A Reflexão e a Criatividade
No final de novembro, estive na PUC-SP para o IV Seminário NEMES ( Núcleo de Estudos de Mística e Santidade da Pós-Graduação em Ciências da Religião), que acontece anualmente, encabeçado pelo filósofo Luiz Felipe Pondé. E aquele contexto me fez retomar uma questão importante, geralmente esquecida em nosso cotidiano: a importância do fundamento e da reflexão no ato criativo.
Não é novidade que vivemos em uma sociedade desfavorável à criatividade. Burocracia, stress, necessidade de trabalhar nos “moldes que funcionam”… e aquelas reclamações-clichê das pessoas no Happy Hour da sexta à noite não deixam de ser verdade. No entanto, habituados com esse modus operandi do nosso cotidiano, nos tornamos nosso maior adversário. Assim, como poder reivindicar a si mesmo criatividade, se, sob uma ilusão de ‘movimento’ estamos, de fato, estagnados?! E, uma vez assumido isso, como fugir dessa terrível inércia?
Talvez a história possa nos ajudar.
Na trajetória de alguns grandes artistas há dois pontos que sempre me chamaram a atenção: primeiro, eles são profundamente conhecedores da tradição da área escolhida. Buscam, pesquisam, vivenciam e têm uma base sólida. E como desdobramento disso, vem o segundo: eles refletem a respeito da própria criação, de seu próprio entendimento das coisas e sobre o meio onde tudo isso está inserido – como um diálogo entre eles e o mundo.
Aproveitando o post do Saulo Mileti, tomemos como exemplo o músico Miles Davis. Conhecido por estar sempre um passo à frente no que diz respeito à inovação, Miles era, antes de tudo, um conhecedor da tradição da música americana e do Bebop, gênero que surgia na época como fundador do que seria chamado “Jazz moderno”. Tamanho era o seu conhecimento sobre o assunto, que trabalhou e gravou com Charlie Parker (um dos criadores, senão “O” criador do Bebop) por alguns anos, e uma vez dominada essa linguagem, passou a moldá-la à sua maneira (com o respaldo de já ser uma referência naquilo em que estava trabalhando) e também a se perguntar sobre as possibilidades ainda não exploradas naquele gênero em ascensão. O resto virou história, ou melhor, ele virou “A” história, tendo lançado as principais vertentes e músicos e sendo considerado o mais original artista de Jazz da segunda metade do Séc. XX.
O ponto onde quero chegar é: Quão consistente é seu conhecimento a respeito da sua área? Digo, história, conceitos, referências, ligações com outros campos, real compreensão desses outros campos, etc. Outra: Quanto tempo você dedica para nutrir, pela reflexão, o seu processo criativo pessoal e suas implicações (suas limitações, pontos positivos, opiniões externas, seu trabalho em relação a outros profissionais/artistas, etc)? Talvez aqueles dias em que lhe falta criatividade tenham um correspondente nessas perguntas. Desperdiçamos tempo para saber qual o último “vídeo mais assistido do Youtube” (que amanhã será outro e o de hoje ninguém lembrará), ou para baixar os 64 discos, contando com os não oficiais, da sua banda preferida, dos quais metade você dificilmente ouvirá, mas esquecemos de olhar para trás, de pesquisar o fundamento das coisas, e para dentro (nós mesmos), o fundamento da nossa criatividade!
Um professor, compositor e esteta do século XX chamado Arnold Schönberg, em seu livro “Harmonia” (1911), já alertava sobre o perigo da falta de fundamentação, que ele chamava de “instrução”, “preparação integral” (Durchbildung). Hoje, o excesso de informação, com sua velocidade assustadora, nos priva dessa formação sólida e desse tempo para refletir, ou seja, você acaba não sabendo nada sobre nada, mas já leu sobre tudo. E isso tem um efeito devastador no processo criativo, pois você não tem raiz em lugar nenhum.
O fato é que em última instância, nós permitimos que sejamos privados disso. Discordo daqueles que dizem que para ter criatividade é preciso estar 100% “antenado”, vendo as “coisas novas”, até porque faz tempo que não aparece algo realmente novo nesse planeta. E isso, acredito ser uma “mal do nosso tempo”. Uma espécie de “Idade das Trevas” que passamos conceitualmente/artisticamente, fantasiada de “pura criatividade da geração YouTube”. O texto “O fim do Futuro” (The End of the Future) de Peter Thiel (National Review
) fala sobre isso de uma maneira global muito interessante e séria.
Para mim, ainda hoje, solidificar-se com um olhar voltado para a tradição e para a reflexão é acessar o que há de mais inovador e inexplorado. Seja na Filosofia, na Música ou nas Artes, o passado talvez fale mais sobre o “Ser criativo” que o Facebook. Isso me leva para outra pergunta: O que será da criatividade quando essa geração “Touch Screen-cabeça vazia” crescer?!
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