O universo tipográfico de “Cuphead”
Uma análise da adaptação do jogo para a Netflix aos olhos dos letterings usados
Em 2017, depois de alguns anos de expectativa do mercado gamer, foi lançado “Cuphead”, primeiro jogo do estúdio canadense MDHR. Aclamado por crítica e público, o jogo chamava atenção especialmente por dois aspectos: a dificuldade das fases e a direção de arte. No mesmo ano, foi premiado no The Game Awards nas categorias Melhor Jogo Independente e Melhor Direção de Arte.
Já na época, fiquei fascinado pelo pedaço tipográfico dessa direção de arte. As fontes e os letterings do jogo eram tantos e tão atraentes que mereciam uma análise à parte. Entrevistei um dos criadores do jogo e os dois designers responsáveis pela tipografia em “Cuphead” e escrevi uma análise-reportagem sobre o tema – o texto foi publicado no B9.
Agora, quase cinco anos depois, acabou de ser lançada na Netflix a série “The Cuphead Show”, que leva o universo do jogo para o formato de televisão. Resolvi voltar ao tema e falar também sobre a tipografia na série. O texto que segue é uma mistura entre o material que reuni em 2017 sobre o jogo e uma nova análise-reportagem sobre a série da Netflix. Para essa, entrevistei o designer responsável pelo desenho tipográfico na série, Tapan Gandhi.
O grande mote artístico de “Cuphead” é emular o estilo das animações dos anos 20 e 30 (Mickey, Betty Boop e Gato Félix, por exemplo). Na história, os irmãos Cuphead e Mugman (traduzidos para o português como Xicrinho e Caneco), viajam pela Inkwell Isle (Ilha Tinteiro) tentando ganhar dinheiro e apostando suas almas com o diabo.
Assim como os personagens e os cenários, as letras do universo Cuphead também remetem aos anos 20 e 30. Por isso, o jogo se utiliza de layouts com várias fontes diferentes numa mesma tela, muita coisa feita à mão (ou que é feito para parecer assim), texturas e irregularidades que seriam típicas da época.
Estamos falando de uma época onde o lettering à mão era muito mais acessível que o uso de fontes (que, até então, eram de metal), o que significa que essa era a solução mais plausível na maioria das vezes. E mesmo quando fontes eram usadas, geralmente lhes faltavam alguns recursos que hoje são quase banais. Como por exemplo pares de kerning, que servem para resolver problemas de espaçamento entre caracteres específicos. A maioria das fontes da época não teria esses pares, então é comum que vejamos as composições tipográficas dessas décadas com o espaçamento um tantinho inconsistente.
O jogo faz de tudo para ser fiel ao visual da época, inclusive contando com designers especializados em tipografia no processo. Além dos designers da equipe da produtora que executavam parte dos letterings, participaram do desenvolvimento também Warren Clark, artista de lettering, e Mark Simonson, designer de tipos. Simonson é um dos grandes type designers do mundo, o que transparece como os desenvolvedores deram importância à tipografia no jogo.
Segundo Chad Moldenhauer, um dos criadores do jogo, a ideia de convidar o Mark Simonson como consultor e designer do jogo veio depois de ler seu artigo “The Artist vs. The Lettering Artist”. Nele, Simonson mostra como o filme “O Artista” (cujo enredo se passa na década de 1920) peca na representação tipográfica dessa época. Os criadores de Cuphead não queriam cometer os mesmos erros do filme e, por isso, queriam o Mark Simonson na equipe.
Segundo o designer: “Você tem que entender as limitações da composição de tipos naquela época; como eles eram espacejados, todas as irregularidades no alinhamento e outros elementos que criam aquela aparência”.
Essa preocupação garante que o vemos no jogo seja uma representação precisa não só do que seria feito nas décadas de 1920/30, mas também do que era possível ser feito (e esse detalhe muda tudo).
Em “The Cuphead Show” – a série –, as fontes e letterings do jogo não foram reaproveitados. Novas fontes e títulos foram desenhados sem ter o design do jogo como base. Tapan Gandhi, designer creditado por “font design”, diz que nem mesmo parou para olhar o jogo como uma forma de inspiração para a série. Tapan desenhou duas fontes – usadas nos créditos – e os doze de letterings que abrem cada episódio da primeira temporada.
