- Cultura 3.out.2021
“007: Sem Tempo Para Morrer” encerra “era Craig” levando ao limite suas forças e fraquezas
Quinto episódio da franquia com o ator almeja ser a experiência definitiva com o personagem, mas é também um lembrete do caráter cíclico da série
⚠ AVISO: Este texto contém SPOILERS do filme.
Para além do ato de descoberta (e redescoberta), maratonar os filmes de 007 hoje é uma atividade interessante por dois motivos. O primeiro, mais óbvio, é a perspectiva histórica que a franquia oferece, única de seu tipo no sentido de conseguir manter uma frequência entre seus “episódios” durante o que são agora quase 60 anos de existência. Se esta reincidência atualmente é um desejo de muitos em Hollywood, ela também permite vislumbres de época quase únicos, com cada decisão criativa de uma forma ou de outra se relacionando a um zeitgeist que, claro, está em constante transformação.
Já o segundo ponto de interesse – e que em algum nível está afinado com o tom e opções de “Sem Tempo Para Morrer” – está na percepção maior de que a marca existe sobretudo como um exercício maior de reciclagem. Ainda que a franquia tenha demorado bem mais para se afastar dos livros e contos do criador Ian Fleming (lá para meados das aventuras protagonizadas por Roger Moore, se é para ser exato), já antes os filmes produzidos pela Eon Pictures se entenderam como obras feitas de um status quo inexistente, concebido a partir do reaproveitamento constante de elementos combinado aos anseios presentes. Pode se dizer daí que James Bond existe num vácuo, mas também um atento a itens muito particulares de seu contexto: se o maior agente britânico com licença para matar há de ter sua performance afetada por uma bala no ombro, por exemplo, a utilização desta premissa é diferente nos anos 90 (“O Mundo Não é o Bastante”) e nos anos 10 (“Operação Skyfall”), pois diz respeito ao que se espera naquele momento.
Essa noção de reiteração é importante pois explica muito do que se passa na atual fase da série, protagonizada por Daniel Craig e o qual agora se encerra com o 25° capítulo. Estabelecido como o intérprete mais “durável” da franquia ao permanecer quinze anos no papel (três a mais que Moore, recordista em volume de produções), o ator pode ter testemunhado três ou quatro mudanças da indústria durante sua “titularidade” como Bond, mas seus filmes conseguiram manter em voga a constante de uma necessidade maior por uma encapsulação da tal “identidade” por trás dessas aventuras.
Independente do que a disparou e lhe manteve intacto todos esses anos – seja o esgotamento da proposta da “era” Brosnan, sejam as movimentações dos anos 2000 em direção a reformulações de personagens tradicionais – é a esse interesse ao qual “Sem Tempo Para Morrer” responde em primeiro lugar, de suas amarrações à promoção de um sentimento de desfecho que obviamente é falso ao cenário maior, mas “verdadeiro” nas intenções.
Dadas essas condições, faz sentido que o filme dirigido por Cary Fukunaga parta já em condição de derrota enquanto cinema, e o roteiro já revela de antemão o grau do caos que se instala no projeto. Somatório da experiência de Robert Wade e Neal Purvis (roteiristas “oficiais” da série desde “O Mundo Não é o Bastante”), da presença do próprio Fukunaga (primeiro diretor a se envolver no texto) e de contribuições pontuais de Phoebe Waller-Bridge, o longa existe como soa nessa descrição, um produto feito do combinado de intenções que nunca se ligam efetivamente – um “007 Contra a Chantagem Atômica” criado no início desta década de 20, por assim dizer. Se a história é uma grande corrida contra o tempo, ela também parece acontecer pela perspectiva de um comentarista externo à ação, somente interessado nas idas e vindas dos personagens com lapsos ocasionais pela urgência da cena, e ainda há uma divisão evidente da introdução com a primeira hora e o restante da narrativa.
