Na era da desinformação: o desafio da publicidade em tempos de fake news

No momento em que plataformas gigantes como Meta e X recuam em suas políticas de moderação de conteúdo, anunciantes enfrentam um dilema cada vez mais complexo: como garantir que seus investimentos publicitários não acabem financiando a desinformação? Este foi o tema central do painel “Tackling Advertising in the Misinformation Era” no SXSW 2025, apresentado por Noor Naseer e Ryan Manchee da Basis Technologies.

“Desinformação é o risco mais urgente nos próximos dois anos para países, empresas e indivíduos”, alertou Naseer, citando um relatório recente do Fórum Econômico Mundial que coloca a desinformação como a principal ameaça global à frente de riscos ambientais, geopolíticos e tecnológicos.

O papel (involuntário) dos anunciantes no financiamento da desinformação

O painel destacou uma verdade inconveniente: são os anunciantes que, muitas vezes sem perceber, financiam o ecossistema de desinformação. “Quem financia isso? Somos nós. Nós somos os que financiam, quer pensemos assim ou não”, afirmou Naseer, ao se referenciar a platéia formada, em sua maioria, por profissionais de marketing.

Mesmo com os esforços para evitar sites problemáticos, pesquisas recentes mostram que dois em cada três anunciantes já compraram anúncios em sites contendo desinformação – número que os palestrantes consideram subestimado.

As consequências são graves: 70% dos usuários consideram pelo menos metade dos anúncios online como não confiáveis devido à desinformação. Isso não apenas compromete a eficácia dos anúncios, mas também a confiança no ecossistema publicitário como um todo.

Um ecossistema digital cada vez mais complexo

O investimento em mídia digital chegará a quase US$ 350 bilhões apenas nos EUA em 2025 – montante que supera em muito os US$ 80 bilhões combinados de impressos, outdoor, rádio e TV. Desse valor, 92% dos dólares destinados a display serão programáticos, o que torna ainda mais difícil para anunciantes controlarem onde seus anúncios aparecem.

“É uma bagunça”, explicou Manchee. “Há muitos intermediários diferentes. Você olha para todo o fluxo de fornecimento de mídia, todos os diferentes players que estão lá, há falta de transparência e isso cria alguns outros desafios.”

Esta complexidade cria oportunidades para que atores mal-intencionados observem onde estão ocorrendo as compras de mídia e criem sites “feitos para publicidade” (MFA – Made For Advertising) que imitam publicações legítimas, mas são otimizados para atrair cliques sem preocupação com a precisão factual do conteúdo.

O recuo das plataformas na moderação

O painel destacou como as principais plataformas de mídia social estão recuando em suas políticas de moderação. Naseer citou Elon Musk, que chamou a moderação de conteúdo de “uma pilha fumegante de esterco de cavalo” e disse que “as plataformas que a aplicam não são nada mais do que tiranos digitais tentando controlar o que podemos e não podemos dizer”.

Em janeiro deste ano, Mark Zuckerberg também anunciou uma mudança significativa para o Facebook e Instagram: “É hora de voltar às nossas raízes em torno da liberdade de expressão. Vamos nos livrar dos verificadores de fatos e substituí-los por notas da comunidade, semelhantes ao X, começando nos EUA.”

Esta mudança de postura coloca mais responsabilidade sobre os anunciantes para garantir que suas marcas não apareçam ao lado de conteúdo problemático.

Os desafios específicos de 2025

Manchee destacou três fatores que tornam 2025 particularmente desafiador para anunciantes:

  1. Divisão política extrema: “A divisão política não é novidade para ninguém, mas o país e o mundo estão mais divididos do que nunca. E isso só vai piorar antes de melhorar”, observou.
  2. Conteúdo gerado por IA: “Isto é incrível, inspirador e assustador. O nível, a velocidade para gerar conteúdo – estamos falando de conteúdo escrito, vídeo, deepfakes, imagens. E depois a escala para conseguir isso – é um problema enorme.”
  3. Recuo das plataformas na moderação: A remoção de proteções contra desinformação nas principais plataformas sociais cria um ambiente ainda mais complexo para marcas navegarem.

Nem toda desinformação é igual

Os especialistas reconheceram que nem todos os tipos de informação inexata devem ser tratados da mesma forma. Sátira e paródia (como conteúdo do The Onion) ou até mesmo conteúdo patrocinado claramente rotulado podem ser aceitáveis para muitas marcas.

