De utopia financeira a cassino político: a hipocrisia revelada do universo cripto
No SXSW 2025, Molly White mostra como a indústria compra influência política e celebra o fim da regulamentação enquanto investidores perdem tudo
Uma das sessões mais aguardadas do SXSW 2025 reuniu o jornalista Brian Merchant em entrevista com Molly White para uma conversa franca sobre o atual momento da indústria cripto. White, que em 2021 era uma voz solitária de crítica ao setor, hoje é reconhecida como uma das analistas mais perspicazes do ecossistema cripto, documentando meticulosamente falhas, fraudes e promessas não cumpridas.
Da margem ao centro do poder
O discurso libertário cripto deu lugar a uma luta por poder e influência política
“É um pouco diferente agora do que era quando comecei”, explicou White sobre sua trajetória acompanhando o mundo cripto desde 2021. “Antes eu falava verdades para um tipo diferente de poder, muito menos poder político, muito mais poder da indústria.”
O que mais impressiona White é como as mudanças recentes contradizem a própria ideologia original das criptomoedas. “Me interessei pelos tópicos que as pessoas de criptomoedas tendem a falar: moeda separada do governo, não controlada por instituições financeiras. A ideologia era interessante porque, de certa forma, é bastante convincente”, afirmou.
A ironia da revolução que se rendeu ao sistema
Essa contradição fundamental tornou-se ainda mais evidente com a recente aproximação entre cripto e política tradicional:
“É estranho ver essa ideologia praticamente derreter à medida que as coisas mudaram politicamente. Agora, a intervenção do governo parece ser algo bom para grande parte da indústria cripto. As pessoas do mundo cripto estão empolgadas que a Fidelity e a BlackRock estão falando sobre Bitcoin.”
O início da vigilância
White, que tinha formação como programadora e era conhecida por seu trabalho na Wikipédia, entrou no mundo cripto ao perceber um desequilíbrio na cobertura da mídia. Enquanto veículos tradicionais destacavam histórias de jovens que ficaram milionários com Dogecoin, ela observava casos de pessoas que perdiam tudo em golpes ou projetos abandonados por desenvolvedores.
“Meu primeiro pensamento foi escrever um artigo na Wikipédia sobre isso. Mas a Wikipédia não é o lugar certo para escrever sobre algum esquema aleatório que ninguém realmente conhece. Então decidi criar um site para acompanhar esses casos cronologicamente”, explicou sobre a origem do Web3 is Going Just Great.
Um novo campo de batalha político
Meme coins transformaram o mercado cripto em um grande cassino global
Merchant e White discutiram as mudanças dramáticas no cenário político americano em relação às criptomoedas, especialmente considerando que agora temos um presidente com meme coins.
“A indústria cripto foi muito explícita em seus objetivos de instalar reguladores, legisladores e presidentes favoráveis às criptomoedas”, afirmou White. “Eles foram muito claros sobre sua aversão à SEC e sua agenda regulatória na última administração, e agora vimos a rápida desmontagem de casos de fiscalização cripto contra os mesmos doadores.”
White aponta casos concretos: “A Coinbase foi um dos maiores doadores cripto neste último ciclo. O caso da SEC contra eles foi arquivado com prejuízo, o que significa que não pode ser reaberto. Vimos o mesmo com a Kraken, outro grande doador. Esses casos estão sendo arquivados. O caso Ripple provavelmente será arquivado, assim como os casos contra a Binance. É uma limpeza completa.”
A promessa abandonada de proteção ao consumidor
Quando questionada sobre as empresas que alegam apoiar “regulamentações claras”, White identifica uma contradição: “Quando essas empresas falam sobre regulamentação, dizem que querem ‘regras claras’ que permitam fazer negócios enquanto protegem os consumidores contra fraudes. Isso parece razoável, porque quanto mais regulamentação responsável você tem, mais confiança os consumidores terão.”
No entanto, “as ações dessas empresas contradizem isso completamente. Elas comemoram o arquivamento de casos, incluindo aqueles que alegam fraude. Recentemente, a SEC anunciou que não consideraria meme coins como parte de sua jurisdição, sem indicar quem poderia regulamentá-las.”
O meme coin presidencial e a normalização do absurdo
Um dos tópicos mais surpreendentes da conversa foi a existência de uma meme coin do presidente Trump, algo que muitos na própria indústria cripto inicialmente acharam alarmante.
“Foi chocante não apenas para céticos como eu, mas também para pessoas da indústria cripto. Na noite em que a moeda foi lançada, houve um momento inicial de ‘o que é isso?’, seguido de ‘a conta do Trump no Twitter foi hackeada?’. E então perceberam: ‘Não, isso é realmente o presidente lançando uma meme coin’. Houve uma súbita onda de horror na indústria cripto, com a reação de que ‘todos vão achar que cripto é uma fraude agora’.”
A força por trás das meme coins
White destaca como a proliferação de meme coins representa uma mudança fundamental no setor: “Com meme coins, não há caso de uso. Esse é o ponto. Não existe um produto web3 nos bastidores onde se compra o token.”
A questão fundamental passa a ser o timing: “Isso era algo que demorei para entender quando comecei a falar com pessoas do mundo cripto. Eu dizia ‘isso é um golpe, certo?’ e mostrava algum projeto que prometia 50% de rendimento anual. Eles respondiam ‘ah, sim, com certeza’. Então eu perguntava ‘por que você está envolvido nisso?’ E eles diziam ‘bom, se eu entrar e sair rápido o suficiente, posso ganhar muito dinheiro’.”
