- Cultura 31.ago.2021
“Donda” é primoroso e equivocado, como a megalomania de Kanye West
Décimo álbum do rapper readapta as fases anteriores de sua carreira ao seu atual eu cristão
Quando Kanye West anuncia um novo álbum, não se espera nada comum, especialmente em relação ao lançamento do trabalho. Além dos já famosos atrasos na liberação do disco para o público nas plataformas de streaming, a forma como o rapper apresenta o projeto tem sempre suas peculiaridades. Para “Donda”, Kanye se mudou para o Mercedes-Benz Stadium prometendo finalizar o álbum, transmitiu o processo em ações por cidades do mundo todo, e fez uma mini turnê de três audições em Atlanta e Chicago. Entre muita performance, a participação da ex/atual Kim Kardashian, e as presenças indesejáveis de DaBaby e Marilyn Manson, Kanye West conseguiu novamente ter todos os holofotes focados em si, criando uma atmosfera-conceito que inspirou os fãs a confabularem teorias que nem a própria mente do rapper passou perto. Porém, enquanto agarrar-se à ideia de “conceito acima de tudo” funciona para explicar as audições, para o álbum em si a definição é muito mais simples: Kanye West readaptando as fases anteriores de sua carreira ao seu atual eu cristão.
A experiência de consumo das 27 faixas somam 1h48min, e começa com a repetição por quase um minuto do nome do álbum, que também é o nome da mãe de Kanye, falecida em 2007. Há até quem diga que a cadência da repetição simula batimentos cardíacos. Na sequência, marcada por guitarras e pela presença de Jay-Z, “Jail” nos transporta para 2011 quando vimos nascer o Watch the Throne, projeto diretamente citado por Jay-Z na canção: “Este pode ser o retorno do The Throne”. Em seguida “God Breathed” avança dois anos no tempo, com um destaque de baixo em meio a gritos fragmentados que parecem uma canção saída de “Yeezus”, álbum lançado por Kanye West em 2013. “Off the Grid” mantém o começo empolgante do disco, e é das faixas que ficaram mais valorizadas no álbum que nas audições ao vivo, num hip hop moderno com Playboi Carti e Fivio Foreign, tão secular quanto qualquer fã raiz de Kanye pode desejar.
Em meio ao passeio por diferentes épocas de uma carreira abrangente, algumas faixas são notáveis, caso de “Believe What I Say”, com sample de “Doo Wop (That Thing)”, de Lauryn Hill e que facilmente poderia estar em “808s & Heartbreak” (2008). Em “Heaven and Hell”, Kanye parece sair de um modo alienado de visão unilateral para usar a fé como força para lidar com problemas sociais. Já “Jesus Lord” tem como peça central a saúde mental do rapper: “Ultimamente tenho perdido todos os meus amigos mais íntimos. Ultimamente tenho nadado no fundo do poço”. Ainda na mesma faixa, ele expõe mais sobre sua luta mental de forma íntima: “Pensamentos suicidas fazem você se perguntar o que há lá“.
O número de convidados vai acumulando faixa após faixa. The Weeknd é destaque com um vocal quase sacro em “Hurricane”, que ainda tem Lil Baby. Alguns dos melhores versos de “Donda”, inclusive, não são de Kanye e sim de seus convidados, especialmente Fivio Foreign em “Off the Grid” e Baby Keem em “Praise God”.
Em meio ao passeio por diferentes épocas de uma carreira abrangente, algumas faixas são notáveis, caso de “Believe What I Say”
A temática religiosa é tão forte neste décimo álbum quanto no nono, “Jesus is King”, lançado em 2019. A essência do Sunday Service Choir está presente em todo o projeto, assim como o praticamente onipresente órgão tradicional da música gospel. A diferença é que em “Donda”, Kanye West não te leva para a igreja num culto de domingo, mas te convida para uma conversa despretensiosa sobre religião e questões pessoais. “Jesus is King” é o batismo de Kanye West, “Donda” é o “pós conversão” que tenta conciliar o “novo eu” com toda a bagagem de uma vida até ali. Há mais ironia, mais reflexão e mais responsabilidades assumidas. Nem tudo é visto como culpa do diabo mais, principalmente quando o rapper olha para suas relações pessoais.
O problema é que essa conversa com Kanye West se estende demais, ele se repete em assuntos, começa a não fazer mais sentido e ainda chama pra roda quem ninguém quer por perto. Todas as versões estendidas de faixas já apresentadas poderiam ser um EP lançado posteriormente. “Jail pt 2”, com DaBaby, nem precisaria existir, ainda mais porque é uma versão inferior à faixa com Jay-Z. Além disso, quem fala demais corre o risco de soltar coisas desnecessárias, e em certo ponto Kanye parece ultrapassar a ideia de autorreflexão para cair na autopiedade, como em “Keep My Spirit Alive”.
Kanye West se estende demais, ele se repete em assuntos, começa a não fazer mais sentido e ainda chama pra roda quem ninguém quer por perto
Quando “Donda” finalmente chega ao fim, a sensação é de uma viagem que poderia ter sido mais curta e melhor aproveitada, daquelas que você não vê a hora de repetir. Mas foi cansativo e você precisa de um tempo para pensar em pegar a estrada de novo. No entanto, isso não tira o mérito de um trabalho com, pelo menos, sete grandes canções. Há artistas que não chegam nesse número nem somando vários trabalhos.
No mesmo dia em que o álbum chegou às plataformas digitais, Kanye West afirmou através de uma postagem no Instagram que o álbum foi lançado pela Universal Music sem sua permissão. De qualquer forma, o projeto é esse, inclusive com as contestáveis parcerias que o rapper escolheu, e com a clara intenção de passear por sua própria obra quase como um todo. Aprovado ou não, o resultado de “Donda” é tão primoroso quanto a carreira de Kanye West, e tão pretensioso e equivocado quanto a megalomania do artista.
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