“É um poema visual”: a criação (e os desafios) de “A Caminho da Lua”
Diretor Glen Keane discute as origens e mensagens do filme que é a mais nova animação original da Netflix
Era uma quinta-feira como qualquer outra do mês de março quando Glen Keane viu os primeiros impactos diretos da pandemia em seu trabalho. Às 11 da manhã, ele e sua equipe foram notificados pela Netflix a deixar imediatamente o espaço onde trabalhavam porque os estúdios da empresa estavam sendo fechado às pressas, seguindo à risca as medidas de isolamento e distanciamento social.
Em questão de meia hora, o espaço onde até então a produção de “A Caminho da Lua” acontecia a todo vapor deixou de existir, como se 120 animadores desaparecessem de forma súbita do local e deixado como único registro de sua existência os copos de café frio nas mesas e os casacos envoltos nas cadeiras. Mas como outros tantos projetos atingidos pela atual crise sanitária, o trabalho continuou vindo – e acontecendo, para a total surpresa de Keane.
“Nós todos voltamos para nossos respectivos lares e de alguma forma conseguimos continuar nos movimentando. E no dia seguinte nós alcançamos a meta seguinte do projeto. E na próxima semana, e na próxima semana” diz o animador e diretor por trás do filme, que enfim faz sua grande estreia no catálogo da Netflix na próxima sexta, 23 de outubro. A fala, dita por Keane durante uma mesa-redonda virtual com o B9, é proferida em tom de surpresa, até porque vem de alguém que parece entender bem o peso do golpe que o distanciamento social podem desferir a um projeto deste porte, um veterano da indústria que esteve envolvido em produções de imenso sucesso como “A Bela e a Fera” e “A Pequena Sereia” que agora faz sua estreia na direção de longas na esteira do primeiro Oscar – pelo curta “Dear Basketball”, a despedida de Kobe Bryant do basquete.
Não bastasse isso, ainda havia a pressão do filme estar em sua fase final de pós-produção. Memórias traumáticas não faltam, claro, em especial de videoconferências que deram muito errado – “Eu me mudei para as montanhas, onde temos uma casa, e a internet era horrível, terrível mesmo.” relembra – mas Keane acredita que havia uma força movendo ele e a equipe a completar o filme sem atrasos e no nível que eles queriam trazer para a história. “Eu acho que todos nós acreditamos que estávamos trabalhando em algo que era muito maior que todos nós, e ninguém podia se dar ao luxo de ser o elo fraco desta corrente” disse durante a conversa com a imprensa.
Uma história maior
Esse “algo maior” verbalizado pelo diretor tem muito a ver com a origem de “A Caminho do Lua”, um filme que já antes da pandemia tinha uma história e tanto a ser contada. Em desenvolvimento desde 2015, a animação é também o último filme da roteirista Audrey Wells, que tomou a decisão deliberada de tornar o projeto em seu trabalho final antes de falecer em 2018, por conta de um câncer.
Esta informação transforma a experiência do filme, até porque a história gira em torno de uma garota que literalmente constrói um foguete para viajar à Lua e provar ao mundo que as histórias contadas por sua falecida mãe são verdadeiras. “A Audrey trabalhou esta história de uma maneira bastante pessoal, porque significava muito a ela deixar este filme à sua filha” relembra Keane, que entrou na direção um ano antes da roteirista deixar o mundo e imediatamente entendeu a carga emocional envolvida em torno da produção a ponto de permitir que esta norteasse a narrativa de luto – na forma de um musical. “Há algo na música que te levanta emocionalmente. É como a água no lago que faz o barco flutuar” diz, logo em seguida sendo bastante categórico sobre o tipo de filme que queria realizar desde o início: “Esta história de muitas maneiras é um poema visual, é um tipo de narrativa que ao invés de lidar com os temas pelo lado intelectual o faz de uma maneira simbólica”.
É uma constatação que deriva muito dos achados de Fei Fei na Lua, que revela ter um outro lado mais mágico na forma da cidade de Lunária. A partir deste ponto, o filme que a princípio se ensaia pé no chão abre as portas para todo um espetáculo imagético que soa mesmo como a alma da produção: embora a protagonista construa um foguete para de certa forma fugir da realidade de ver o pai seguindo em frente com uma nova família, ela logo encontra na história da deusa Chang’e uma espécie de espelho para sua própria situação, um contato em si criado através da busca de um misterioso presente que ela precisa oferecer à mítica figura em busca da comprovação ao qual tanto almeja.