No entanto, outras categorias representam riscos mais sérios: manipulação de fotos e vídeos, propaganda política, e fabricação de notícias (“fake news” propriamente dita) são tipos de conteúdo que a maioria das marcas prefere evitar.

Estratégias práticas para anunciantes

O painel ofereceu várias estratégias para anunciantes que desejam evitar financiar a desinformação:

  1. Avaliar as expectativas da marca: Entender o quão rigorosa a marca deseja ser em relação à suitability é o primeiro passo para qualquer estratégia.
  2. Combinar tecnologia e revisão humana: Mesmo com avanços em IA, a tecnologia sozinha não é suficiente. “Se todas as sessões de IA que estão acontecendo no South By, todas as notícias disponíveis no zeitgeist de hoje nos disseram alguma coisa, é que a tecnologia sozinha não é suficiente”, destacou Naseer.
  3. Priorizar a transparência: Tanto internamente quanto com parceiros, a transparência é essencial para identificar problemas potenciais.
  4. Realizar auditorias regulares: Revisar espontaneamente os dados de campanha para garantir que os anúncios não estejam aparecendo em sites sinalizados.
  5. Utilizar ferramentas de inteligência: Implementar ferramentas que possam classificar espaços como confiáveis versus não confiáveis.
  6. Conhecer sua cadeia de fornecimento: Questionar parceiros, exigir transparência e acompanhar regularmente.

Ferramentas disponíveis para anunciantes

Os especialistas citaram várias empresas que oferecem serviços para ajudar anunciantes a evitar conteúdo problemático:

  • NewsGuard e FACMATA: Classificam sites com base em critérios como fake news, propaganda, sexismo e viés.
  • Ad Fontes: Ajuda a determinar os vieses ou inclinações associados a qualquer tipo de notícia.
  • Scope3: Vai além da desinformação para considerar outros aspectos de mídia responsável, como testes de emissões de carbono.
  • Empresas de verificação de qualidade: DeepSee, AdLoox e DoubleVerify oferecem serviços para verificar se os anúncios estão sendo entregues em ambientes adequados.

O dilema da Meta e do X

Durante a sessão de perguntas e respostas, um participante questionou se há uma diferença significativa entre abandonar o X (antigo Twitter) e as plataformas da Meta, dada a mudança de abordagem de Mark Zuckerberg.

Naseer reconheceu que embora muitos anunciantes tenham abandonado o X, a situação com a Meta é mais delicada devido à sua escala. “Do ponto de vista de escala, é difícil competir com a Meta… Acho que neste momento os anunciantes estão dizendo, ‘O que eu posso fazer com que possamos estar confortáveis o suficiente?'”

Ela observou que, no momento, não houve uma desaceleração significativa dos gastos com a Meta, apesar das mudanças anunciadas nas políticas de moderação – possivelmente porque Zuckerberg foi mais cauteloso em sua comunicação do que Musk.

Um momento de incerteza

O painel concluiu que estamos em um período sem precedentes para a publicidade digital. “Este momento é tão novo que se alguém dissesse com certeza que sabe o que vai acontecer a partir daqui, em um ambiente imprevisível como o que estamos lidando agora, isso é algo que jornalistas de mídia e publicidade nunca viram antes”, afirmou Naseer.

A mensagem final foi clara: os anunciantes precisam se adaptar a este novo ambiente, questionando constantemente suas práticas, parceiros e estratégias para garantir que não estejam involuntariamente financiando a desinformação – sem, no entanto, abandonar os canais que oferecem alcance e eficiência que suas marcas necessitam.

Como disse um dos participantes, evocando a famosa cena de Portlandia sobre um frango local chamado Colin: os anunciantes precisam fazer as perguntas difíceis, assim como os clientes do restaurante fizeram sobre a procedência do seu jantar. A diferença é que agora a “procedência” não se refere apenas à qualidade ou origem do produto, mas à integridade do ambiente onde ele aparece.

➜ Acompanhe a cobertura B9, apresentada por Globo, do SXSW 2025 no canal b9.com.br/sxsw e no nosso Instagram.
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Publicador por
Carlos Merigo @cmerigo

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