Woody Allen: É possível separarmos a obra de arte do artista?
Quando ética e estética se confundem
Recentemente, vimos a carta Dylan Allen, filha adotiva de Woody Allen quando casado com Mia Farrow, na qual ela confirmava que seu pai havia abusado dela quando criança. Textos ora a favor de Dylan, ora duvidando, pipocaram por toda a internet. Não vou entrar nos detalhes do caso. Quem quiser, recomendo a leitura desses dois textos: a carta aberta de Dylan sobre o assunto e este texto de Robert B. Weide, responsável por um documentário sobre Woody Allen que foi ao ar nos EUA pela emissora PBS. No texto, Weide explica uma série de fatores que colocam em dúvida as acusações (ambos os textos estão em inglês).
O que mais me chamou a atenção no retorno da polêmica, que teoricamente já foi resolvida em 1993, quando Woody Allen foi absolvido pela corte americana, foi a quantidade de fãs dele se questionando “e agora, devo (ou posso) continuar fã?”. Certamente, ninguém quer correr o risco de ter sua reputação misturada a de um suposto pedófilo, simplesmente porque gosta dos filmes dele.
Mas será que tal associação, mesmo que feita de forma involuntária, é justa? Até que ponto devemos fazer tais questionamentos? Esse é um dos mais mais frequentes debates no campo artístico, e Woody Allen não foi o primeiro a ser objeto de tais dúvidas. Com certeza, não será o último. Este texto é uma infame tentativa de resposta para o dilema.
Qual a importância do autor?
Quando Roland Barthes, semiólogo francês do século passado, escreveu seu famoso texto “A Morte do Autor”, de 1967, ele desenvolvia uma posição provocadora: em contato com uma obra, a única coisa que importa é o leitor. Seu ensaio era voltado especialmente a uma corrente de crítica literária muito comum em seu tempo, na qual buscava explicar obras publicadas a partir da biografia de seus autores.
“E agora, devo (ou posso) continuar fã?”
Segundo Barthes, a obra literária possuiria uma vida independente da vida do autor que a escreveu, sendo então o resultado de leituras, recepções e interpretações diversas no meio social. Nesta perspectiva, definir a qualidade ou alcance de uma obra partindo da limitação da vida do criador da mesma seria inconsistente. Para os curiosos, discutimos essa questão de Barthes no AntiCast 37.
Eu tendo a concordar com Barthes nesse ponto. Apesar de achar que o conhecimento sobre a vida do autor pode ajudar a um maior esclarecimento sobre detalhes de determinadas obras, quando vou à livraria ou ligo a TV para ver um filme, especialmente se for algo pouco conhecido, não me importa quem é o realizador. Caso o trabalho me chame a atenção, só então corro atrás para saber quem é o escritor, diretor, ator, e qualquer outro “or” (ou “ora”).
Mas, claro, esse não é o caso de Woody Allen. Seu nome é uma assinatura valiosa. Quem é fã, assistirá seu próximo filme sem pestanejar. Quem é simpatizante, poderá dizer que gosta de seus filmes e verá se tiver a oportunidade. E há sempre aqueles que nunca sabem o nome do diretor, e se surpreendem quando descobrem que o diretor de “Noivo neurótico, Noiva Nervosa” é o mesmo de “Meia-Noite em Paris”.
Trocando em miúdos: o nome Woody Allen vende, mesmo em seus filmes menos conhecidos. É um daqueles diretores de público fiel, uma aposta segura para os estúdios. Você com certeza consegue pensar em outros artistas que possuem o mesmo “selo de qualidade”, seja no cinema, na música, na literatura etc.
Claro, sempre há excessões. Um caso recente, no caso de Woody Allen, foi a fraca recepção ao “Para Roma com Amor”, em 2012, provavelmente por causa da alta expectativa causada após o sucesso que foi “Meia-Noite em Paris”. Ainda assim, seu nome continua forte.
Não estou falando nenhum novidade, mas o curioso é perguntarmos “será que o nome do artista sempre teve essa importância?”. A resposta é não.
Quando surgiu o artista como um nome?
