- Cultura 9.fev.2021
“Relatos do Mundo” busca humanidade em tempos insensíveis
Faroeste de Paul Greengrass apresenta herói íntegro tentando viver em um mundo corrompido
O cinema norte-americano estuda a formação da sociedade estadunidense a partir do faroeste desde muito antes de Akira Kurosawa e o cinema italiano se tornarem referências estéticas. É um interesse histórico pelo próprio mito que perdura há um século, ao menos, que nos proporcionou contemplar os trabalhos de alguns dos maiores diretores da história de Hollywood como John Ford, Raoul Walsh, Michael Cimino, Monte Hellman e Howard Hawks.
O que diferencia os faroestes de grandes diretores como os citados dos meros produtos mercadológicos feitos em escala industrial, porém, é o olhar desses cineastas para o mito americano. É a forma como pegam um mundo de violência, desordem e estereótipos e o transformam em um lugar cinzento, complexo. É a desconstrução ou destruição do mito e a busca pela humanidade e todas as suas complexidades. Esse é um pouco do interesse que Paul Greengrass exibe em “Relatos do Mundo”.
Famoso pelo trabalho em dois longas da trilogia “Bourne”, que redefiniu os parâmetros de ação em Hollywood no começo do século (a ver pela influência em dois filmes importantíssimos em termos de tendência, “Cassino Royale” e “O Cavaleiro das Trevas”), Greengrass apesar de competente nunca se mostrou um autor com o olhar dos mesmos colossos citados. Mas filmes como “Relatos do Mundo” mostram como Greengrass, para além de sua importância estética no cinema contemporâneo, é alguém com alguma sensibilidade. O filme acompanha o veterano de guerra Jefferson Kidd (Tom Hanks), que encontra uma menina perdida (Helena Zengel) e, por não falarem o mesmo idioma, encontra dificuldade em devolvê-la para seu lar.
Greengrass usa essa história simples para fazer uma incursão pela forma como os humanos se tratavam no oeste (ou se tratam hoje). Kidd passa todo o filme viajando com a menina em busca de alguém que possa ajudá-lo a encontrar a família da criança ou, em certo ponto do filme, a achar um novo lar para ela. O que vemos ao longo de “Relatos do Mundo”, porém, é um universo em que as pessoas estão sempre em busca de seu próprio ganho, de uma oportunidade de enriquecimento ou em uma escada para a riqueza ou poder. Até mesmo quando as forças policiais locais aparecem o diretor não filma as cenas como se fôssemos ter alguns momentos de paz – na verdade, o tom cinza de dubiedade moral e incerteza quanto ao futuro sempre permanece, e os próprios representantes da lei surgem como figuras neutras. Nunca sabemos se aquelas presenças são positivas ou não.
As pessoas no filme estão sempre em busca de seu próprio ganho, de uma oportunidade de enriquecimento
Não surpreende, portanto, que nesse mundo de insensibilidades e violência o personagem com mais empatia seja justamente o que vive viajando e, por isso, não tem raízes em ponto algum: o próprio Kidd. Talvez seja o fato de o veterano ter vivido uma guerra e não ter amarrado sua diligência em nenhum lugar que ele consiga perceber como o egoísmo, a ganância e a desumanidade são algo tão marcante naquela sociedade. Greengrass, porém, se afasta de John Ford e cia justamente na construção do protagonista, já que não há nuances, complexidades ou dilemas, há o personagem que Tom Hanks vem reinterpretando há décadas, a do sujeito incorruptível, de moral e ética indubitáveis.
Assim, por mais que “Relatos do Mundo” consiga retratar a complexidade do período da fundação da sociedade americana, desperta um certo incômodo o fato de seu protagonista ser uma figura tão à parte do resto do mundo. Uma diferença basilar em relação, por exemplo, ao genial “O Céu Mandou Alguém”, filme de Ford que mostra três criminosos que mostram seu lado mais belo ao arriscarem suas vidas para salvar uma criança encontrada no deserto. Essa diferenciação por si, claro, não é problema algum, mas o simples fato de Kidd ser uma figura perfeita em um mundo imperfeito tira a potência de “Relatos do Mundo”.
Não há nuances, complexidades ou dilemas, mas o personagem que Tom Hanks reinterpreta há décadas
Há uma clara intenção de Greengrass de usar a inocência e bondade de Kidd como um contraponto para a bizarrice do mundo retratado e para representar o olhar humano do espectador em um mundo desumanizado. Até isso, porém, poderia ser feito pela desconstrução do estereótipo do sujeito perfeito, destinado a ser o herói. Os grandes faroestes são o que são por entenderem que boas atitudes podem vir do mais vil criminoso e más atitudes podem vir do mais condecorado herói. Ao tentar criar esse mundo não dicotômico e insistir tanto na bondade de seu protagonista, Greengrass acaba por reafirmar a dicotomia e sugerir que há apenas um sujeito decente em um mundo onde todos são monstros.
Entretanto, nem mesmo essa falha tira de “Relatos do Mundo” seu mérito de ir ao lugar perfeito para falar sobre o mito americano apenas para versar sobre a relação do estadunidense com o poder e com a conquista. Mesmo imperfeito, “Relatos…” consegue como poucos filmes recentes e de proposta similar mostrar como os Estados Unidos têm um problema crônico e histórico de desumanização das pessoas, de enxergar em um indivíduo apenas oportunidade de lucro e ascensão. Uma pena que essa construção do mundo sem noções de bem e mal acabe, no fim, por se tornar um grande nós (Kidd e a criança) contra eles (policiais, bandidos e quem mais aparecer pelo caminho), e não um estudo de como todo ser humano é mais complexo do que isso.
“Relatos do Mundo” estreia nesta quarta, 10 de fevereiro, na Netflix.
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