- Cultura 16.fev.2022
Filme de fugas, “Licorice Pizza” rende o passado pelos olhos da juventude
Paul Thomas Anderson volta aos anos 70 para encenar comédia adolescente que registra perturbações da época e faz ode ao tempo presente
A temporada de premiações em si sempre viveu de pequenas coincidências e contradições fascinantes, mas poucas se equiparam ao Oscar deste ano e a opção deliberada por considerar tanto “Licorice Pizza” e “Belfast” como candidatos ao disputado prêmio de melhor filme. Vivem-se tempos de nostalgia e resgates constantes do passado nos principais círculos da indústria, claro, e mesmo nesses termos nada poderia preparar o público para um eixo tão polarizado quanto o representado por estas duas obras – o efeito explosivo só se dissolve pela inserção de “A Mão de Deus” e principalmente “O Beco do Pesadelo” na equação.
Isso porque há uma digressão radical na forma como Paul Thomas Anderson e Kenneth Branagh se referem e lidam com suas respectivas dimensões anteriores, embora o procedimento em tese se mantenha no “calor humano” envolvido nas reconstruções de época, apenas quatro anos e um oceano de distância. Situado na Irlanda do Norte e no auge dos conflitos de 1969, “Belfast” é um filme que se relaciona com o passado quase que por fetiche, numa obsessão materialista que passa por boa parte dos atos da jornada de seu protagonista infantil. A direção de Branagh praticamente corre ao sinal de qualquer conflito, contente demais na reprodução da memorabilia pessoal pela fotografia em preto e branco e no esforço de recriar um maravilhamento em meio ao caos que, fora daquele momento, soa banal e quase tóxico aos fins pretendidos. Uma idealização, portanto.
Já “Licorice Pizza” faz um movimento parecido, mas na direção oposta e mesmo imbuído de um sentimentalismo análogo. Despido de intenções autobiográficas – segundo o diretor, são histórias imaginadas a partir de causos muito específicos vividos por outras pessoas durante sua juventude – Anderson remonta o vale de San Fernando de 1973 numa situação paradoxal de distanciamento e proximidade com o retrato, nunca se rendendo de fato ao enlaço do reflexo entre criador e obra. É possível dizer que o cineasta parte de uma história de amor inviável entre um adolescente de 15 anos e uma garota de 25 anos para registrar um cenário único, é verdade, mas é como ele trafega por esse espaço que torna os efeitos da produção tão singulares na concepção, intoxicantes por um questão de propósito. Um curto-circuito da fórmula? É difícil definir neste primeiro momento.
Essa proposta não é nem um pouco nova no cinema de Anderson – não bastando as comparações inevitáveis com seu outro filme setentista, “Boogie Nights”, seu último trabalho foi literalmente sobre um romance tóxico – mas sua aplicação sutil aqui ganha um contorno de maiores nuances pela configuração das peças. Protagonistas das próprias trajetórias, tanto Gary Valentine (Cooper Hoffman) quanto Alana Kane (Alana Haim) existem em condição de eterno movimento: ele por ser um ator mirim de relativo sucesso que agora busca o próximo passo da vida antes que as opções se esgotem, ela uma mulher adulta que procura qualquer saída da casa dos pais e do próprio vale. São duas narrativas tradicionais do filme adolescente que se entrelaçam e se afastam a todo momento (como é digno de produções do tipo), e o calor californiano serve a princípio como único elemento capaz de revelar o perseguidor fantasmagórico do qual ambos escapam constantemente junto da câmera – se há algo para se afirmar nessa temporada, é de “Licorice Pizza” ser de longe o título com maior número de cenas de corrida.
Mas dentro do curso dos vários acontecimentos que permeiam a trama, fascina que a direção de Anderson nunca se baseie exclusivamente no arco daqueles personagens, mas nos espaços onde a ação se desenrola. Se em certo nível “Licorice Pizza” é um filme composto de pequenos contos, isso se dá sobretudo porque a narrativa dá conta de compor cada cenário como um imenso castelo simbólico daquele microcosmo de relações, de transitórios como a escola e o estúdio de gravações à palcos maiores como a loja de colchões de água, o bar mais popular da região e a mansão de Jon Peters (Bradley Cooper). Nada é glorificado ou tratado como santo, porém, como se Anderson reconhecesse apenas aos seus olhos os templos de memória em que inscreve sua história. Tudo sempre em movimento, de novo, como os travellings não deixam mentir.
Mas se tece-se o passado como memória afetiva visando uma posição de conforto, do que correm Gary e Alana então? É o grande mistério que o filme já prenuncia no título, o qual apesar da homenagem a uma loja de discos também sugere de imediato uma contradição de gostos entre o doce do alcaçuz e o salgado da pizza. Enquanto não é tão difícil corresponder o primeiro à atmosfera calorosa da narrativa, a segunda é construída na base dos pequenos atos entre as demonstrações de desejo, pequenas manifestações que perturbam o olhar mais atento. O que se sugere como aberto e carinhoso se converte gradativamente em um estranhamento, e nesse ponto o longa é esperto em nunca deixar claro suas intenções: uma asfixia lenta daquele mundo, preso nas próprias engrenagens que o movimentam.
