Tom Morello pergunta para seu Ídolo John Fogerty, como montar um set list tendo colecionado tantos hits ao longo da sua longa carreira? John, com a sagacidade de quem com quase 80 anos nunca se perdeu no tempo responde, eu pergunto para o ChatGPT.
O nervo mais exposto do ser humano sempre foi a vaidade, e como no brilhante livro de Ian McEwan, Máquinas Como Eu, o humano vê aquilo que o separa do resto da animália ser engolido por uma entidade incansável e veloz que dizem estar nas nuvens, mas mora em galpões refrigerados onde transistores nanométricos de GPUs fabricados em Taiwan fazem os melhores roteiros para uma viagem à Mongólia com a mesma fluência que analisam uma ressonância magnética. Tudo que outrora colocava o humano no topo da cadeia alimentar e a declarar aberta a temporada do antropoceno, deixa uma pergunta incômoda: e agora, o que é ser humano?
Para pensar em uma resposta me apoio em três disciplinas: a arquitetura, o design e a imaginação. Sim, a imaginação como disciplina, talvez a mais importante, afinal, o que somos senão máquinas de imaginar e isso cessar, não seremos mais o que somos, humanos.
Vishaan Chakrabarti, arquiteto fundador da PAU em NY, desenvolve projetos de urbanismo que procuram equilibrar três valores importantes: liberdade, igualdade e comunidade. Esses princípios refletem a dedicação do escritório em criar espaços que não apenas abordam preocupações estéticas e funcionais, mas também servem para melhorar a equidade social e fomentar um senso de comunidade.
Em uma era que se diz racional em tudo, em especial no controle de custos, é norma a banalidade no urbanismo. Fica pelo caminho qualquer traço de cultura relevante para a composição da identidade das pessoas que vivem nesses lugares. Vishaan demonstra então como projetos de moradias populares não devem criar somente vivendas, mas lugares de convivência e cultura, lugares para humanos viverem e construírem histórias — não somente depósitos de famílias de baixa renda, mas eixos de produção de relacionamentos e cultura. Importante, 60% das pessoas no mundo vivem em moradias populares.
Percebo sem muito esforço que não é somente onde o dinheiro é curto e a demanda é enorme que a banalidade urbanística sussurra mediocridade. Nos projetos de alto custo (me recuso usar alto padrão) não são exceção pois a falta de caráter cultural também está presente. Nos grandes centros globais não conseguimos mais distinguir onde estamos, todos são iguais, a história se apaga e não nos enxergamos nestes grandes espelhos de vidro e aço.
As pessoas querem estar juntas. Apesar do trabalho de casa ter criado mais qualidade de vida, nós precisamos de momentos juntos. Essa ideia tem encontrado resistência por equívocos e miopia dos dois lados da equação. É inegável que somos mais felizes quando dividimos momentos, bons ou ruins. Somos mais sociais fora das redes. A urbanidade não é a banalidade da vida e pasteurização das relação, a vida em cidades é a capacidade de conectar diversidade, a fricção criativa. Se a física fala de espaço-tempo, a metafísica do social se vive em local-ocasião, somos convocados a imaginar e concretizar espaços para o humano ser.
O design, disciplina irmã da arquitetura, busca a melhor solução para os problemas humanos, mas e se as ferramentas e toda a estrutura para solução de problemas no ocidente está baseada em um modelo nativamente racista? Então nos resta imaginar novos modelos que consigam não somente se desviar do racismo, mas conceber soluções antirracistas.
Como a psicanalista Isildinha Nogueira diz, a pergunta não é se sou ou não sou racista, mas que tipo de racista sou. Como algo permeado em nós, é natural que esteja também na forma que comunicamos, criamos serviços e objetos, para criar de maneira antirracista é preciso antes verificar se a ferramenta que usamos não carrega o mesmo vício, muito provável que sim.
Chris Rudd, acadêmico e fundador da ChibyDesign, levou muitos anos de pesquisa e projetos para desenvolver um processo de design que ajudasse a responder esse desafio. Os modelo de design de solução tradicionais não conseguem endereçar problemas de racismo. Uma abordagem centrada no usuário, em um visão antirracista, passa-se de usuários para antes pensá-los como vitimas.
Uma diferença brutal de abordagem que influencia de forma radical a montagem de times, pesquisas, prototipagem e implementação. Abordagens antirracistas desafiam a natureza pois somos naturalmente racistas. Para isso Chris usa a transformação do Rio Chicago como exemplo. No início do século XX a cidade decidiu inverter o curso do rio com objetivo sanitários e logísticos. O esgoto da cidade despejado no rio fluía para o lago Michigan, única fonte de água para região. A inversão do seu fluxo propiciou o desenvolvimento da cidade e sua saúde. Assim são os projetos antirracistas que têm efeito igual ao ir contra o fluxo natural racista, gerando saúde e desenvolvimento amplo. É preciso imaginar além do que é natural e corrente para soluções que potencializam a inclusão.
Por último, a imaginação como disciplina fundamental humana. Sartre examinou este fenômeno humano em sua obra que leva o mesmo nome e colocou a imaginação como a presentificação de objetos ausente. Neste processo, o sujeito se afasta da percepção corrente do mundo real e cria uma realidade própria. Fantasiar é vital e é humano.
Bruce Sterling foi a melhor forma de encerrar o SXSW. As poucas pessoas presentes davam a sensação de uma reunião de algum tipo de sociedade secreta. Sterling, acadêmico e escritor de ficção científica, mais especificamente, um precursor do gênero cyberpunk, parece criar essa aura. Naquele espaço, há algo de contracultura dentro do SXSW.
Seu trabalho explora profundamente o papel essencial da imaginação na construção de futuros inexistentes, destacando a importância cultural e histórica das criações imaginárias que transcendem a realidade atual. Sterling introduz o conceito de design ficcional e protótipos diegéticos, utilizando exemplos como o comunicador clássico de Star Trek, enfatizando como essas criações influenciaram significativamente o avanço tecnológico real.
Além disso, a abordagem ressalta a importância da colaboração interdisciplinar, envolvendo especialistas em cibernética, arte eletrônica e design futurista, para que os objetos imaginados possam transcender sua origem fictícia, transformando-se em artefatos culturais legítimos, capazes de inspirar e moldar a percepção do futuro.
Se a IA, talvez associada à computação quântica, ou sozinha, responderá todas as perguntas, se desempenha muito bem todas as tarefas, se curará nossas doenças e aumentará nosso tempo de vida, o lugar do humano vai ser mais do que nunca o de imaginar. A imaginação para lidar com a abundância de recursos e de tempo, de criar futuros onde as questões sequer foram formuladas, em visualizar utopias que desviem da distopia que nos encontramos no agora.
No SXSW pude encontrar lugares para fazer novas perguntas, para me bagunçar. É verdade que o evento tem um lugar bem confortável para quem quer o mesmo, o de sempre. No entanto, em salas mais vazias que entramos muitas vezes porque erramos a sala, o evento é generoso em criar espaços para quem busca e compartilha novas perguntas, pistas de uma visão diferente sobre temas presentes e que resistem mudar, de eixos onde giram novas maneiras de observar futuros, que sobretudo precisam ser antes imaginados para então serem criados. O futuro será tão humano quanto ousarmos imaginá-lo.
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