- Cultura 26.out.2020
“Borat: Fita de Cinema Seguinte” encontra na realidade um espelho a seu protagonista
Filme de Jason Woliner investiga caráter do eleitor de Donald Trump e se apresenta como manifesto político pré-eleição
Ao assistir a “Borat: Fita de Cinema Seguinte”, o questionamento mais comum no espectador certamente é se perguntar o que é ficção e o que é realidade. Afinal, no novo filme, assim como o antecessor, o personagem vivido por Sacha Baron Cohen vai aos Estados Unidos para entender melhor a cultura local, o que faz por meio da interação com as mais diversas e excêntricas figuras que encontra pelo caminho. No caso da continuação, há uma missão mais específica: penetrar no mundo da política do país junto da filha, Tutar (Maria Bakalova).
“Borat 2” tem pretensões bastante audazes, porém. Catorze anos depois, Larry Charles é substituído por Jason Woliner na direção, que assim como Baron Cohen tem o objetivo de fazer do filme um grande manifesto anti-Trump diante da chegada das eleições presidenciais de 2020. O que a dupla alcança na continuação, porém, é bastante peculiar pois vai muito além da meta inicial e faz do segundo “Borat” um exemplar perfeito da potência do cinema como arte capaz de causar reflexão por tornar mais turva a separação entre ficção e realidade.
No fim das contas, não importa muito o que é verdade e o que é “armação” do ator em “Borat 2”. Não importa se as reações dos trabalhadores, manifestantes e figuras religiosas que atravessam a jornada do fictício jornalista cazaque são registros reais. O que importa é que suas reações e opiniões são, de fato, reais. Há inúmeras pessoas que pensam da exata forma como o filme retrata. Há incontáveis casos de homens adultos e idosos com histórico de pedofilia e abuso sexual. Há alarmantes registros de manifestações racistas, homofóbicas, extremistas e neonazistas pela América – basta apenas lembrar da manifestação da extrema direita norte-americana em Charlottesville.
Em suas pretensões políticas, não considero que “Fita de Cinema Seguinte” seja um grande trabalho. Suas intenções anti-Trump (no sentido de desconstrução da figura política do presidente) são sempre básicas e em função do humor mais urgente em torno do personagem de Baron Cohen. Há um sentimento forte de que não há uma progressão nessa crítica, não há um avanço mínimo que torne o discurso coeso e certeiro.
É curioso notar, porém como o filme acerta em tópicos que talvez nem sejam o objetivo principal de seus realizadores. Borat, afinal, é um personagem cazaque construído a partir do olhar americano para os países da Ásia Central e do Oriente Médio. Sua chegada aos Estados Unidos, entretanto, aos poucos mostra como a diferença entre essa caricatura se assemelha mais ao próprio povo estadunidense do que qualquer outra coisa. Por mais que Borat e Tutar encontrem aqui e ali figuras que não corroborem seus ideais machistas, racistas, antissionistas e homofóbicas, o grosso dos encontros com os estadunidenses revelam um povo que em sua maioria, se não compartilha esses ideais retrógrados, ao menos faz vista grossa e finge que eles não existem ou não são algo tão preocupante.
Conforme Borat e Tutar começam a disfarçar suas aparências para melhor se entrosar na sociedade americana, notamos como são melhor aceitos pelo povo estadunidense e em conversas francas, sejam elas forjadas ou feitas com câmeras escondidas, encontram mais em comum com o cidadão típico do país de Donald Trump do que eles próprio esperavam. O que “Fita de Cinema Seguinte” faz então é evocar o caráter de parte do eleitor de Trump, constatando que o presidente norte-americano não chegou lá por acaso e sim por representar uma linha de pensamento, um perfil de pessoa tão comum na sociedade do país.
A continuação de “Borat” é um exemplar perfeito da potência do cinema como arte capaz de tornar mais turva a separação entre ficção e realidade
Borat e Tutar saem de um Cazaquistão fictício para encontrar a América real, e mostram como suas caricaturas estão muito mais próximas do ideal do americano médio do que poderíamos imaginar em uma primeira impressão. E aí entendemos que de fato não importa o que foi armado e o que foi conquistado com câmeras escondidas, mas sim que Woliner conseguiu transformar seu filme em um choque de realidade: o segundo “Borat” é um filme que mostra como a caricatura cazaque representa mais a mitologia por trás do americano típico do que poderíamos imaginar.
A crítica a Trump, então, funciona muito mais pelas subjetividades do que pela intenção direta de expor o caráter torpe das figuras que o cercam – como o advogado Rudy Giuliani, que protagoniza a cena mais perturbadora do longa-metragem. A crítica funciona por mostrar que, se você criar um personagem que reúna estupidez e todos os preconceitos possíveis, é possível não só que o povo o aplauda, como o coloque em cima de um palanque, com um microfone, verbalizando seus preconceitos e discursos de ódio sem ser interrompido ou questionado, mas aplaudido e endossado – com direito a saudações nazistas. “Borat: Fita de Cinema Seguinte” revela, nos meandros e nas brechas, o conjunto de características que fazem Donald Trump ser não um peixe fora d’água, mas o catalisador de ideologias que habitam o imaginário estadunidense há décadas.
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