Treme: Caos, tradições e superação
NOVA ORLEANS – O imaginário popular é um dos maiores formadores de opinião da nossa espécie. Mais forte que celebridades, mais efetivo que o maior dos especialistas; ele simplesmente existe e, na maioria dos casos, é inabalável e extremamente longevo, por ser um conglomerado de conceitos, ideias, histórias, mitos, fofocas e rumores sobre determinado lugar, pratica ou pessoas.
Um dos melhores exemplos é Nova Orleans, uma cidade repleta de histórias envolvendo magia negra, as origens da “verdadeira música norte-americana”, dos extremos sociais e de sua natureza guerreira – basta andar pelas ruas estreitas, falar com os músicos ambulantes ou simplesmente olhar para a Jackson Square de noite para sentir tudo isso. Pelo menos foi assim até 2005, quando o furacão Katrina devastou a região e inseriu novos elementos de terror e desespero à mitologia local. A realidade e o mítico se confundiram demais e, de certa forma, alguém precisava trazer ordem ao caos e registrar o levante da Big Easy; foi o gancho perfeito para David Simon e Eric Overmeyer, os criadores de “The Wire”, mergulharem em “Treme”, uma das principais séries da grade da HBO.
Sempre me perguntei qual era o diferencial técnico da HBO, bom, aí está: um set de cinema para um programa de TV.
Na noite anterior ao longo café da manha – uma mistura maluca de invasão de sabores e discussões políticas e criativas – que teria com David Simon no centro de Nova Orleans, fui passear pela cidade. O lugar é alucinante. Começando pela vista magnífica do hotel na curva do largo rio Mississipi, onde navios de transporte manobravam vagarosamente rumo ao porto mais próximo. Boa comida convive lado a lado com muitos bares, prostituição, gente de todos os cantos e, claro, muita musica. Por sorte, a visita ocorreu no comecinho do Jazz Fest e o movimento era garantido. O senso histórico é imenso, com algumas ruas de paralelepípedos – coisa que nunca tinha visto nos Estados Unidos –, construções antiquíssimas e aquele clima de “vai acontecer alguma coisa”. Talvez seja culpa da Anne Rice ou do filme “Lafite – O Corsário”, com Yul Brynner e Charlton Heston; arquitetonicamente falando, pensei no Pelourinho sem o show de cores. Treme é o nome de um dos bairros centrais da cidade, uma área não recomendada para turistas depois que o Sol se põe.
Falar tudo isso sobre a cidade é fundamental, pois “Treme” engloba todos esses elementos em sua narrativa. São histórias fictícias por natureza – “não somos documentaristas”, como define David Simon –, entretanto aglomeram inúmeros acontecimentos e personas reais. Cada personagem da série funciona como um catalisador para os diversos efeitos do Katrina, seja ele um escritor indignado, um dos chefes indígenas (que de índio não tem nada… será?), os inúmeros músicos e suas famílias, donos de lojas e restaurantes, policiais e todos os “novatos” atraídos pela perspectiva da reconstrução.
“Seguir acontecimentos históricos funciona bem com base, seguir acontecimentos individuais reais pode causar mais problemas do que gerar soluções”, explica Simon.
“Isso é função do jornalismo, não de uma série de TV. Egos são facilmente feridos nesse tipo de situação e tudo que não queremos é ver gente contrapondo cada momento de determinado personagem em cena. Não é o objetivo”.
Efetivamente, trata-se de um drama com função de registro histórico, afinal, por mais inventado que tudo possa parecer, a produção de Treme precisa representar Nova Orleans de forma responsável, afinal, boa parte da equipe e elenco fazem parte da comunidade.
E é aí que a simplicidade entra em cena. O elenco é liderado por Wendell Pierce – que conseguiu sair da cidade, com sua família, pouco antes do rompimento dos diques de contenção no Katrina –, e diversos outros atores também foram selecionados localmente. Com raríssimas exceções, a série é filmada em locações autênticas, injetando dinheiro na economia local e fazendo com que as pessoas participem do processo de produção.
“Acho que somos uma das últimas séries a filmar em película e gravar som ao vivo”, brinca Eric Overmeyer, figura sempre presente nos sets e a primeira linha do controle de qualidade da dupla. “Muita gente defende a mentalidade da ‘melhoria ou solução de problemas na pós-produção’, não concordo com isso. Se podemos fazer no set e em câmera, vamos fazer. Parece que estou enganando o público e o único faz de conta que aceitamos está no aspecto fictício das histórias que contamos, o resto tem que ser real”.
Com a preparação ideal e boa comunicação entre a equipe, muitos efeitos práticos reduzem custos de produção, aumentam a efetividade e permitem a Overmeyer e Simon transmitir a sensação de imersão que tanto almejam. Especialmente no aspecto musical.
Nova Orleans é o maior personagem da série e afeta todos os envolvidos. Essa foi uma decisão criativa das mais importantes.