Um reflexo da desigualdade econômica
White conecta o fenômeno cripto a problemas socioeconômicos mais amplos: “Há essa sensação de que você não consegue mais vencer trabalhando das 9h às 5h, ou mesmo em dois empregos. Você não vai realizar aquele sonho de comprar uma casa com cerca branca e sustentar a família. Se você quer mudar suas circunstâncias, precisa assumir riscos insanos, essencialmente apostando.”
“Muitas pessoas sentem que simplesmente não existe um caminho para melhorar suas circunstâncias. Então surge esse pensamento: ‘vamos tentar algo louco como uma roleta e ver se conseguimos, como aquele cara que vimos no jornal’.”
A promessa quebrada da igualdade financeira
O setor cripto não democratizou as finanças, apenas criou uma nova elite bilionária
Um dos aspectos mais frustrantes para White é como o mundo cripto abandonou suas promessas iniciais de democratização financeira:
“Nos anos 2021-2022, havia essa ideia de que cripto ajudaria com a desigualdade de riqueza. Havia memes como ‘WAGMI’ (We’re All Gonna Make It – Todos Vamos Conseguir), como se todos fossem ficar ricos juntos. Você não ouve mais isso.”
O que aconteceu foi o oposto: “A ideia era que cripto seria o grande equalizador. Essa foi uma promessa que realmente morreu com as mudanças políticas. As elites cripto se tornaram horrivelmente ricas, bilionárias com compras antecipadas de Bitcoin ou empresas que lucram com taxas sobre investidores de varejo. Enquanto isso, o investidor comum talvez tenha Bitcoin e espera ter escolhido os tokens certos.”
O futuro sob influência da indústria
Na visão de White, estamos testemunhando uma perigosa concentração de poder: “Em vez de criar este mundo financeiro utópico, dando a todos acesso a instrumentos financeiros que antes eram ferramentas dos ricos, agora temos a aparência disso, mas sem proteções ao consumidor, sem investigações de fraude.”
“É uma versão predatória do sistema financeiro tradicional onde as pessoas são completamente eliminadas. Isso aconteceu repetidamente, especialmente em 2022, quando tantas empresas quebraram. A Celsius é um excelente exemplo: havia um cara no palco dizendo que ‘bancos não são seus amigos’, que empresas cripto como a dele dariam todos os retornos que os bancos estavam avaramente guardando para si mesmos. Ele dizia que eram mais seguros que um banco, mais confiáveis que um banco. Na sequência, todo o dinheiro desapareceu, o cara está sendo processado por fraude, e as pessoas ficaram surpresas ao descobrir que não havia seguro.”
O risco político da desregulamentação
Líderes políticos agora promovem criptomoedas como se fossem produtos de campanha
Quando Merchant perguntou se haveria um custo político para a atual aproximação entre o Partido Republicano e a indústria cripto, especialmente se muitas pessoas perderem dinheiro, White foi enfática:
“Sim, se eu estivesse trabalhando na indústria cripto, estaria muito preocupada com isso. Pessoas que acreditam que vamos alcançar o nirvana capitalista eliminando todos os reguladores e deixando o mercado livre resolver tudo vão aprender uma lição difícil: as pessoas estão acostumadas a ter proteções ao consumidor.”
White destaca como essas proteções são fundamentais para a economia americana: “É em parte por isso que os mercados americanos são tão fortes, porque existe um regime regulatório forte que evita que a maioria das pessoas tenha que inspecionar as letras miúdas do banco, preocupadas que o banco possa ficar insolvente. Elas simplesmente depositam o dinheiro e, se o banco quebrar, seus US$ 250 mil estão protegidos. Isso não existe no mundo cripto.”
Uma mudança de percepção
Apesar da recuperação nos preços das criptomoedas, White acredita que a percepção pública mudou fundamentalmente: “Em 2022, vimos uma grande mudança na percepção pública do mundo cripto. Passamos de manchetes sobre ‘web3 será o futuro?’ para manchetes sobre a FTX colapsando e pessoas perdendo dinheiro.”
A jornalista alerta que a indústria está ignorando essa mudança: “Mesmo com a recuperação dos preços, não acho que a percepção pública tenha mudado tanto. A pessoa média não está pensando ‘sim, cripto é o futuro, será a próxima revolução financeira’.”
Dinheiro político e a ilusão do “eleitor cripto”
White dá crédito à estratégia política da indústria cripto: “Eles executaram uma estratégia política muito inteligente no último ciclo eleitoral. Além de arrecadar muito dinheiro para políticos, também criaram a ideia de que ‘cripto é algo com que as pessoas se importam’, que existe um ‘eleitor cripto’ que poderia afetar sua campanha.”
E o Bitcoin?
Quando questionada sobre como distingue entre Bitcoin e outras criptomoedas, White responde pragmaticamente: “Depende da circunstância. Há casos em que faz sentido falar especificamente sobre Bitcoin. Mas quando se trata do argumento ‘Bitcoin, não cripto’, não dou muita credibilidade. Bitcoin é uma criptomoeda, é uma entre muitas.”
Na conclusão do painel, White deixou claro seu posicionamento: não defende a proibição das criptomoedas, mas sim regulamentações que protejam os consumidores. “O fato de eu não comprar cripto e não especular com criptomoedas não significa que eu ache que ninguém deveria ter permissão para fazê-lo. Não vou ao cassino, não é minha praia. Mas acho que as pessoas deveriam ter permissão para fazer isso.”
Seu ponto central, no entanto, permanece firme: se a promessa inicial do mundo cripto era romper com o sistema financeiro tradicional, o que se desenha agora é uma repetição de seus piores vícios, desta vez sob a fachada da inovação digital.
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