão digno de reverência quanto seus antecessores.
“Estrada da Fúria” é uma reinvenção da franquia que estabelece este capítulo tão digno de reverência quanto seus antecessores
De imediato, impressiona a forma como este novo capítulo se insere na franquia. Há diversos elementos que acenam com a trilogia anterior, mas o caráter único da experiência e a atualização de seus aspectos mais fundamentais permitem que o filme se sustente de maneira independente. Em um futuro não determinado precisamente, mas que parece mais distante no tempo em relação ao longa inaugural, o protagonista vivido por Tom Hardy é um homem solitário que perdeu tudo o que tinha e que agora vive como bolsa de sangue para Nux (Nicholas Hoult), uma criatura que serve ao império de Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne, o Toecutter do primeiro Mad Max), detentor exclusivo da água, o recurso mais valioso daquele tempo. Sua oportunidade de fuga coincide com o ato de rebelião de Furiosa (Charlize Theron), que busca se livrar do controle do tirano e retornar ao seu local de nascimento, uma espécie de terra prometida.
A construção do contexto para a ação revela proximidade com o imaginário da série desde o plano inicial, quando o tradicional carro V8 é avistado. Os apavorantes pares de olhos filmados em close, antes frequentes nas cenas de morte ou de maior energia, aqui aparecem como suporte para o ritmo alucinante das perseguições, sobretudo no ato introdutório. Os insetos, anteriormente mostrados com certa discrição como componentes do cenário, tendo sua existência em certos momentos verificada pelas roupas protetoras usadas por alguns personagens, neste episódio são explorados de maneira mais explícita, fazendo parte da construção das criaturas que habitam aquele mundo.
Os corvos, outrora perturbadores mais pelos sons que emitiam do que por suas imagens, agora são referenciados explicitamente, o mesmo podendo ser dito das deformidades físicas, bem mais frequentes e visíveis. É este um dos traços mais marcantes de “Estrada da Fúria”: sua abordagem direta. A abertura é realizada por meio de uma narração em off bastante objetiva em que o personagem principal anuncia seu nome, origem e situação — comparativamente, o Max original só seria revelado por completo após uma extensa sequência de ação.
Um exercício de megalomania executado em sua plenitude e com enorme habilidade, em que até mesmo o uso do 3D, típico de uma lógica de mercado de blockbusters, serve aos propósitos autorais do cineasta”
Esteticamente, as realizações de Miller são impressionantes. Evitando emular os anteriores, o longa se vale de uma atmosfera caótica, marcada por cores levemente saturadas, sempre em tons amarelados — para as sequências diárias no deserto — ou azulados — para os trechos noturnos, com uma coesão tão grande que abre margem para a adição valiosa e cheia de significados de elementos em vermelho e verde, respectivamente. O diretor de fotografia, John Seale, auxiliado pelo absurdo trabalho de pós-produção, constrói planos, em média, curtíssimos e que permitem identificação e assimilação imediatas graças à centralidade doe seus enquadramentos. Sem que o espectador precise procurar uma referência na tela, o que ocorre e gera confusão em produtos de ação menos competentes, o filme consegue estabelecer um ritmo extremamente ágil.
Ao mesmo tempo, existem intervalos breves e menos intensos, mas que jamais parecem abruptos — em sua maioria, eles também são curtos, de não mais que meio minuto, e funcionam em contraste com os décimos de segundos de cada plano dos segmentos de ação. É fascinante a habilidade do longa em inserir movimentos constantes de câmera, acelerados ou em slow motion, mantendo-se a compreensão perfeita do que ocorre em tela sem precisar recorrer a simplificações — ao contrário, o que se vê é um exercício de megalomania executado em sua plenitude e com enorme habilidade, em que até mesmo o uso do 3D, típico de uma lógica de mercado de blockbusters, serve aos propósitos autorais do cineasta.
No que diz respeito à ação propriamente dita, este Mad Max tem valor por conseguir articular diferentes tipos de combate, os quais produzem distintas dinâmicas nas sequências mais aceleradas. Os veículos e seus pilotos possuem características específicas, levando as longas cenas de perseguição a uma variação interessante, que mantém o ritmo constante e assegura o interesse do espectador em mais do que socos e explosões.
Em termos narrativos, “Estrada da Fúria” tem méritos por conseguir conciliar seu caráter direto e objetivo com a profundidade com que constrói seus personagens, em especial quando se consideram os limites impostos pelo formato e a natureza do projeto. No contexto da série, chama a atenção a forma como Max se apresenta como um louco logo em sua primeira fala, o que ganha reflexos em referências posteriores — quando ele rouba as botas de um inimigo e quando acorrenta outro, dois momentos marcantes de insanidade do filme original.
Narrativa concilia seu caráter direto e objetivo com a profundidade com que constrói seus personagens
Soma-se a isto o fato de que ele demonstra afeto pela primeira vez, ainda que de maneira tímida e contida, quando tenta salvar Angharad (Rosie Huntington-Whiteley), substituindo sua expressão por raiva no instante seguinte. Sua humanidade é construída desta forma em todas as frentes, do horror pelas alucinações com o passado à dedicação integral à jornada e a seus companheiros, e a performance silenciosa de Hardy é fundamental para que isto ocorra.
Ainda, há uma atenção especial para as figuras femininas — Theron como maior destaque — que não apenas dá importância a um grupo de mulheres motociclistas, majoritariamente de idade avançada, como também oferece camadas às jovens inicialmente apresentadas como “pessoas frágeis que precisam ser salvas”. Este empoderamento ganha um contorno importante na sequência em que Max entrega uma arma a Furiosa — não porque a equidade deriva de uma delegação de poder do homem para a mulher, mas porque esse reconhecimento é tão raro em produções de maior escala e, aqui, ocorre em função da tomada de posição da própria personagem, não de uma celebração do gesto masculino.
Parte dela também a principal forma com que o filme relaciona presente e passado, através de lembranças de uma infância esperançosa e tranquila, em contraste com a aridez da Cidadela de Immortan Joe, e que tem como consequência o par de planos mais bonito da produção. Neste mesmo tema, são feitas menções a tempos mais remotos, por exemplo, quando surge um diálogo sobre transmissão via satélite após um deles ser avistado no céu.
O desconhecimento dos personagens deste mundo pré-apocalíptico é o tipo de base para o pano de fundo que não se faz absolutamente necessária, mas que em alguma medida parece referenciar o longa original, em que boa parte da comunicação entre é feita por meio de rádio. No limite, é este o principal ponto positivo de “Estrada da Fúria”: saber dosar com maestria a autorreferência e seus aspectos mais originais, o que resulta em uma experiência imersiva e única — sob todos os sentidos.
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