Tapan é designer de personagem na série e acabou sendo chamado para a função de letrista/type designer também. Admite que, apesar de já ter feito uma fonte para uma série da Disney anteriormente, não possui uma relação muito aprofundada com a tipografia, além de uma afinidade natural. Ou seja, ao contrário do jogo, a série não contou com designers especializados em tipografia.
Por um lado, é triste que todo o trabalho minucioso do jogo não tenha sido considerado. O nível de envolvimento e minúcia com a tipografia no jogo é de um nível que poucas vezes vi numa obra. Então é uma pena que a série tenha dado um passo atrás nesse aspecto, quando poderia ser justamente o veículo para potencializar o trabalho dos designers. Por outro lado, de maneira geral, a série dá conta do recado. E brilha especialmente com as cartelas de título, que são muito divertidas de acompanhar mudando completamente a cada episódio.
Também vale reparar que o jogo tem muito mais situações onde a tipografia aparece. São diferentes áreas no jogo, diferentes tipos de fase, diferentes menus, intervenções escritas dentro de cada fase ou batalha, tela de fim de fase etc. São tantas que é até difícil contar quantas fontes existem no jogo, já que para cada situação é usada uma tipografia diferente.
“Cuphead” utiliza a tipografia como importante elemento narrativo (não apenas expositivo) em momentos chave do jogo. Qualquer pessoa que tenha jogado deve concordar: a aparição das frases “A KNOCKOUT!” ou “BRAVO!!!” preenchendo quase toda a tela nos finais de fase gera uma sensação de recompensa à altura da alta dificuldade de vencer cada etapa do jogo.
A tipografia ainda ajuda a estabelecer o ambiente de cada fase: as batalhas com “chefões” são iniciadas com a frase “WALLOP!” escrita toda em letras maiúsculas, enquanto que as fases de plataforma (sem chefes) iniciam com “Run’n Gun!” escrita com maiúsculas e minúsculas e em tamanho menor na tela, de forma menos urgente. As letras ainda aparecem como elemento narrativo na forma de onomatopeias, no decorrer de algumas fases do jogo.
Os letterings que intervém na tela durante as fases do jogo todos se utilizam de formas triangulares. Embora não façam parte de uma fonte, essa é uma das características que dá unidade a eles. A solução é interessante porque exagera e torna “cartunesca” uma morfologia típica do movimento Art Déco, então funciona como mais uma forma de inserir a energia dos anos 1920/30 no jogo.
Outra inspiração para a tipografia do jogo e da série está nas cartelas de títulos de filmes do cinema mudo.
Na cartela que abre as batalhas, Cuphead referencia diretamente o cinema mudo. O design dessa tela foi inspirado na cartela de título do curta-metragem “Bimbo’s Initiation”, estrelando a personagem Betty Boop. A composição gráfica da cartela do filme serviu de base para o design da cartela do jogo, mas não só isso. Também uma fonte customizada foi criada para o jogo a partir da tipografia que vemos no título “Bimbo’s Initiation”.
Outras fontes do jogo também tentam manter uma espontaneidade característica do desenho manual. Isso acontece claramente nos balões de fala do jogo, onde para a fonte aplicada foram criados caracteres alternativos e um mecanismo de texto adaptado para que cada frase não repita as mesmas formas dentro de um balão. A fonte foi inspirada em letterings do desenho Gato Félix.
Já na série “The Cuphead Show”, o pacote tipográfico é composto por quatro fontes (duas delas feitas especificamente para a série), doze letterings de abertura de episódio e alguns letterings pontuais ao longo das cenas.
Apesar de ser um projeto diferente, a série habita o mesmo universo do jogo, partindo também da mesma concepção estética. A inspiração em cartelas do cinema mudo continua. Aqui, é aplicada nos títulos de cada episódio:
Como no jogo, a série não tem medo de seguir suas referências. A abertura do episódio “In Charm’s Way” copia diretamente o logo do filme Young America.