Recentemente, um colega meu, o professor Rodrigo Graça, do curso de design da UTFPR, foi a Paris e postou uma constatação curiosa:
“A disciplina de História da Arte (HA) poderia se chamar marquetingue (sic), ou HA é um protomarquetingue. O culto as obras primas e o endeusamento do indivíduo, na figura do artista criador, é evidente em Paris. Lugares como o Louvre, o d`Orsay e a l`Orangerie tem filas absurdas, enquanto lugares como o Petit Palais e o Musée Centre du Patrimoine et de L`Architecture com excelentes exposições e, em janeiro de 2014, com exposições temporárias sobre Jordaens e sobre o Art-Deco respectivamente, estão vazios; vazios mesmo, sem filas, sem salas cheias, sem atropelo…”
Se pegarmos qualquer livro de história da arte, ao menos os mais famosos (tipo aquele Gombrich que você tem juntando pó na estante de casa), veremos que eles são recheados de nomes. Contudo, os nomes passam a surgir com mais frequência apenas a partir do Trecento, ou o chamado Pré-Renascimento, que marca a transição da Idade Média para a Idade Moderna, no século XIV. Alguns nomes que aparecem nesse período, apenas a título de curiosidade, são Giotto, Domenico Di Bartolo, e Ambrogio Lorenzetti.
O que quero dizer com isso? Por toda a Idade Média, com raríssimas exceções, os artistas que lidavam com artes manuais (esculturas e pinturas) não tinham grandes preocupações com autoria (ou, se tinham, eram contidos). Eram considerados prestadores de serviço, numa configuração determinada pela mentalidade medieval que declarava que toda capacidade de produção deveria ser em prol da representação religiosa. Não à toa, a assinatura do artista em suas obras é uma das marcas que assinalam o fim da Idade Média.
Não desejo entrar aqui nos méritos ou deméritos da mentalidade religiosa medieval e sua relação com a produção artística. Quero apenas enfatizar essa característica. Importante notarmos também que, no caso das artes de cunho intelectual, tal como música e poesia, a autoria foi mais levada em consideração. Os primeiros artistas plásticos do Renascimento, sendo frutos de um momento histórico de intensas revoluções culturais, são responsáveis por uma mudança de mentalidade da sua época: a luta pela valorização das artes manuais, de forma a mostrá-las como também oriundas de um intenso esforço intelectual. Por consequência, seus nomes passaram a ser importantes. Viu-se surgir a uma economia de reputações baseada na excelência de seus trabalhos.
Os ícones máximos do Renascimento, Leonardo da Vinci e Michelangelo, são exemplos claros disso. Da Vinci era conhecido como um artista excelente, mas que demorava demais para entregar suas encomendas, dado seu zelo com a qualidade do trabalho. A Monalisa mesmo, sua peça mais famosa, nunca foi entregue ao cliente, e estima-se que ele trabalhou nela por mais de 10 anos. Michelangelo era famoso por confrontar seus clientes, dizendo que eles não entendiam nada de arte e que deviam deixá-lo trabalhar em paz, pelo tempo que fosse necessário. E, claro, se deixassem de pagar, o trabalho era encerrado. Que sonho para criativos de hoje, não?
Por toda a Idade Média, com raríssimas exceções, os artistas que lidavam com artes manuais não tinham grandes preocupações com autoria
Os nomes dos artistas carregavam consigo reputações acerca da qualidade de sua obra, seu método de trabalho, seus preços, entre tantas outras informações. Com a difusão das galerias na Europa a partir do século XVIII, os nomes dos artistas passaram a ser ainda mais importantes. Quanto mais admirado fosse, maior seriam as visitas e as ofertas pelas suas obras expostas. Essa mesma lógica ganhou ainda mais força no mercado literário europeu do século XIX, quando vemos a proliferação do Romance (narrativa longa em prosa) como produto bastante consumido pela classe burguesa. É a época na qual os primeiros bestsellers passam a surgir.
Claro, há mais coisas a serem contadas nessa questão da formação histórica da importância do nome do artista. Poderíamos falar sobre as assinaturas dos pintores em suas telas, dos nomes dos escritores nas capas de livros, ou ainda da construção da idolatria aos diretores de filmes pelo fato de colocarem seus nomes nos créditos iniciais, dando assim a ideia de que ele é a figura mais importante na realização do filme.
Hitchcock é marcante nesse sentido, pois foi um dos primeiros diretores dos EUA a transformar seu nome em um selo de qualidade que vendia o filme com algum respaldo. Fato curioso: se olharmos, na mesma época, para a União Soviética, que desenvolvia sua indústria cinematográfica mais ou menos ao mesmo tempo em que o cinema de Hollywood está amadurecendo, o nome que tinha mais destaque nos créditos de abertura era o do roteirista, e não o do diretor. Podemos deduzir daí que a própria noção de autoria é determinada pelas condições sociais nas quais a obra artística é criada.
E isso me faz retomar a frase que citei do meu amigo há pouco. Até que ponto, hoje, estamos consumindo obras de arte e até que ponto estamos consumindo o artista? Há diferença? E, caso sim, qual é o mais importante?
Famosos “Podres”
Espero ter demonstrado, ao menos brevemente, o autor nunca foi algo muito importante pela esmagadora maior parte da história da humanidade. Passou a ser importante quando surgiu um mercado que consumia não apenas mais a obra, mas sim o nome atrelado a ela. No caso das artes plásticas, gosto de localizar esse momento no Renascimento – como na famosa Pietá, de Michelangelo, única obra sua que leva a assinatura do autor.