Keane tem bastante consciência de todas as imagens que proporciona, e inclusive acredita muito no poder da mensagem que passa ao público. “A meta do filme é de dar algo tangível, tanto a crianças quanto adultos, para superar seus próprios desafios na vida e confortar outros com o conforto que nós recebemos.” define. Seu envolvimento foi profundo: os último storyboards do filme aprovados foram dele, de acordo com o diretor, justamente aqueles que envolviam o desenho manual da história de Chang’e – muito porque ele procrastinou o trabalho, mas também porque era importante que aquele momento existisse como “uma afirmação gráfica”.
Uma mistura de Pink Floyd com Miró
Embora “A Caminho da Lua” seja de fato o primeiro longa de Keane, o filme passa longe de passar uma sensação final de “estreia” e se relaciona melhor com o produto de alguém que há anos trabalha no meio – o que não deixa de ser verdade, dado que o criativo há anos habita o departamento de animação em todos os seus cargos, inclusive sendo homem de confiança da Disney no auge dos anos 90.
No caso da produção da Netflix, não faltaram referências a Keane e sua equipe para construir os dois cenários chave da história, incluindo aí uma pesquisa de campo na cidade de Wuzhen para trazer o máximo de verossimilhança ao lar de Fei Fei. “Tudo o que eu cheirei e experimentei, tudo o que eu ouvi e toquei, era isso que queria trazer ao nosso filme” conta o animador, que confessa nunca ter visitado a China antes da realização do filme e comenta ainda do encantamento do time com o visual da cidade durante a visita: “Minha diretora de arte, Celine Desrumaux, ficou fascinada com a luz de Wuzhen, e ela dizia ‘Glen, olhe essas paredes brancas, elas não são brancas! Há azul, verde, até amarelo!'”.
Foi este fascínio pela luz da cidade que serviu também de base para a produção construir a cidade de Lunária, o qual Keane revela ter como fonte primordial as lágrimas da deusa Chang’e – a cidade é inteira iluminada pelos raios emanados de suas gotas. Como viabilizar isso, porém, foi um grande desafio: segundo o diretor, o desejo inicial era reproduzir o efeito do filme do “O Mágico de Oz”, usando a transição do filme em preto e branco para o Technicolor para saltar aos olhos do espectador a magia do mundo fantástico, mas a questão da iluminação surgia o tempo todo como obstáculo.
Mas a chave virou quando ele lembrou de um encontro inesperado com o neto do pintor Joan Miró, ocorrido anos antes num restaurante italiano em Paris. “As pinturas de Miró sempre foram feitas destas esferas flutuantes, quase infantis, que geram imagens fantásticas” revela na conversa; “Ele [o neto de Miró] me deu um livro de pinturas dele na ocasião, e quando lembrei do livro foi que me toquei que aquilo era Lunária. É assim que as luzes serão emanadas! Isso e a capa do ‘The Dark Side of the Moon’, com sua única luz branca que explode em um arco-íris.”.
É a viagem de Fei Fei por este mundo, porém, que guia o olhar do espectador pelo mesmo, porém. “Ela é o veículo. É como se você entrasse em um brinquedo dos parques da Disney, entrasse num barquinho e este o levasse numa aventura” comenta Keane, que cita até mesmo personagens como o “novo” irmão Chin de exemplo do tipo de simbolismo que habitam a trama; “Ela é este barco, nós entramos por debaixo de sua pele e vemos o filme pelos olhos dela, nós passamos por aquela experiência a partir do coração dela. Todos os momentos são desenhados de uma forma para que ela supere o obstáculo que é a morte da mãe”.
Keane ainda afirma que os designs criados para “A Caminho da Lua” são acima de tudo emocionais, antes mesmo de se portarem como artísticos, e neste sentido não há prova maior deste comprometimento íntimo que as cenas de jantar familiar da história – um momento nascido da visita a Wuzhen. “Nós jantamos na casa de uma família chinesa e fomos cercados dos avós, pais e filhos” relembra na entrevista; “Era enorme o nível de honestidade, franqueza e de expressar o amor, quase como um respeito geracional. Ficou claro pra mim, ali, que aquela reunião tinha que ser o laço final do nosso filme. E tudo isso veio à mente apenas visitando e estando naquele lugar”.
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