- Cultura 25.nov.2021
História de amor e destruição, “Annette” é uma ópera sobre o tormento do artista
Leos Carax encena musical com grandes gestos direcionados à expulsão de perturbações interiores
Dizer que “Annette” é um filme adepto do teatralismo talvez seja redundante por essência, dado que a produção começa com a equipe toda cantando se “pode começar” depois do próprio diretor dar o sinal, mas é justo essa adesão pronunciada que se faz de gesto para os prazeres singelos da experiência proposta. Ainda mais quando tudo que diz respeito à narrativa do longa parece partir da consumação deste fato pelo público, um espectador passivo presente dentro desta grande ópera de poucas sutilezas.
Essa definição pode soar confusa, mas na prática é dela que Leos Carax parece operar muito da dinâmica entre os personagens da história. Assistir ao filme é menos sobre o ideal clássico da experiência cinematográfica que da lógica do teatro apropriada pelo aparato fílmico, onde quem presencia a encenação está presente fisicamente para constatar os atores e suas conduções da trama e de seus temas, e o diretor não hesita nem por um momento por este reenquadro. Que a recepção de “Annette” desde Cannes se encontre dividida não ocorre por acaso: em tempos de crescente interação ou conservação da forma em seu viés mais tradicional, o longa propõe uma relação com o espectador que ultrapassa os limites habituais da sétima arte, mas não o suficiente para efetivamente passar a influenciar ou se mesclar a seus caminhos, e é como cada um responde a essa determinação que define como este reagirá à obra.
Em outras palavras, Carax aqui é o maestro de um musical pequeno de propensões muito ambiciosas, uma noção o qual é refletida na premissa. Descrito pelo próprio filme como a história da paixão destrutiva entre um comediante que dá vida para matar as pessoas de rir e uma cantora de ópera (mais um destes atos conscientes) que se mata para dar vida ao público todas as noites, a produção é regida primordialmente pela perspectiva do primeiro (vivido por Adam Driver) e tem na segunda (interpretada por Marion Cotillard) uma presença que atormenta e atrai o protagonista. Ainda no campo das constatações óbvias, “Annette” também é uma obra situada no fazer artístico e em especial nos tormentos do autor, algo válido de se notar quando se coloca em perspectiva que é o primeiro trabalho de seu diretor na língua inglesa.
Enquanto essa primeira aventura internacional de Carax é uma discussão cabível a seus fãs e quem acompanha sua trajetória pelo menos desde antes de seu trabalho anterior, “Holy Motors”, é como isso se traduz na tela que puxa (ou pode afastar) quem chega agora ao seu cinema. O filme é agressivo em sua estética e ritmo, pontuado pelas músicas do Sparks que verbalizam as pulsões de desejo dos personagens muito além daquilo que declamam um ao outro – e ao público, sempre ele. Bom exemplo disso é o momento do “Six Women Have Come Forward”: ainda que seja todo feito em torno de um sonho da cantora de Cotillard sobre mulheres denunciando seu amado por abusos e a alertando de um perigo iminente, o momento é para materializar aos nossos olhos a posição de refém da mulher perante os caprichos do amante, uma estranha declaração de amor suicida em seus efeitos.
Nesse ponto é válido retomar a noção do filme como ópera porque este opera sobretudo pelo signo da tragédia. Diz-se muito sobre como o cinema de Carax trabalha com paixões destrutivas que repercutem o autor, e em “Annette” isso é verdadeiro a ponto dele próprio se introduzir no início ao lado de uma criança, refletindo a trama de paternidade que toma o centro das atenções a partir do momento em que a Annette do título surge na história.
“Annette” também é uma obra situada no fazer artístico e em especial nos tormentos do autor
A relação de Henry (Driver) e a pequena Annette é primordial ao musical e é nela que essas pulsões da narrativa encontram uma chave de crise plena. Conforme se descobre que a garota é dona de uma voz angelical e seu pai decide tirar o melhor proveito econômico da situação, o filme também desconstrói quaisquer ideais românticos que cercam a trama e a própria relação do espectador com os mesmos. O ato maior desta progressão talvez seja o maestro vivido por Simon Helberg ser o verdadeiro autor da canção de amor à Ann de Cotillard e ele ensinar a melodia à sua cria, mas é em como o cenário desgasta progressivamente a figura de Henry que se faz todo o gestual, materializando a corrupção inerente da figura perante não sua queda enquanto artista mas de seus temores diante de uma sensação de fracasso inevitável. Nesse sentido, Driver entrega uma atuação à altura do papel, registrando no físico todo o desmoronamento.
A paternidade surge aí como intermediador, mas também como vítima maior do processo, o que alimenta diretamente a ópera em movimento. Há a poesia pouco sutil de como Annette é até antes do desfecho uma marionete e é dessa imagem que Carax baseia a espiral do longa e de seu protagonista, um artista que amaldiçoa aqueles a seu redor. Tudo é sacramentado, claro, com a última cena, marcada pelo “Sympathy for the Abyss” que demarca esta jornada de danação com o cenário do abismo interior e todo o simbolismo natural a essa representação.
Annette é até antes do desfecho uma marionete e é dessa imagem que Carax baseia a espiral do longa
Mas o barato da narrativa é de novo como o público está situado dentro disso. Mesmo não sendo um elemento presente em qualquer ponto da obra, “Annette” concebe uma dinâmica com o espectador que flerta com um lugar entre a cumplicidade e a testemunha moralista, mas sem encontrar qualquer um dos lados. Testemunhamos a história de Henry e Annette, mas também atuamos como responsáveis pela tragédia, uma noção que Carax busca reforçar no começo ao situar a câmera entre a plateia do show de stand-up do protagonista. Henry existe aos nossos olhos e apenas eles, ator principal de um sacrifício incompreensível ao olhar externo fora desta relação.
A ausência de uma alusão ao caráter midiático dos acontecimentos que não seja pela ótica do sonho é uma jogada matadora neste sentido. “Annette”, enfim, é sobre os dilemas internos do artista, expulsos para fora do corpo em sua máxima potência a partir da lógica do musical. Do lado do espectador, basta apenas a contemplação do processo e de todas as suas dores.
“Annette” estará disponível na MUBI a partir da próxima sexta-feira, 26 de novembro.
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