A direção de Anderson nunca se baseia no arco dos personagens, mas nos espaços onde a ação se desenrola
Quem melhor denota – e lidera – essa jornada é Alana. Enquanto o Gary de Hoffman é retratado como um garoto que aprende na prática e amadurece sob os signos da esperteza e das jogadas de oportunidade, a moça vivida por Haim é desde o primeiro movimento uma personagem contaminada pela autoconsciência da prisão que a cerca, imersa num ambiente onde toda pessoa carrega segundas intenções com sua pessoa. Anderson é muito esperto de situar ao espectador essa condição na abertura (um namoro crescente de duas figuras cuja atmosfera de sonho é rompida por um ato de misoginia), mas também de carregar essa luta da protagonista para todos os seus encontros com homens. Ajuda muito o elenco estrelado, é evidente, mas a atriz que chama a atenção por imprimir na tela a consternação para além dos diálogos fáceis, postura a qual ao mesmo tempo se permite deixar seduzir pelos mundos coabitados e vive na percepção de que todo ato mira somente a fuga daquele lugar – seja a família (vivido comicamente por todos os parentes imediatos da artista), o pretendente ou o próprio vale.
Ainda que Anderson tenha citado filmes mais lembrados como “Loucuras de Verão” e “Jovens, Loucos e Rebeldes” como referências maiores para a criação de “Licorice Pizza” (e vale apontar que seu trabalho de fato o aproxima ainda mais de Linklater), nessa hora chama muito a atenção como o longa lembra em forma o “Sonhos Rebeldes” de Martha Coolidge, outra produção que apesar de situada nos anos 80 tinha também como meta maior esse retrato das tensões subjetivas do vale a partir da trajetória da garota que busca uma fuga. Entre Alana e a Julie de Deborah Foreman persiste este mesmo sentimento de esmagamento sacramentado nas relações sociais, bem como a persistência de um amor impossível como possibilidade de saída. Consciente dos vindouros anos Reagan muito presentes no filme de 1983, o de 2021 apenas redireciona este sentimento a um fim menos otimista, cercando a jovem Haim de becos sem saída disfarçados de opções viáveis enquanto esvaziando-se do abuso da personagem nesse cenário. Alana parece sempre se dar mal na narrativa, mas também escapa por um triz em todos os momentos.
O grande barato dessa fórmula é de fato o como Anderson resolve tudo isso no curso das mais de duas horas à disposição, entretanto, pois essas questões de novo estão inscritas na lógica dos espaços. Além do prenúncio, parte-se do colégio para atestar também o filme como uma derivação simbólica do coming of age, o que ajuda por sua vez no bate e volta de Gary e Alana e até no desfazimento das relações nostálgicas imbuídas. A sensação é de que o diretor literalmente reconstrói o vale no imaginário do espectador, com cada ponto pintando um lugar do mapa traçado pelos protagonistas e seus amigos, havendo ainda uma beleza muito sutil no ato de remover qualquer perspectiva pessoal dos eventos transcorridos. Com tantos filmes de memória sendo lançados, está aí uma demonstração de um passado despido de fantasmas, com o humor servindo de substituto à altura para mover a ação e as perturbações. Por essa razão, defendo em algum nível que a xenofobia empregada pelo dono de restaurante vivido por John Michael Higgins seja mais um desses alertas espalhados pelo diretor, mas fora disso é inegável que o longa brilha nos pequenos personagens e aparições, da agente de talentos ao tão comentado Peters de Cooper.
Alana é desde o primeiro movimento uma personagem contaminada pela autoconsciência da prisão que a cerca
Ainda sobre fantasmas, não escapa nesse momento de lançamento as comparações entre “Licorice Pizza” e o “Era Uma Vez em… Hollywood” de Quentin Tarantino, o que parece mesmo algo inevitável dado não só as similaridades de procedimento como a proximidade de época de obras e criadores. Sete anos mais novo, Anderson carrega a mesma reputação do colega como líder da geração hollywoodiana que ajudou a solidificar o espaço do cinema independente norte-americano no mainstream dos anos 90, e nesse ponto espanta como ambos em um curta espaço de tempo tenham produzido filmes de época que trafegam de maneira tão aberta pela noção da efemeridade da História, dos registros de figuras que ficam para trás.
Junto do oitentista “Jovens, Loucos e Mais Rebeldes” de Linklater (outra figura tida como folclórica na cena), é como se completasse uma trilogia de obras sobre o mundo do final do século 20 recheado de fantasmas, interessado na captura de imagens que se dissolveram e parecem perseguir as memórias de seus realizadores. É um tributo que agora faz sentido dada as próprias transformações do momento na indústria e a redução gradual (despido do comentário reacionário) do que é visto como “artístico” no mainstream hollywoodiano – e daí pode-se chegar até no “A Crônica Francesa” de Wes Anderson, outro autor americano emerso nos anos 90 que agora luta por últimos movimentos num mundo que não o reconhece mais.
No caso de Paul Thomas Anderson e “Licorice Pizza”, porém, há uma divergência importante dentro dessa lógica: a crença na juventude e na eternidade de novas gerações, longe de qualquer possibilidade de amargura e muito otimista dos passos presentes. É algo que o desfecho do filme ilustra e se banha, e não apenas porque a corrida de Gary e Alana para encontrar um ao outro fecha o mapa do vale e os jogos de perseguição, ou porque a garota enfim parece aceitar a derrota do mundo ao confessar seu amor pelo menino. Diante da impossibilidade de compreender o futuro, diretor e obra abraçam o tempo presente como uma manifestação pertencente ao jovem, e enfim revela ao público o sentido maior de todas as corridas que acompanhou durante toda a história. Até porque com a juventude não há fantasmas, apenas o amor.
“Licorice Pizza” estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 17 de fevereiro.
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