Nem zero e um, nem sal de prata. Cinema é feito de outra coisa.
Certas ideias obsoletas pegam-nos de surpresa quando nos reaparecem pela frente como almas penadas, presas ao mundo material e apegadas a uma existência passada. Arregalam-nos os olhos tanto por seus curtos comprimentos quanto por sua resistência viral e anacronismo crônico. Ideias que ressurgiram há pouco, quando começamos a pré-produção de nosso primeiro curta-metragem de ficção, um suspense de humor negro. Foi falar que ia fazer um filme e alguns logo de cara já perguntaram:
“- Vai fazer em película, né?…”
Não, não vou.
E não vou por causa de fatores como acesso, praticidade, qualidade equivalente das câmeras digitais 4K, controle do workflow e pós-produção, independência de cartéis e custo, coisas que por si só mereceriam exposições à parte. Mas o que realmente interessa aqui é a natureza insidiosa que esconde-se por detrás da pergunta feita ali em cima. Sustentada por preconceitos e gerida por desinformação, conveniência e/ou medo de inovação (e de perda de poder), essa essência mascarada por pretensos zelo e tradição, revela o abismo do atraso, da falta de conhecimento e do entendimento equivocado sobre o que é cinema aqui por essas bandas. E em todas as esferas e esquinas.
Era 2004, e “Fábio Fabuloso”, premiado documentário para o qual tive o prazer de criar ilustrações e animar algumas sequências, estava sendo exibido para convidados algumas semanas antes de seu lançamento.
Após a sessão, um cineasta brasileiro consagrado*, aproxima-se de meu sócio, diretor do filme, e, do alto da autoridade de quem há muito produz longas-metragens caros que não cobrem metade dos próprios custos via bilheteria, desfia sua sabedoria:
“- Bom seu filme, Pedro, gostei… Mas, vamos ser francos, cinema é como pintura. Quando um sujeito quer fazer uma obra de verdade, com profundidade, ele vai pintar a óleo numa tela e não desenhar a lápis num papel. Isso aí é feito em vídeo digital. Cinema de verdade é película, não é mesmo?”
Não, não é.
Seis anos antes, “Festa de Família” (Festen. Dinamarca, 1998) surgiu como o que pode ser considerado o exemplo mais claro da cinematografia moderna a demonstrar na prática, plano a plano, que o cinema como expressão artística independe completamente da mídia em que foi produzida. O digno cineasta brasileiro consagrado não deve tê-lo assistido. Se o fez, não entendeu.
Primeiro longa-metragem do controverso (para os que caíam na pilha ou simplesmente não tinham assunto) movimento Dogma 95, “Festa de Família” foi todo filmado com uma câmera mini-DV (mais precisamente uma Sony Handycam DCR-PC7, uma das primeiras do mercado nesse formato) e iluminado apenas e somente com as luzes nativas das locações, lustres, velas e abajures**.
Fazer filmes é ler e escrever audiovisualmente suas ideias.
E a despeito de todo o marketing safadão envolvido no modus-operandi do movimento, o filme ganhou os prêmios e as telonas do mundo inteiro apenas sustentado por sua qualidade inquestionável como obra de arte cinematográfica. Texto, atuação, som e direção impecáveis. E a imagem digital? Bem, subversivamente, a fotografia é uma das atrações justo por sua textura granulada que transparece de modo agressivo o vídeo em que foi registrada, em perfeita integração com toda a proposta conceitual do filme. Todos os seus elementos constitutivos desenvolvem-se magistralmente, desempenhando fluidos seus papéis em prol da narrativa, comunicando perfeitamente seus conceitos, significados e sentimentos.
Ou seja, ele foi criado utilizando da melhor forma o seu sistema de códigos e signos com o qual todo e qualquer meio de comunicação é construído: a linguagem. E em cinema esses signos são formados tanto por estímulos naturalmente cognitivos, visuais e sonoros, quanto pelas convenções estabelecidas de acordo com suas particularidades estruturais como meio de comunicação. Tudo acessível e de alcance praticamente universal.
Planos, cenas e sequências funcionam respectivamente quase como frases, parágrafos e capítulos de um texto literário. Aliás, na essência, mesmo contando as exceções de estilos cinematográficos que sejam derivados de improviso ou cinema vérité, o cinema mantém uma relação prática e direta com o texto, através de roteiro, primeira forma de registro e guia de sua própria existência. Cinema e literatura são basicamente desenvolvimento de narrativas e expressão de ideias. E assim como o significado e a cognição de um texto independe completamente do fato de ele estar impresso em um livro de capa dura, nas páginas de uma revista, jornal ou em um portal no monitor, em um blog na tela de um tablet ou de celular, não só o conceito, mas a própria mecânica da cinematografia se dão não em onde ela se exprime, mas sim em o que e como ela se expressa.
Fazer filmes (e comerciais, TV, videoclipes, institucionais, motivacionais, etc.) é ler e escrever audiovisualmente suas ideias. Fazer isso bem é entender esta gramática e saber compor nesta grafia.
Então, na próxima vez em que venha a encontrar-se diante do discurso primário e aparvalhado de um desavisado que condiciona cinematografia à mídia, você…
*Cineasta brasileiro consagrado: qualquer um que venha conseguindo verbas desde os tempos da Embrafilme para fazer filmes umbigo-referenciais que poucos veem e desses, poucos gostam.
**Nunca antes na vida havia escrito o plural de abajur.
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