E com duas horas e quarenta cinco minutos de duração (a maior metragem de um filme da série), não é por acaso que qualquer tentativa de sinopse fracasse de maneira vexatória, sobretudo porque o que está mesmo em enfoque é a presença de Bond (e portanto Craig) no decorrer dos acontecimentos – o que é natural se considerar de novo o momento no qual se insere a produção. Em uma época na qual a indústria e o público reconhecem abertamente a criação e manutenção do “filme evento”, é coerente que “Sem Tempo Para Morrer” vá além dos antecessores “Skyfall” e “Contra Spectre” no intuito de tentar ser a “experiência 007” definitiva, se concebendo nos erros e acertos inevitáveis de uma construção inchada e de olho no que é visto como central às aventuras da era atual: a perspectiva interiorizada, uma narrativa pautada nos efeitos de cada aventura em Bond.
O que deve ser notado aqui, porém, é o grau de divórcio de ideias inerente à ampliação da escala para estatura máxima em cima de filmes construídos na perspectiva pessoal, um jogo de extremos o qual sem dúvida norteia toda a “experiência” da produção – inclusive nessa dinâmica paradoxal da grande aventura que existe enquanto como comentário de si mesma. O mundo pode estar correndo risco de extinção e o grande vilão é chamado quase que literalmente de “Lúcifer Satã” (Lyutsifer Safin, no caso, vivido por um perdido Rami Malek), mas o eixo da narrativa está na relação de Bond com Madeleine Swann (Léa Seydoux), uma extensão daquilo a princípio já resolvido em “Spectre”, com eventos bombásticos e cenas de ação e tensão arremessados a todo momento para tentar levar a história do espião britânico a um desfecho plausível enquanto premissa de um aglomerado de tudo aquilo que define suas histórias anteriores. É uma execução impossível e estourada, com toda a sorte de compreensões particulares despertadas no espectador a partir daí – se é para ficar em um, gosto de pensar em como a abertura deste filme soa como um epílogo do antecessor, uma relação que revela o aprendizado dos produtores Michael G. Wilson e Barbara Broccoli com os últimos 30 minutos de “Cassino Royale” e sua ausência em “Quantum of Solace”.
O que está mesmo em enfoque é a presença de Bond (e portanto Craig) no decorrer dos acontecimentos
A questão, de novo, é que 007 há anos funciona como uma intersecção ao mesmo tempo abstraída e inserida no resto da produção, uma combinação de posições que, embora não ofereça lugar diferenciado à franquia, permite que esta exista dentro de um conjunto de valores diferentes. Sob tal perspectiva, os atos de “Sem Tempo Para Morrer” encontram alguma redenção porque sua execução está diretamente ligada à história da série, e Fukunaga toca isso de forma muito consciente. Se a “era” Craig pode ser definida como uma variação bastante séria do que foi proposto em “Licença Para Matar”, no intuito de humanizar Bond e assistir suas ações sob este prisma, o diretor dessa 25° produção é o mais antenado e comprometido a tal questão dentro do contexto dessa fase.
Essa manobra é denunciada de forma efusiva pelos realizadores em muitas curvas, da reprodução em dois momentos da balada “We Have All The Time In The World” (de “A Serviço Secreto de Sua Majestade”, o estranho filme “rejeitado” que acabou por ser a pedra primordial da série) ao momento em que M (Ralph Fiennes) encara quadros dos antecessores Judi Dench e Bernard Lee em um mítico MI6, e passa até pela própria canção-tema de Billie Eilish e Finneas O’Connell, cujas batidas reforçam o reaproveitamento de tantos elementos musicais da franquia. Tudo isso não deixa de ser uma prestação de contas aos fãs, o que não apenas reforça a temporalidade deste 007 mesmo com ambições tão grandes, mas também ajuda a revelar o status tão contraditório do projeto (e de todos os filmes protagonizados por Craig) como um desdobramento preciso da marca para os tempos atuais que foi executado de tantas maneiras quanto necessário para encontrar sentido próprio.
