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“The Last of Us Part II” e a crítica de arte na era dos games

Como levar a discussão sobre jogos para além de uma questão de gráficos e torná-la sobre aquilo que eles representam e provocam

por Matheus Fiore

Desde que teóricos como André Bazin surgiram, qualquer dita crítica de um filme que se proponha a analisar uma obra cinematográfica sem levar em conta sua proposta estética, aliando forma e conteúdo, é não só equivocada como também datada. São 60 anos desde que o mais importante pensador e crítico do cinema, além de criador da Cahiers du Cinéma dissertou em uma de suas obras mais relevantes sobre a importância de se propor uma ideia sobre um filme e não transformá-lo em algo mecânico, como se a parte estética fosse um bingo técnico no qual se dá notas separadas e calculadas para direção, fotografia, roteiro e por aí vai. Bazin falava sobre a força da imagem como a alma do filme e como cada autor tinha sua forma de utilizar o recurso imagético – e por isso, a importância de se avaliar uma obra de acordo com sua proposta, e não baseado em sua expectativa pré-consumo.

Como bom crítico que foi (talvez até o melhor) e assim como outros grandes como Tag Gallagher, Bazin propôs um modelo de análise que pode (e, ao meu ver, deve) ser utilizado para um crítico julgar qualquer forma de arte. Se um filme pretende construir uma ideia a partir da quebra de normas técnicas ou desapego à lógica, por exemplo, é um erro de base julgá-lo negativamente por realizar essa quebra – e aí vemos o quão problemáticas são as caçadas aos furos de roteiro. Isso fica claro ao observarmos como o crítico separou o cinema clássico do moderno e propôs novos modelos que tornassem as narrativas mais “verdadeiras”.

Tomando como base o trabalho de críticos e teóricos como Bazin, então, como pode se posicionar a crítica na era dos games? E por quê ainda temos tanta dificuldade em encontrar textos sobre jogos que sejam de fato críticas, ao invés de simples comentários técnicos pretensiosos e vazios?

Bem, para começar é justo pontuar: a crítica de cinema não nasceu madura. Teve sua consolidação apenas nos anos 60, quando a sétima arte já tinha mais de meio século de história. Os videogames, portanto, ainda engatinham para seu reconhecimento e tratamento como arte. Mesmo assim, em uma era na qual há tanta informação disponível pelas mais diversas fontes – e vale lembrar, em tempos de PDFs ao alcance de dois cliques, totalmente acessíveis – pode ser um tanto frustrante acompanhar o mundo das críticas de jogos.

Peguemos como exemplo o recém-lançado blockbuster da Naughty Dog, “The Last of Us Part II”. Depois que o jogo que continua a jornada de Ellie e Joel chegou às lojas, boa parte das ditas críticas se dividem em amor e ódio, mas em defesas e ataques tão pueris que não incitam qualquer debate acerca da obra – até porque sim, “The Last of Us Part II” é uma obra de arte, assim como “Super Mario World” e “Metroid” já eram há trinta anos.

É desestimulante ler, ouvir ou assistir a uma análise que se propõe como crítica de um jogo e observar, por exemplo, como comentários elogiosos ressaltam majoritariamente a qualidade gráfica, a trilha sonora ou a jogabilidade. Ora, assim como fotografia, trilha sonora e montagem não possuem valor sozinhos numa obra cinematográfica, nenhuma dessas características isoladas é capaz de tornar um jogo bom ou ruim.

Um jogo, como toda obra de arte, deve ser analisado em sua completude. É disso que constitui a narrativa, palavra tão mal utilizada por muitos que a confundem com a história. A diferença entre as duas é clara: a história é o que é contado, o que acontece, enquanto a narrativa é o meio, o como isso acontece. Tudo é narrativa.

No caso do segundo “The Last of Us”, desde um diálogo entre Joel e Ellie até um coadjuvante pegar uma garrafa de vidro do chão e dar na mão do protagonista, tudo passa por questões de narrativa. Quaisquer escolhas estéticas, sejam de cutscenes ou em gameplay, criam uma narrativa e contribuem para a unidade do jogo. Assim como o simples ato de um boneco do Mario em 8 bits pular e socar tijolos ser, por si só, uma narrativa.