No caso das artes ditas “intelectuais” (música e poesia), podemos remontar aos gregos e romanos da antiguidade clássica – ainda assim, com uma série de restrições. A obra sempre foi mais importante do que o artista. Mas o tempo passa e, com ele, obviamente, as formas de nos relacionarmos ao ambiente em que estamos inseridos. Por isso, a pergunta torna-se pertinente.
Picasso era misógino. Caravaggio assassinou um homem. Rimbaud era contrabandista. Lorde Byron cometeu incesto, enquanto o escritor Flaubert pagava por sexo com garotos.
Há um excelente artigo do NY Times, assinado pelo crítico de arte Charles McGrath, chamado “Good Art, Bad People”. Recomendo a leitura do artigo e usarei parte dele para responder a pergunta que dá nome a este post. Vamos, então, à lista dos podres de artistas famosos.
Um ponto recorrente em vários artistas é o anti-semitismo. Neste caso, a lista é gigantesca. O compositor clássico Wagner, aquele que compôs a marcha nupcial, é um dos casos mais famosos nessa lista. Acompanham-no neste caso o pintor Degas, os poetas Ezra Pound e T.S. Eliot, além de Walt Disney e Mel Gibson.
Uma provocação: você acha que, ao tocar a marcha nupcial em seu casamento, você torna-se um anti-semita por tabela? E quando vê um filme da Disney ou um filme estrelado/dirigido por Mel Gibson?
Picasso era misógino. Caravaggio assassinou um homem. O poeta Rimbaud era contrabandista. Outro poeta, Lorde Byron, cometeu incesto, enquanto o escritor Flaubert, autor do clássico “Madame Bovary”, pagava por sexo com garotos (em tempos em que isso era um crime grave). Charles Dickens era um péssimo pai e marido, assim como Hemingway. John Lennon entraria nesse mesmo caso, especialmente quando pensamos no seu primeiro casamento, com Cynthia Powell, no qual teve seu primeiro filho, Julian.
Frank Miller, autor de quadrinhos que escreveu obras de inestimável valor, como “Batman Ano Um”, “Batman: Cavaleiro das Trevas”, “Elektra: Assassina”, entre tantas outras, é conhecido hoje por fazer comentários de alto teor racista a respeito de muçulmanos nos EUA.
Arthur C. Clarke, famoso escritor de ficção científica, autor de “2001: Uma Odisseia no Espaço”, recebeu sérias acusações de praticar pedofilia no final dos anos 90. As acusações foram, aparentemente, infundadas. Contudo, na época, muitos ligaram o fato dele residir no Sri Lanka, país com sérios problemas na questão de preservação dos direitos humanos, aos seus possíveis hábitos sexuais.
Roger Waters, ex-líder do Pink Floyd, também foi chamado de anti-semita no ano passado, por ter feito críticas duras ao governo de Israel. Ele se defendeu, dizendo que não estava criticando o povo judeu, mas sim o Estado de Israel. Independente do que quis dizer, a repercussão de suas críticas não foram das mais favoráveis.
Aliás, se formos para a música, teremos uma lista incontável, com os mais variados delitos. Axl Rose (e outros membros do Guns N Roses) confessaram que vendiam drogas antes de se tornarem famosos. Richie Blackmore, fundador do Deep Purple, era (e possivelmente ainda é) um babaca. Morrissey, fundador do The Smiths, já soltou declarações racistas para meio mundo. E se entrarmos no assunto “infidelidade”, esse post não terá fim.
Enfim, a impressão que tenho é que os “podres” dos artistas parecem só ter importância quando eles são próximos de nós, a ponto dessas manchas em suas histórias terem sido esquecidas pelo tempo. A pergunta que poderíamos fazer é “devemos esquecê-las”? Não acho que seja o caso. Contudo, não consigo também deixar de acreditar que a obra do artista continua sendo mais importante que sua figura. Todos morremos – algumas obras sobrevivem.
Sendo assim, apesar de condenar muitas das atitudes que listei aqui, não sei até que ponto é possível “higienizarmos” toda nossa biblioteca de livros, músicas e acervo de gostos artísticos em geral. Imagine a situação: para cada banda nova legal que ouço na rádio, procuro no Google sobre o passado dos artistas, para ver se eles merecem ou não minha atenção. Isso me parece inviável e, até certa medida, paranóico. Talvez seja mais saudável lembrarmos do clichê “de perto, ninguém é santo”. Nem você.
É possível separarmos a obra de arte do artista?
