- Cultura 29.abr.2020
Provocante, “Zombi Child” renega força das próprias imagens
Novo filme de Bertrand Bonello se entrega a explicações em excesso e abusa dos estereótipos mal aproveitados
Pelo menos em seus dois últimos filmes, Bertrand Bonello demonstrou enorme interesse pela construção de narrativas cinematográficas que partem de tramas protagonizadas por jovens para falar de problemas históricos e sociais do mundo. No caso de “Nocturama”, diante de um grupo que planeja atentados terroristas, o mero fato de não haver interesse pela exposição das motivações dos personagens já resultava em um julgamento do próprio diretor sobre o ato, escancarando a superficialidade e o vazio por trás daqueles feitos. Em seu novo filme, “Zombi Child”, o cineasta francês adota um estilo parecido, mas de forma mais expositiva e direta.
O novo longa acompanha dois espaços separados: o dia-a-dia de um internato feminino de classe média na França, onde a única jovem negra vê suas colegas se interessarem pela cultura haitiana de sua família, e a transformação de um jovem haitiano em zumbi durante os anos 60. A partir disso, Bonello tenta estudar as diferentes relações com a cultura de acordo com o ponto de partida de cada personagem – afinal, uma jovem branca de classe média certamente terá uma perspectiva diferente em relação a uma mulher negra haitiana que nasceu imersa naquela cultura.
Passando pelo descolonialismo até chegar ao retrato da inércia da juventude contemporânea, “Zombi Child” traz alguns acertos de “Nocturama”, mas cai em armadilhas de linguagem que poderiam ser evitados. O longa é muito eficiente quando fala por suas imagens e principalmente pela linguagem corporal de seus personagens: as imagens capturadas por Bonello são fortes e gritam a visão do cineasta para aquele mundo. As jovens confinadas no internato se comportam, de fato, como zumbis, não só por sua frieza e lentidão, mas principalmente pela forma com a qual perambulam pelo mundo, incapazes de articular suas próprias ideias ou propor alguma coisa.
Em contrapartida, quando o filme nos leva ao Haiti, vemos um mundo praticamente oposto, vívido e pulsante. A câmera nos conduz por um espaço onde tudo parece uma dança, movido pela crença e o que é ritualístico – não por acaso, dentro do filme tudo isso parece ser impossível de se reproduzir fora do contexto sociocultural haitiano.
Toda essa força visual é desperdiçada em alguns segmentos de “Zombi Child”, porém, quando Bonello parece se apegar demais a signos e simbolismos que imageticamente nada acrescentam à narrativa. São metáforas e significações estéreis, que jamais aprofundam o que é projetado. Em vez de aproveitar os estereótipos apresentados a favor do gênero, por exemplo, Bertrand os utiliza apenas como canais para alegorias e mensagens.
O filme é muito eficiente quando fala por imagens e principalmente pela linguagem corporal de seus personagens
Outro problema é a necessidade de Bonello de transpor em diálogos praticamente tudo que acontece no filme, como se o cineasta quisesse significar cada frame projetado durante as quase duas horas de “Zombi Child”. Apesar de uma construção visual tão boa e, em certos momentos, tão impactante – principalmente no clímax, quando abandona de vez a sugestão e abraça o que é visualmente bizarro e sujo – o longa sempre precisa se decifrar, como se não confiasse na força das próprias imagens e devesse explicações ao espectador. Explicações essas que, na verdade, apenas soam como algo maçante por estarem tentando por em termos literais algo que é essencialmente visual e, portanto, inexplicável.
Pensando nessa necessidade de mastigar o próprio cinema, é interessante lembrar de um exemplo quase oposto ao de “Zombi Child”, o “Suspiria” de Luca Guadagnino. Partindo de uma releitura da clássica obra e Dario Argento, o remake propunha uma experiência quase que exclusivamente sensorial, na qual a compreensão do que é projetado jamais se torna o centro da discussão – o foco do novo “Suspiria” era sempre o poder da imagem em si. Bonello parece não confiar no que filma, mesmo que haja tanto conteúdo visual interessante.
“Zombi Child” sempre precisa se decifrar, como se não confiasse na força das próprias imagens e devesse explicações ao espectador
Bonello é um cineasta que se sai melhor ao propor ideias que em articulá-las em uma narrativa concisa. “Zombi Child” é um filme cujo autor parece não saber o que fazer com seus próprios personagens e para onde levar sua história, e por isso parece muitas vezes andar em círculos – o resultado é o desgaste de ideias que de início parecem promissoras, como acontece em “Nocturama”. O longa carece de algo tão essencial para o cinema de terror e para qualquer história fantástica que tenha zumbis em sua narrativa: acreditar no fantástico, no absurdo.
Ao tratar o misticismo com tanta frieza e distanciamento, tudo que “Zombi Child” consegue é propor debates interessantes, mas mantê-los em um nível de superficialidade que, para além de travar o desenvolvimento do próprio filme, joga o filme em territórios um pouco problemáticos em virtude do retrato cultural feito. Afinal, se o diretor não consegue explorar o núcleo haitiano da narrativa para além de imagens de pessoas em rituais religiosos, tudo que ele consegue com isso é cair em um estereótipo bastante incômodo. Mesmo que a ideia do diretor seja o exato oposto ao do estereótipo, sua intenção não muda o fato de que pela inexistência de um articulação, de desenvolvimento e de progressão durante o filme, sua estética acabe reafirmando e endossando justamente os problemas que ele aponta no mundo contemporâneo.
A ironia é um filme chamado “Zombi Child” ser justamente um filme morto-vivo, no qual a narrativa parece natimorta pela total falta de pulsação de seu autor. Instigante e pulsante, ao mesmo tempo que estéril e imóvel, é um filme-zumbi.
Previsto para estrear nos cinemas no último dia 26 de março, “Zombi Child” foi lançado nas plataformas digitais brasileiras nesta quarta, 29 de março. O longa está disponível no iTunes, Google Play, YouTube, Vivo Play e NOW.
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