- Cultura 2.mar.2020
“Uma Vida Oculta” navega pelo divino e o profano no cenário da guerra
Terrence Malick volta a estudar religiosidade, agora no contexto da opressão do nazismo
Terrence Malick é um diretor que sempre demonstrou interesse pelo estudo da relação de seus personagens com o mundo material e o espiritual, o profano e o sagrado. No amado e odiado “A Árvore da Vida”, que lhe rendeu a Palma de Ouro, o diretor parte de um simples recorte da jornada de uma família americana para abordar temas mais existencialistas, tanto sobre a relação entre os próprios membros da família quanto sobre como essas figuras se sentem e se posicionam no mundo material e sua relação com o divino.
Depois de “A Árvore da Vida”, porém, Malick enfileirou filmes que não tiveram a mesma recepção positiva – mesmo que, ao meu ver, nenhum deles seja ruim. Pode-se dizer que são filmes menos narrativos, nos quais o formato clássico de história com começo, meio e fim são substituídos por enxertos de imagens que se autocompletam muito mais pela ressonância da sequenciação de imagens do que por uma construção de jornada mais clara. Em “De Canção em Canção”, por exemplo, vemos o surgimento e a ruína de relacionamentos de personagens com impulsos autodestrutivos fortíssimos, e esse impacto ocorre muito mais pela exposição das cenas dos personagens, do que pelo desenvolvimento de uma história mais formal.
Agora de volta a um estilo mais parecido com de “A Árvore da Vida”, Terrence Malick apresenta em “Uma Vida Oculta” uma jornada um pouco mais refém de ordens cronológicas e lógicas para seus acontecimentos. Isso ocorre principalmente pelo fato do diretor partir de uma história real, a do austríaco Franz Jäggerstätter (interpretado por August Diehl), que se recusou a lutar pelo Terceiro Reich e acabou condenado à morte. Durante as quase três horas de filme, somos introduzidos à rotina de Franz, sua relação com sua família nos alpes austríacos e o baque emocional e físico resultante da obrigação de abandonar seu estilo de vida para ir à uma guerra que não o representa. Estilo esse que era centrado em sua relação com sua família e com a divindade, presente por meio da natureza.
Diferente de boa parte dos filmes de guerra, “Uma Vida Oculta” não apresenta tanto interesse em expor os horrores mais óbvios do nazismo. A ideologia de extrema-direita é um inimigo estabelecido já antes de sequer conhecermos os personagens, já que Malick abre seu filme com cenas de “Triunfo da Vontade”, histórico filme-propaganda do nazismo feito por Leni Riefenstahl.
Mesmo com essa contextualização, porém, Malick não se esforça para dar um tom político para “Uma Vida Oculta”. O longa-metragem é, assim como em boa parte dos filmes do diretor, um estudo da relação de seus personagens com os espaços, no caso do apego ao divino e a natureza como ponte entre um homem e Deus – e como a guerra afasta o homem de tudo que é essencial a ele.
O filme é um estudo da relação de seus personagens com os espaços, no caso o apego ao divino
O já notório estilo de Malick se faz presente mais uma vez: muitos planos com câmera na mão, que perseguem os protagonistas de forma vívida e, em alguns momentos, até aleatória, criando um tom etéreo para toda a narrativa. Esse modelo acaba sempre contrastado quando o filme troca a vida tranquila nas montanhas austríacas pelo ambiente de guerra para onde Franz é enviado; o tom é rompido e, mesmo que a câmera na mão continue, Malick faz planos mais bruscos, com imagens trêmulas, levando à forma de filmar a atmosfera opressora e agressiva daquele período histórico no qual o nazismo contaminou boa parte do mundo e o levou a um dos momentos mais sombrios da história da humanidade.
Outro elemento importante nessa construção de cenários opostos é a montagem. A continuidade não é um elemento bem quisto por Malick há décadas, mas em “A Vida Oculta” seu estilo que despreza o continuísmo ganha uma importância não tão óbvia para construir essa sensação de incômodo perante a situação do personagem. De um lado, temos as cenas nas quais Franz está na natureza, trabalhando ou brincando com sua família, que são apresentadas com imagens mais leves e de planos longos; do outro, o confinamento e a prisão nazistas, nos quais cortes recorrentes criam um estranhamento visual que constrói a sensação de opressão que permeia a situação do personagem.
A presença e amparo divinos surgem não por meio de feitos fantásticos, mas na conexão de Franz com a natureza
E falando no confinamento, é interessante também como o personagem cria seus escapismos quando preso pelo Terceiro Reich. A religiosidade, tema tão querido por Malick, se torna base de sobrevivência para Franz, mas o diretor busca o espiritual no mundano. A presença e o amparo divinos surgem não por meio de feitos fantásticos, mas pela conexão de Franz com a natureza, uma conexão criada nas cenas nas quais Franz conversa com Deus e é respondido por sons de vento ilustrados por imagens de riachos e montanhas.
Essa relação entre o divino e a natureza não é uma mera escolha estética de por no natural algo sobrenatural, mas também uma forma de Malick expor a guerra como um afastamento do divino. Quando absorvido pelo exército nazista, o contato de Franz com sua fé se torna algo exclusivamente imaginário, e sua tristeza é perceptível principalmente quando ele lamenta o distanciamento da natureza. Saem os grandes jardins e montanhas que permeavam sua rotina, entram pequenos tufos de grama esmagados entre o concreto dos prédios destruídos pela batalha. No fim das contas, o cineasta retorna ao assunto que mais lhe apetece, repetindo um pouco de sua forma mas sem com isso se desgastar ou ser artisticamente preguiçoso.
Mesmo que esteticamente “Uma Vida Oculta” pouco traga de novo em relação à filmografia de Malick, é interessante ver como o estadunidense é um dos cineastas que melhor mantém um mesmo estilo, sem nunca se repetir tematicamente. A religiosidade sempre está lá, mas é abordada de maneiras diferentes. “Uma Vida Oculta” exala, a cada frame, essa sensação de que o afastamento de Franz da natureza e de seu seio familiar o afastam também de Deus. É uma obra que apresenta essa visão religiosa e a sustenta de maneira interessantíssima pelo domínio que Malick tem do assunto e do modelo estético que utiliza desde “Além da Linha Vermelha”.
Para Malick, os horrores da guerra vão além da destruição, da segregação e da morte. O cineasta trata a jornada em prol do ideal nazista como um abandono da própria essência humana.
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