O que sobra enquanto filme, então? Toda a discussão vazia da franquia à parte, resta a “Sem Tempo Para Morrer” ocupar seu status de direito enquanto Frankenstein, e ajuda nessa hora ter alguém como Cary Fukunaga na direção. Se 007 existe na condição de uma série capaz de dobrar até mesmo os criativos mais dispostos a ocupar um status autoral (Sam Mendes que o diga), faz bem a esse 25° filme ser o primeiro a ter um diretor estadunidense no comando que também entenda sua posição de mão de obra qualificada: enquanto não há o que ser feito nas (diversas) horas de drama criadas para dar algum sentido emocional ao desfecho maior, na ação Fukunaga se mantém atrelado ao espírito de condutor e entrega cenas que situam bem o espaço e a pirotecnia dos atos, em especial na primeira hora repleta de movimentos do tipo.
Além disso, o diretor sabe como extrair o melhor do roteiro quando lhe é oferecido, o que nesse caso significa muito do que vive às margens da dinâmica entre Bond e Madeleine e do embate maior com o vilão da vez – até porque Malek sem dúvidas é o mais fraco intérprete da posição nessa fase, incapaz de criar um adversário interessante e escondido com razão pela narrativa. É o caso de boa parte do elenco de apoio, novamente usado para “azeitar” todos os momentos em que a narrativa cai em redundâncias e exposição, e aqui vale não só destacar o mérito do bom olho de Broccoli e Wilson para casting como o que são provavelmente as contribuições de Phoebe Waller-Bridge ao texto, as duas novas personagens femininas cujo humor revitaliza ou rouba as cenas – a primeira na nova 007 de Lashana Lynch, a segunda na agente Paloma de Ana de Armas cuja presença é responsável por grande parte da qualidade nas cenas em Cuba. Até a revelação discreta da sexualidade do Q de Ben Whishaw destoa para bem de outros esforços superficiais de diversidade nas grandes franquias, uma demonstração do quão natural essas renovações vazias são condizentes com a série.
Os atos de “Sem Tempo Para Morrer” encontram redenção porque sua execução está diretamente ligada à história da série
Enquanto as discussões do momento agora devem se bastar nos méritos e fracassos dos filmes liderados por Daniel Craig, na discussão “pungente” sobre a identidade do próximo intérprete da franquia e se o “desfecho” empreendido pelo capítulo mais recente é ou não condizente, fico com a reflexão de que “Sem Tempo Para Morrer” segue para a história de James Bond no cinema mais como curiosidade que passagem essencial. Além de um retorno da série a um status recorrente de “celebração do passado e presente” (no mesmo molde de “Um Novo Dia Para Morrer” e “Operação Skyfall”, mas visto pela ótica atual), a ideia final do filme como uma possibilidade de fim a um personagem enxergado como atemporal serve tanto à recorrência da produção contemporânea por histórias do tipo (“O Cavaleiro das Trevas Ressurge”, “Logan”, mesmo “Vingadores: Ultimato”) quanto estabelece um novo e diferente “limite” a essas histórias, daqueles que só os fãs enxergam e encontram sentido. Se aos olhos do público “Goldfinger” é visto como “ideal” e “O Homem da Pistola de Ouro” é uma variação disso para os valores pré-massificados dos anos 70, o 25° filme talvez deva ser entendido como um “Cai o Pano” do personagem: não exatamente final para Bond, mas uma tentativa de se tecer um encerramento aos “temas” que suas histórias suscitam e sua trajetória pessoal – e isso não deixa de ser condizente com tudo que diz respeito ao presente momento da série.
Também gosto de pensar nesse momento em como todo último capítulo de um Bond nos cinemas reflete a essência daquela passagem e época, e a relação aqui não poderia ser mesmo mais essencialista. Se “Sem Tempo Para Morrer” resume muito das forças e fraquezas do momento atual de Hollywood, ele em igual medida também encapsula o momento de Daniel Craig na franquia. O que para uns significa inchaço e esgotamento de escala, a outros é o reforço da perspectiva pessoal e o tom sentimental acima de tudo – e o legal é que o filme de certa forma aceita as duas visões.
“007: Sem Tempo Para Morrer” está em exibição nos cinemas.
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