Rolezinho. Pronto, finalmente o B9 vai ter um texto sobre o assunto.
Mas não necessariamente para defender ou atacar o despretensioso movimento surgido nas redes sociais para promover o encontro de jovens que só querem curtir, ouvir um funk e paquerar as gatinhas. Minha opinião sobre o rolezinho não pode ser mais importante do que a de bons articulistas que já escreveram e estudaram um pouco mais sobre o assunto. Então não será um texto sobre este debate.
Acredito que para o público cativo deste site, podemos olhar mais atentamente sobre como as marcas, a publicidade e o comportamento de uma parcela considerável da sociedade geram um espetáculo como este.
A começar pela sociedade. Certa vez, Margaret Thatcher afirmou que “não existe essa coisa de sociedade, o que há são indivíduos”, uma reza até hoje repetida à exaustão.
Não é preciso dizer que não foi ela quem inaugurou esta forma de pensar. Há pelo menos 60 anos, o bem-estar individual – conquista capitalista que era orgulhosamente melhor do que o igualitário sistema socialista – é louvado. Criou-se, à base de muitos filmes hollywoodianos, propaganda massiva e publicidade envolvente, uma sociedade que acredita que o esforço individual traz benefícios (mais dinheiro, mais conforto, mais prazer) e que o que diferencia aqueles que possuem mais dos que possuem menos é o esforço e o mérito.
Já pararam para verificar todos os briefings que recebemos de nossos clientes? Target AB.
A regra – como a exclusão de boa parte da população ao ensino superior, o fato de que mulheres ganham menos do que os homens em média ou de que negros ainda sofrem racismo – é abalada por qualquer exceção, como um exemplo de superação individual de alguém que saiu da favela e conquistou o mundo. De repente, uma grande quantidade de gente perde a razão porque apenas um semelhante deles, apenas um, conquistou muito mais do que poderia sonhar. Esta é a beleza vendida.
E sabe qual é a melhor forma de premiar o seu esforço? O consumo. Eu dou um duro danado, eu ganho esse dinheiro com o suor do meu emprego, mereço comprar uma comida melhor, uma bolsa, um sapato, um carro.
Aí entram as marcas e sua publicidade eloquente. Já pararam para verificar todos os briefings que recebemos de nossos clientes? Target AB. Em apenas duas oportunidades, trabalhei com campanhas “para a Classe C”, e sabe do que se tratava? Dois produtos obsoletos – um celular comum em tempos de smartphones começando a ganhar força e um sistema de som daqueles gigantes, que tocava CDs. Pois é.
Não há comportamento individual que não tenha reflexos no que chamamos de sociedade
Então, certas marcas se destacam porque representam um certo estilo de vida. Está aí o Rei do Camarote para não me deixar mentir. O consumo não visa apenas satisfazer suas necessidades básicas: é também uma forma de evidenciar o seu mérito em ter aquele produto.
Tudo isso para dizer o seguinte: valorizamos tanto as marcas e o status que o consumo delas nos atribui e estranhamos quando os jovens do rolezinho pensam exatamente igual.
Eles só querem curtir. Querem exibir o tênis comprado. As roupas que usam. Querem dançar e ouvir um som. E fazem isso no shopping porque é ali que o consumo é feito e reverenciado. Quando eu era adolescente, também marcava meu rolezinho no shopping: colocava uma roupa bacana e 10 reais no bolso, que bastavam para o cinema ou o fliperama e para o McDonald’s. Éramos quatro ou cinco amigos, mas claro que no mesmo shopping haviam diversos outros quatro ou cinco amigos. Se hoje a molecada pode chamar milhares pelo Facebook, o conceito ainda é o mesmo.
Não há ato apolítico
Uma das primeiras manifestações sobre o assunto foi o intenso debate direita x esquerda. Entre reprimir a desordem ou aceitar que os jovens faziam um ato político ao ocupar os centros de consumo por não terem outros centros de lazer em seus bairros, houve alguns depoimentos dos jovens dizendo que aquilo “não tinha nada de política. Era só curtição”.
Eu concordo que seja só curtição, mas preciso logo dizer que Thatcher vociferava uma grande inverdade: não há comportamento individual que não tenha reflexos no que chamamos de sociedade.
Com o resultado de qualquer rolezinho, podemos começar a imaginar como o nosso comportamento individualista e consumista também atrapalha uma melhor vida em sociedade num universo maior, como uma cidade, um Estado ou um país.
Você é publicitário ou trabalha próximo ao mercado de comunicação. Você faz parte de um sistema que vende um sonho do carro próprio, da casa própria e das maravilhas do consumo de vestuário, alimentos e eletrônicos de última geração. Se há algo que toda essa história pode lhe ensinar é que, mesmo não parecendo, estas escolhas também são atos políticos e terão implicações em toda a sociedade.
Algo mais incômodo que o rolezinho vai bater na sua porta, sem pedir licença para entrar
Uma pessoa pode conquistar o sonho do carro próprio, mas quando milhões sonham e conquistam, não há sistema viário que aguente. Uma pessoa pode sonhar com a casa própria, num lugar calmo e tranquilo, mas quando milhões sonham e conquistam, os bairros de descaracterizam, dando espaço a um tipo único de construção. Uma pessoa adora pechinchar e não se importa em comprar aparelhos eletrônicos em lojas que não divulgam a procedência dos produtos, mas quando milhares fazem o mesmo, é necessário acelerar os roubos e contrabandos para garantir o estoque.
Ok, há uma solução a curto prazo? Claro que não. Mas quem sabe trazer este tipo de discussão ao campo da comunicação não ajude? Quem sabe, num futuro que eu desejo ser pouco distante, os profissionais da agência e de um primeiro cliente não atentem para um tipo de briefing que considere seus impactos? Algo como “talvez o que eu precise agora não é vender mais carros, e sim defender um uso diferente do carro, porque eu quero continuar a vender este produto daqui a 20 anos”
. E quem sabe, com algum sucesso, outras marcas não embarquem nessa?
Não tenho exatamente uma resposta, mas penso que se continuarmos a tocar o barco como está, incentivando o mérito, o consumo e o individualismo e aumentando as tensões entre as pessoas, algo mais incômodo que o rolezinho vai bater na sua porta, sem pedir licença para entrar.
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