Como IA e tecnologia estão transformando a saúde na Amazônia
Bons exemplos de como a tecnologia pode ser aplicada para resolver desafios reais
Conversando com veteranos do festival, que acompanham o SXSW há mais de uma década, é impossível não notar um incômodo recorrente: o perfil dos palestrantes mudou. O evento, que antes era dominado por acadêmicos, cientistas e empreendedores apresentando pesquisas e tecnologias ainda em fase experimental, agora vê um crescente número de palestrantes carismáticos, com discursos bem ensaiados, slides impecáveis e uma ótima narrativa — mas pouca inovação real.
Esse painel foi uma exceção. Em vez de fórmulas genéricas e previsões vazias, os painelistas trouxeram um panorama concreto de como a tecnologia pode ser aplicada para resolver desafios reais. O foco não estava no consumidor de alto poder aquisitivo, mas em populações vulneráveis que mais precisam de soluções inovadoras. Mais do que isso: os projetos apresentados são escaláveis, prontos para serem replicados em outros países em desenvolvimento. Com uma plateia diversa, composta por pessoas de diferentes partes do mundo, essa troca não ficou apenas no campo das ideias — ela pode inspirar mudanças reais em contextos semelhantes.
Sidney Klajner: IA para diagnóstico e acesso à saúde
Com mais de 5 mil quilômetros de rios navegáveis e centenas de comunidades isoladas, a Amazônia enfrenta um enorme desafio logístico para a oferta de serviços de saúde. Muitos habitantes precisam viajar dias de barco para conseguir atendimento médico especializado. Nesse contexto, soluções tecnológicas como inteligência artificial e telemedicina são essenciais para democratizar o acesso à saúde.
Sidney Klajner, presidente do Hospital Israelita Albert Einstein, trouxe uma perspectiva prática sobre o uso da IA no diagnóstico e no acesso à saúde na Amazônia. Uma das iniciativas é um aplicativo de IA treinado para detectar leishmaniose, uma doença endêmica na região. Com apenas um celular, agentes de saúde podem fotografar lesões na pele dos pacientes e obter, em tempo real, uma estimativa de probabilidade da infecção. O objetivo é reduzir diagnósticos tardios e evitar que a doença se agrave.
Outra solução apresentada foi um sistema de IA para assistência a gestantes em áreas com poucos obstetras. O modelo foi treinado com mais de 2.000 artigos científicos focados no sul global e ajuda médicos generalistas a identificar riscos precocemente, sugerindo exames e comportamentos preventivos. “Se conseguirmos reduzir a mortalidade materna na Amazônia com IA, podemos aplicar essa solução em qualquer outro lugar do mundo onde faltam especialistas”, afirmou Klajner.
Além disso, ele destacou a importância da telemedicina. Desde 2021, o Einstein implantou um programa de teleconsultas que já realizou mais de 300 mil atendimentos, reduzindo em 95% a necessidade de deslocamento dos pacientes. “Para alguém que precisa viajar 24 horas de barco para ver um médico, uma consulta por vídeo pode ser a diferença entre um problema resolvido e uma emergência.”
Marcia Castro: dados para transformar a saúde pública
A Amazônia ocupa cerca de 5 milhões de km² no Brasil e abriga aproximadamente 28 milhões de habitantes, incluindo diversas comunidades indígenas e ribeirinhas que enfrentam desafios críticos de acesso à saúde. O isolamento geográfico, a escassez de profissionais e os impactos das mudanças climáticas tornam essa região um dos maiores desafios para a saúde pública global.
Marcia Castro, professora de Demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Universidade de Harvard, apresentou a importância do uso estratégico de dados para direcionar políticas públicas. Segundo ela, o Brasil tem uma das melhores infraestruturas de coleta de dados em saúde do mundo, mas ainda há um enorme desafio: transformar informação em ação.
Seu foco foi a relação entre saúde e desmatamento. Dados mostram que o avanço do garimpo ilegal e a destruição da floresta aumentaram drasticamente os casos de malária em comunidades indígenas. “Se a mineração ilegal na Terra Yanomami não tivesse crescido, poderíamos ter evitado mais de 100 mil casos de malária”, destacou.
Para enfrentar essa crise, sua equipe desenvolveu um sistema de alertas semanais para monitorar surtos de doenças tropicais. Usando imagens de satélite e inteligência artificial, esse sistema cruza dados ambientais — como desmatamento e mineração ilegal — com informações epidemiológicas para prever onde doenças como malária e leishmaniose podem se espalhar. A ideia não é apenas prever epidemias, mas impedir que elas aconteçam. “Se fizermos isso certo, eu quero errar todas as semanas — porque isso significará que alguém usou os dados para evitar o problema antes que ele ocorresse.”
César Buenadicha: inovação e desafios para escalar soluções
César Buenadicha, representante do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), trouxe a visão sobre os desafios de escalar inovações tecnológicas na Amazônia. Ele destacou como o acesso à conectividade foi visto por anos como a solução definitiva para inclusão, mas a realidade mostrou que apenas fornecer internet não basta.
“Conectividade sozinha não resolve problemas de saúde. Hoje, temos comunidades ribeirinhas com internet, mas isso não significa que estão acessando serviços essenciais. Precisamos garantir que a tecnologia seja usada para o bem, e não apenas para aumentar o consumo de redes sociais”, alertou.
Buenadicha destacou também um projeto financiado pelo BID que está testando o uso de drones para entrega de medicamentos em áreas isoladas. Com a crescente crise climática e secas recordes tornando os rios intransitáveis, garantir o transporte de remédios e vacinas se tornou um dos maiores desafios da região.
Outro ponto levantado foi a necessidade de adaptação da inteligência artificial para culturas locais. Ele mencionou um projeto em andamento para treinar modelos de IA em línguas indígenas, reduzindo a exclusão de comunidades que não falam português. “Se você perguntar algo ao ChatGPT em guarani, ele pode simplesmente inventar uma resposta. Precisamos de IA que compreenda e respeite os contextos locais”, disse.
IA e tecnologia a serviço da equidade
O painel destacou que inovação na saúde não é apenas sobre novas tecnologias, mas garantir que essas ferramentas cheguem a quem mais precisa. Desde o uso de IA para diagnóstico precoce até sistemas de previsão de epidemias e entregas automatizadas de medicamentos, as iniciativas apresentadas apontam para um futuro onde a tecnologia pode reduzir desigualdades em saúde — mas isso só será possível se for acompanhada de políticas públicas e investimentos estruturais.
César Buenadicha deixou um desafio para a plateia: como levar startupeiros para onde eles são mais necessários? Muitos dos empreendedores que desenvolvem tecnologia de ponta nunca pisaram em uma comunidade remota, nunca viram de perto os desafios de populações vulneráveis. Como mudar isso?
Como garantir que as mentes mais inovadoras do mundo estejam criando soluções para quem mais precisa, e não apenas para quem pode pagar mais?
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