- Cultura 23.abr.2021
Apesar dos clichês, “Falcão e o Soldado Invernal” abraça missão que se espera da Marvel
Ao tratar de temas sociais contemporâneos, a segunda série da Marvel no streaming se assume como retrato de seu tempo
⚠️ AVISO: Contém SPOILERS do último episódio da temporada.
Com o lançamento de séries tão próximas produzidas pelo Marvel Studios e veiculadas no Disney+, fica quase impossível não se render à comparação dos materiais. Como espectadores, saímos do universo projetado para o escapismo pessoal do luto de “Wandavision” para encarar o debate de temas atuais e relevantes para a sociedade em “Falcão e o Soldado Invernal”. No entanto, se a primeira traz um formato diferenciado e criativo, a segunda abraça todos os clichês da Marvel numa espécie de “grande filme de 6 horas”.
Ainda assim, o que mais incomoda em “Falcão e o Soldado Invernal” é a necessidade insistente de ser tão didático com o público. Embora ninguém seja obrigado a ter o calendário de acontecimentos da MCU gravado na mente nem a ler informações nas entrelinhas, a necessidade de explicar cada passo de forma pedagógica tira a força de muitas cenas, o que acontece em absolutamente todos os seis episódios da série.
A história se passa pouco mais de um ano depois dos acontecimentos de “Vingadores: Ultimato”. Sam Wilson (Anthony Mackie) e Bucky Barnes (Sebastian Stan) estão lidando com seus próprios conflitos enquanto o mundo tenta se adaptar à volta de metade da população mundial que ficou extinta por cinco anos.
Embora muitas tramas ainda sejam desenroladas, nem precisamos esperar o conflito principal para perceber que grande parte dos US$ 150 milhões de investimento na série foram usados para garantir um produto de ação “Marvel para TV” que não fica atrás das produções “Marvel para cinema”. A cena que abre a série com uma perseguição área de Sam a um grupo de sequestradores é mesmo digna de qualquer filme dos Vingadores. E é nessa toada de “Marvel de sempre” que a primeira metade de “Falcão e o Soldado Invernal” segue, pincelando um pouco dos conflitos realmente interessantes que serão abordados posteriormente.
A segunda metade da série é bem mais interessante, trazendo a complexidade de pensamentos e emoções que refletem o quanto a sociedade é labiríntica e longe de ser definida por dualidades de certo x errado, bem x mal. Por isso mesmo, os vilões da trama são tão bons, afinal, é difícil até mesmo defini-los como tal. Karli Morgenthau (Erin Kellyman), por exemplo, é a líder de um grupo antinacionalista que almeja uma integração mundial baseada no lema “um povo, um mundo”. No entanto, ela considera que esse ideal anarquista não pode ser conquistado de forma pacífica, o que abre espaço para dilemas morais e nossos próprios questionamentos e julgamentos sobre sua ideologia. Vale dizer aqui, que Karli foi uma ótima adaptação para Flag-Smasher, criado por Mark Gruenwald e Paul Neary em meados dos anos 1980 para ser antagonista do Capitão América.
A 2° metade da série é mais interessante, trazendo a complexidade que reflete o quanto a sociedade é labiríntica
Questionamentos também rondam John Walker (Wyatt Russell), o novo Capitão América. John não tem o carisma de Steve Rogers, não tem as habilidades de um super soldado e pouco nos desperta empatia. A torcida para que ele desocupe rapidamente o posto que não vemos como “dele por direito” é praticamente unânime. Mas John é o reflexo de um sistema político disfuncional, armamentista e que tem a guerra como base histórica para a resolução de conflitos.
Em um dos melhores momentos da série, Walker enfrenta os senadores que estão o dispensando das atividades militares dizendo: “Vivi minha vida seguindo suas ordens. Dediquei minha vida aos seus comandos. Eu só fiz o que vocês me pediram, o que me disseram para ser e me treinaram para fazer, e eu fiz. E fiz bem.”. Russell, por sinal, é o grande destaque da série em atuação, com uma construção rica em detalhes do personagem que se tornará o Agente Americano, especialmente sobre suas contradições emocionais e éticas.
Wyatt Russell é o grande destaque da série, com uma construção rica em detalhes do personagem que se tornará o Agente Americano
Apesar de compartilharem o título da série, Falcão e Soldado Invernal não dividem exatamente o peso da história. Sam é o grande protagonista na saga projetada para que ele se torne o próximo Capitão América. Bucky carrega a eterna culpa por seu passado como Soldado Invernal e a relação que desenvolve com Sam é a de uma parceria leal. Ainda que tenha seus melhores momentos quando o resgatado Barão Zemo (Daniel Brühl) também está em cena, Bucky está presente mais para contribuir com o desenvolvimento da história de Sam do que com a sua própria. Faz sentido, portanto, a série finalizar o chamando de Soldado Invernal enquanto Sam já ganha o novo título de Capitão América.
São os conflitos de Sam que tornam “Falcão e o Soldado Invernal” significativo. Ele é quem entende que para promover mudanças reais, as coisas precisam ser feitas também de uma forma diferente. Essa é a base de sua conversa com Karli. Isso é o que ele efetivamente faz ao assumir o posto de Capitão América, ainda que a simbologia daquele escudo esteja vinculado a uma política nacional de apagamento da história do povo negro, retratada com o super soldado Isaiah. Para Sam, é preciso mudar o símbolo, ressignificar, e só assim, então, construir uma nova história.
Apesar de seus problemas, ao tratar temas como o racismo sistêmico nos Estados Unidos, a situação de refugiados pelo mundo, e o papel das lideranças políticas na formação de grupos extremistas, “Falcão e o Soldado Invernal” mostra a Marvel assumindo a missão que esperamos dela: ser um retrato do seu tempo.
“Falcão e o Soldado Invernal” está disponível no Disney+.
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