Sim, é possível e desejável. A obra de arte, especialmente aquela que sobrevive ao teste do tempo, é sempre mais potente do que o seu criador, seja no meio que for. Gosto de lembrar de Barthes neste momento e pensar que o que define a obra não é seu criador, mas sim o que fazemos com ela. Sei que essa resposta pode parecer covarde, como uma tentativa de isentar o autor de qualquer crime que tenha cometido no passado, mas realmente penso que é esse o caso.
Acho difícil que os Beatles, ao escreverem “Helter Skelter”, imaginavam que Charles Manson aconteceria. O mesmo vale para Salinger, e seu “Apanhador no Campo de Centeio”, no que se refere a Mark Chapman, o assassino de John Lennon. O verdadeiro perigo encontra-se no receptor da obra, e não nela em si – por mais perverso que tenha sido seu idealizador. Com isso, espero já ter destruído aquela noção simplista que você aprendeu em aulas de teoria da comunicação, na qual existe o emissor de uma mensagem e um receptor passivo, que só recebe a informação. O receptor é tão ativo quanto o transmissor. Às vezes, mais.
Outra questão é importante de ser levantada: a capacidade do artista em transformar-se em um Outro. Essa é uma noção que encontramos em vários momentos na obra do teórico russo Mikhail Bakhtin, especialmente quando analisa a obra de Dostoiévski.
A função da Arte não é te tornar uma pessoa melhor. Você pode até tentar fazê-la adequar-se aos seus desejos mais egoístas, mas isso é uma decisão exclusivamente sua.
Sobre isso, lembro da vez que conversei com o escritor Daniel Galera, no AntiCast 42, e perguntei como havia sido a experiência de escrever o livro “Cordilheira”, no qual o personagem principal, que é também o narrador da obra, era uma mulher.
Naquele momento, Galera teve de se demonstrar capaz de transformar-se num Outro – no caso, um do gênero feminino. O contrário também é comum: autoras que escrevem protagonistas homens – e nem precisamos falar de situações mais malucas, como humanos que escrevem sobre elfos, monstros, anjos, demônios etc. Se o artista estivesse confinado em si mesmo, todas as histórias seriam autobiográficas. Graças à capacidade criativa dos autores, podemos garantir que este não é o caso.
Obviamente, não quero isentar ninguém aqui de culpa. No caso de Woody Allen, sou da opinião de que, se cometeu abuso a uma criança, ele deve ser responsabilizado por isso. O mesmo vale para Polanski e qualquer outro que cometa um crime – especialmente com a gravidade dos casos de cada um. Contudo, suas produções artísticas parecem ser maior do que isso, como se elas não tivessem culpa de terem surgido de pais tão ruins.
O que quero dizer, da forma mais direta possível, é o seguinte: se você é fã do trabalho de Woody Allen, isso não te torna um cúmplice de seu suposto crime. Seria preocupante se você concordasse com sua conduta pessoal. Mas o trabalho do artista, por mais que seja, de alguma forma, um reflexo de sua vivência (em maior ou menor grau), é um trabalho de criação que busca extrapolar os limites da sua própria realidade. Importante citar também que, ao menos legalmente, Woody Allen já foi inocentado pela corte estadunidense na década de 1990, como já citamos no início do texto.
Se você é fã do trabalho de Woody Allen, isso não te torna um cúmplice de seu suposto crime
Para tornarmos essas considerações um pouco mais complexas, é interessante percebermos que é possível o autor “ser um santo” (ou pelo menos parecer um) e criar ótimos vilões ou anti-heróis: o romance “Lolita”, de Nabokov, que narra a história de um pedófilo, é um desses casos. O recente filme “O Lobo de Wall Street”, de Martin Scorsese, é outro. Toda a filmografia de Gaspar Noé, diretor do pesadíssimo “Irreversível”
, é mais um. A lista de ótimas obras com temas horríveis é também infinita. Você pode não concordar com a atitude ou conduta dos personagens, mas isso não tira o mérito de serem boas histórias/obras, nem necessariamente exigem que se credite uma “mente doentia” ou um passado criminoso ao autor.
Caso você ainda acredite que a biografia do artista é fundamental para seu trabalho, e que um criador que tenha sua “ficha suja” deve ser ignorado pelo seu estimado “bom gosto”, eu lanço aqui uma última provocação: a função da Arte não é te tornar uma pessoa melhor. Você pode até tentar fazê-la adequar-se aos seus desejos mais egoístas, mas isso é uma decisão exclusivamente sua. E se você acredita que essa deve ser a função dela, você não a entende. Ao procurar apenas por autores higiênicos, você diz mais sobre si mesmo e sua visão de como o mundo deveria ser do que sobre as obras que recusa.
Portanto, sujemo-nos.
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