Cada cartela tem uma linguagem própria, mas todas unidas pela referência do cinema dos anos 1920/30. Tapan Gandhi diz que orgulha-se especialmente do trabalho que fez nos episódios “Baby Bottle” e “Roll the Dice” – além do “In Charm’s Way”.
A ideia de que cada episódio possa ser representado de maneira única através da tipografia é incrível. Casa bem com a proposta da série, onde cada episódio tem uma história própria e pode ser assistido isoladamente. Ao mesmo tempo, cada um encaixa bem no todo, assim como os letterings, que apesar de muito diferentes entre si, se acomodam numa mesma identidade geral.
Os doze letterings são interessantes, têm soluções tipográficas surpreendentes e acertam bem o tom de cada episódio que está para começar. A colorização também ajuda, individualizando cada capítulo, mas unindo todos pela textura nostálgica das cores.
O maior indicador de que as cartelas funcionam é que, vendo a série, dá vontade de assistir o episódio seguinte só para ver como vai ser o título de abertura de cada episódio. E assim que vemos o lettering, dá vontade de continuar assistindo para entrar na ambientação narrativa que ele criou. Ponto para a direção de arte.
Outras cartelas que se destacam:
Passando dos letterings para as fontes, duas foram desenhadas para a série:
Elas são usadas nos créditos de abertura e uma delas também nos créditos finais. Segundo Tapan, os nomes delas são Primary Cuphead Font e Secondary Cuphead Font. Esses nomes são sem graça, então para identificação no texto, darei novos. A tipografia que você vê compondo os nomes nos créditos é a Caneco. A que compõe os títulos, a Xicrinho.
A Caneco é, de longe, minha favorita. Ela tem uma energia cartum imbatível, qualquer palavra parece muito divertida nela e a cada vez que ela aparece na tela surge um caractere novo com alguma solução interessante. Adoro, por exemplo a forma como a barra do meio da letra /E se estende para fora da letra. Algumas inconsistências aqui também são bem vinda, como o /N que parece mais pesado do que o resto das letras. A base Art Déco também aparece aqui. Letras pontudas, traços exageradamente deslocados (como a barra do próprio /E e a o /H) e formas clássicas como o /P estreito.
A Xicrinho, por outro lado, me parece um pouco fora de contexto. Me incomoda a altura-x muito baixa (ou seja, as maiúsculas e os traços ascendentes e descendentes são muito maiores que as minúsculas), que tiram presença dela e dão um ar de elegância que parece deslocado do todo. Na tipografia usamos um parâmetro muito impreciso, mas muito útil, a “quirkness” de uma fonte. Basicamente, o fator “esquisitinho divertido”. Sinto que a Caneco é o máximo de quirky que dá para ser, enquanto a Xicrinho é pouco quirky e aposta numa finesse desnecessária.
De todo jeito, o trabalho na série faz jus ao que veio antes. Comecei essa nova pesquisa certo de que o trabalho do jogo era muito superior, olhando de canto para o que foi feito na série. De fato, a tipografia em “Cuphead” tem mais extensão do que em “The Cuphead Show”, tanto pela natureza dos dois produtos, como pelo nível de atenção que os criadores deram a esse aspecto do jogo. Por outro lado, fui me afeiçoando aos letterings da série, que são um recurso narrativo brilhante, e pela fonte Caneco que, aliás, poderia muito bem estar entre as fontes do videogame. Além do mais, o logotipo da série conseguiu mudar de direção em relação ao do jogo e ainda assim continuar ótimo, mantendo o espírito da história. No final das contas, o universo tipográfico de “Cuphead” continua bem servido.
Valter Costa é designer gráfico e escreve. Trabalha na Plau Design, estúdio especializado em tipografia, onde é diretor de conteúdo.
Comentários
Sua voz importa aqui no B9! Convidamos você a compartilhar suas opiniões e experiências na seção de comentários abaixo. Antes de mergulhar na conversa, por favor, dê uma olhada nas nossas Regras de Conduta para garantir que nosso espaço continue sendo acolhedor e respeitoso para todos.