Pude acompanhar as filmagens de um show da banda de Antoine Batiste (Wendell Pierce) num dos muitos pequenos palcos espalhados pelos subúrbios de Nova Orleans. A produção precisou de poucos props e os instrumentos da banda para encontrar o ambiente desejado, afinal, muita decoração já estava presente. Uma mesa de bilhar na sala que separava o bar da área de shows, pôsteres de celebridades locais e tiras de papel laminado davam conta do recado e toda a parafernália técnica (monitores, mesa de som, controle de luz e etc) ficava escondida no limite da área que seria filmada. Basicamente, a cena começava num show no palco, os personagens discutiam sobre escolhas artísticas em meio à canção e um deles saia de lá mandando todo mundo às favas, e uma terceira câmera – uma steady cam – seguiria a atriz através do bar.
Mesmo com uma porção musical relativamente pequena, todo o som estava armado como se trata-se de um grande show. E, para resolver o problema de atores interpretando músicos, como no caso de Rob Brown, a produção esconde os verdadeiros músicos perto dos atores para que os movimentos o som venha da mesma região do palco e, em certos casos, os movimentos do interprete possam ser simulados pelo músico e tudo soe o mais real possível.
Sempre me perguntei qual era o diferencial técnico da HBO, bom, aí está: um set de cinema para um programa de TV. Isso sempre foi claro, mas, finalmente, pude ver a coisa acontecer em primeira mão. Essa é uma das razões pelas quais a TV a cabo disparou tanto em qualidade, afinal, maior investimento nesse formato – “Roma”, “Spartacus”, “Sons of Anarchy”, “The Wire”, “Band of Brothers”, “Game of Thrones” e tantas outras – faz a diferença.
Séries semanais dos canais abertos podem até compartilhar alguns desses princípios, porém, por sua natureza enlatada, ABC, NBC, CBS e etc ainda insistem nas filmagens em estúdios em Los Angeles. Poder controlar tudo é uma vantagem, claro, mas sabemos que a casa de Castle é de mentira e que o cenário de “The Mentalist” é todo construído dentro da Warner. Há exceções, claro. “Supernatural” é uma delas e a alucinante “Southland” também, mas são casos diferentes e também pelo fato de estúdio não comportar seus objetos de estudo.
A possibilidade de filmagem em locação é algo fantástico e, claro, depende do orçamento, mas, no caso de “Treme”, é fundamental. Afinal, a cidade é o maior personagem da série e afeta todos os envolvidos. Essa foi uma decisão criativa das mais importantes, pois afetou roteiro, investimento em pré-produção e reduziu o tempo em pós, mas, acima de tudo, garantiu o envolvimento local.
“Nossa responsabilidade é com a história, porém seus rumos não podem nos tirar de Nova Orleans ou se distanciar da essência de quem vive aqui. Trouxemos investimento para cá depois do furacão e nosso respeito e paixão pela música é gigantesco, é quase uma questão de princípios manter quase tudo centralizado aqui na região”, concordam Simon e Overmeyer. Em termos de gastos com elenco, a série tem uma vantagem, pois os atores residentes normalmente são de fácil acesso enquanto os “importados” sempre tem incentivos extras para visitar a região. “É fácil fazer certas coisas quando todo mundo gosta de passar uns dias por aqui”, Overmeyer.
“Aqui é tudo muito simples, em termos da estrutura básica de filmagem”, explica Overmeyer. “Odeio essas comparações de qual é o melhor show, qual o melhor elenco, qual o melhor isso e aquilo. Simon não tem paciência para essas bobagens e eu não perco tempo. Cada programa tem seu público e seu estilo, todos podem ser bons a seu modo; claro que existe muita porcaria por aí e quem faz sabe que está nivelando por baixo. Vou dizer que somos melhores por gravarmos som ao vivo ou por filmarmos em película? Não. Foi uma escolha criativa. Como produtores, nossa função é garantir a qualidade do que fazemos e dar a impressão de que gastamos muito mais do que efetivamente investimos.”
Claro, quando se mistura criatividade de produção com tranquilidade financeira e a HBO garantindo exibição, é mais fácil fazer certas apostas, afinal de contas, no caso de falha, sempre há verba para correr atrás do prejuízo.
O resultado de tudo isso é um drama fantástico, alavancado pela interpretação apaixonada de John Goodman, um dos filhos mais ilustres da Big Easy, na primeira temporada, e agora segue firme com o Melissa Leo, Clark Peters e Wendell Pierce. Visualmente, “Treme” aposta num visual mais bruto e valoriza os contrastes de Nova Orleans, sejam eles as cores de seus moradores, os zeros em suas contas bancárias ou suas preferências musicais. É um verdadeiro caldeirão cultural e há muito mais que o famoso gumbo a ser apreciado, afinal, como John Boutte diz an música tema do seriado:
“Down in the Treme / We’re all going crazy”.
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