Mas como julgar “The Last of Us Part II” – ou qualquer outro jogo – de um ponto de vista crítico? Oras, da mesma forma como um crítico deve fazer com qualquer outra forma de arte: apresentando uma ideia sobre a obra e criando uma argumentação sobre sua execução. Dizer que “The Last of Us” fala sobre ódio e vingança não é uma crítica, mas passa a ser a partir do momento que se estuda como esses conceitos refletem em cada minuto das aproximadas 25 horas de jogatina.

Chegamos, então, às críticas negativas: muitos reclamam que a “parte 2” perde tempo demais com novos personagens em vez de focar em Joel e Ellie, enquanto outros acusam o jogo de humanizar demais seus vilões. São gostos pessoais totalmente válidos, mas que não fazem muito sentido em um texto dito crítico, o qual deveria, por lógica, julgar a obra de acordo com sua relação entre forma e conteúdo.

Como o próprio diretor do jogo Neil Druckman afirma, o segundo “The Last of Us” tem interesse em propor um debate sobre violência e ódio. Como isso é articulado no jogo? A jornada de Ellie é exclusivamente por vingança, enquanto assistimos a mais de 20 horas de chacina, tanto por parte dela quanto por parte de outros personagens. Mas o que deve ser levado em conta para se criticar um game não são apenas suas cutscenes, mas também os momentos de jogabilidade – algo que soa óbvio, mas infelizmente não é unanimidade quando vemos que tantos se propõem a ser críticos de jogos e avaliam história e game como itens separados.

“The Last of Us Part II” traz poucas novidades em termos de jogabilidade. São horas a fio de tiros, esfaqueamentos, explosões, mutilações e as mais variadas violências que você possa imaginar. Como isso se encaixa na experiência completa? O jogador sente culpa por interpretar uma serial killer? Sente empatia? Sente prazer por empilhar corpos? Como a obra nos leva a sentir essas coisas? São sentimentos que aparentam ter sido gerados intencionalmente pelos realizadores ou é um acidente que, talvez, vá contra justamente o que eles queriam que sentíssemos?

Outra reflexão importante: cinema é uma arte incrível, mas diferente dos videogames. Os jogos têm como alma a interação, a presença ativa de quem consome. Se no cinema há o espectador, no videogame temos o jogador.

É justo, portanto, que um jogo tenha momentos de jogatina simples, mas tenha todo o aprofundamento dramático nas cutscenes, momento menos “gamificado” da experiência? Afinal, se apenas se assiste aos eventos importantes ao invés de vivê-los ou manipulá-los, você está assistindo a uma obra que em termos cinematográficos pode até ser interessante, mas que não é necessariamente um grande jogo.

Essas são as perguntas que uma crítica de um jogo deve fazer, e não se o gráfico tem queda de frame rate quando se encontra o terceiro chefão. Com todo respeito, mas pouco importa se você acha que o gráfico do jogo é o melhor da história dos videogames e se a Ellie é a melhor protagonista da geração. Na verdade, pouco importa se você sequer gostou ou não do jogo. Se você se propõe a fazer uma crítica, a única coisa que importa é você conseguir articular suas ideias em uma análise que leve em conta não só o conteúdo, mas a linguagem do jogo.

Não seria justo dizer que só há críticas ruins para jogos de videogame, porém. Seria injusto não citar canais como Nautilus e Jogabilidade, por exemplo, que se esforçam (com sucesso) para apresentar uma leitura crítica para o que estão consumindo. A ideia deste texto é propor uma reflexão sobre a crítica de jogos como um todo. Para que uma arte com potencial para ser a mais completa e imersiva já criada por nós, não estar sempre sujeita a discussões tão rasteiras e robóticas, dignas de textos gerados automaticamente por algoritmo, sobre paleta de cores e ritmo, como infelizmente acontece com boa parte das discussões sobre cinema.

Se os games aos poucos conquistam o reconhecimento como a arte que são, é justo e necessário que haja uma produção crítica que os trate como tal. Caso contrário, não fará diferença alguma consumir uma dita crítica nesses formatos engessados, e ler um texto criado por uma inteligência artificial autônoma. 

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