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Capa - “Joias Brutas” faz do caos de Nova York um curto-circuito de crença no impossível
Imagem: Uncut Gems

“Joias Brutas” faz do caos de Nova York um curto-circuito de crença no impossível

Novo filme dos irmãos Safdie encontra na lógica frenética da cidade a base para confronto incendiário entre Adam Sandler e sistema de opressões

por Pedro Strazza

É muito difícil assistir “Joias Brutas” sem se sentir intoxicado em algum momento pela narrativa do filme, cujo propósito mora na perpetuação eterna de sentimentos de desgaste e estresse permeados por uma hiperatividade de acontecimentos simultâneos que vivem indo e voltando nos caminhos do protagonista Howard (Adam Sandler). O aparato desenvolvido pelo longa se comporta como verdadeiro caos de acasos, mas embora esta experiência de tensionamento seja uma que talvez encontre o contexto necessário na ambientação do chamado “diamond district” de Nova York (uma das regiões mais ricas da cidade), em nenhum momento ela se comporta como uma mera reconstrução ou registro do cotidiano de um cenário para justificar sua existência – estamos distantes aqui dos caminhos de um “Roma” ou “Cafarnaum”, por exemplo, onde a cidade atua como um personagem num sentido final de retrato per se.

Esta constatação é importante porque no fundo ela se relaciona diretamente ao âmago do cinema elaborado pelos irmãos Josh e Benny Safdie, que de uma forma ou de outra sempre viu na metrópole efervescente de Nova York algo muito maior que um palco. É algo que se faz notar nas escolhas dos protagonistas de seus filmes, tipos marginalizados ou rejeitados sociais cuja existência nunca foi assimilada como fragmento perdido da dinâmica social mas fruto direto dela, tornando-as crias específicas de regiões particulares: da cleptomaníaca de “O Prazer de Ser Roubado” aos irmãos delinquentes de “Bom Comportamento”, a dupla desde o início da carreira se debruça sobre estas figuras sob um intuito quase essencializante, como se estes refletissem a Nova York onde moram da mesma forma que Nova York reflete suas existências – e talvez seja daí que venha a relação de atração e repulsa constante e tão marcante das narrativas dos irmãos, cuja identidade encontra no gênero do suspense um canal ideal de expressão.

Com Howard e “Joias Brutas” este modo de operação não é diferente, embora seu procedimento seja intensificado em muitos sentidos. Além de prosseguirem na verve hipersensorial e hiperativa que os ajudou a alcançar os holofotes em “Bom Comportamento”, este novo projeto leva ao limite esta dinâmica de atração e repulsa entre público e protagonista porque no fundo o joalheiro vivido por Sandler não possui qualquer traço de redenção mínimo que motive a empatia. Howard é inescrupuloso, não possui motivos para arriscar tudo nas apostas que faz, está à beira de perder a família e a amante, não hesita em colocar familiares em posições arriscadas e sequer mostra algum apreço pela vida; ao mesmo tempo, porém, suas movimentações na história escrita pelos Safdie e Ronald Bronstein levam o espectador a um caminho onde no fim é difícil não estar envolvido emocionalmente sobre suas ações, e é em cima deste paradoxo que o filme existe.

Da esquerda para a direita: Josh Safdie, Benny Safdie e Adam Sandler no set

O caráter da narrativa é extremo e não abre brechas para conciliações rápidas – até porque o protagonista, como todos os outros dos Safdie, não se encontra submetido a um arco de transformações – então faz sentido que os diretores recorram a um viés místico para enquadrar a joia bruta do título, seja ela a pedra ou o humano no centro das atenções (como bem apresenta a piada visual da colonoscopia). Há pouco espaço para didatismo porque no fundo interessa ao público e os cineastas não as grandes apostas feitas por Howard, mas o sistema de crenças que se acumulam nos arredores, uma fé em nada religiosa mas pulsante a ponto de mover seus personagens sobre elas – seja pelo ceticismo ou o abraço absoluto dessas. Neste sentido, poucas cenas servem de síntese a esta estruturação quanto a cena da apreensão do protagonista pelo cunhado Arno (Eric Bogosian) e o grupo de agiotas, pois a indignação de Howard na hora não vem quando é humilhado (seu desespero ao ser desnudado é mais um lamento, do relógio que é perdido) ou acusado (ele protesta para ser ouvido), mas quando é comunicado que a aposta foi interrompida.

É neste momento que a comparação do filme com o mito de Sísifo se torna irresistível, porque só ela deve ser capaz de traduzir a provação recorrente do protagonista (e portanto do espectador) neste ínterim. “Joias Brutas” é um grande ciclo de erosão e destruição eterno criado e motivado pela “vitória definitiva” de Howard, cujo ponto de interesse em si não está na conquista financeira mas numa superação, na reviravolta que ninguém acredita e é tornada possível – mesmo aos custos mais extremos.

“Joias Brutas” é um grande ciclo de erosão e destruição eterno criado e motivado pela “vitória definitiva” de Howard

Posto esta estruturação mais ou menos simples, cabe aos diretores a tarefa árdua de conferir significado a esta, e é a partir daí que o filme ganha um corpo volumoso e fascinante de se observar. Os Safdie brincam em entrevistas que “Joias Brutas” foi desenvolvido para ser um thriller de 90 minutos e por acidente se converteu num longa de mais de duas horas de duração, uma explicação que ajuda a tornar evidente não apenas o nível de profusão de narrativas em tráfego pela história, mas o quanto a história não está apenas no protagonista, embora este seja central à narrativa em 90% do tempo. Nova York é parte integrante do filme porque seus personagens e situações movem todo o caos da vida de Howard assim como sua capacidade de administração destes excessos o torna protagonista na cidade, uma razão que por si só leva os Safdie a se debruçar de forma tão obsessiva pelos entornos de seu principal personagem – não é uma questão de autenticidade da história, mas de legitimação dos atos.

O mesmo vale para as atuações, fruto de um naturalismo digno de Cassavetes graças não somente à combinação de atores profissionais com amadores (dos quais Kevin Garnett decerto emerge triunfante) mas da constatação deste ambiente ativo que os circunda. Isso vale para Sandler, claro, cuja performance modula os mais diferentes pontos de crise de fé de Howard sem nunca incorrer em qualquer nível de caricatura (algo acentuado nas granulações e jogo de luzes da fotografia de Darius Khondji) enquanto simultaneamente alterna entre todos os problemas a serem lidados pelo personagem, mas também para os trabalhos coadjuvantes de Bogosian, Idina Menzel e em especial Julia Fox, que precisam mostrar a dependência na figura magnética do protagonista enquanto se posicionam em simultâneo como peças do cenário caótico enfrentado.

O resultado é um sistema vivo e extremamente detalhado, que contribui para ressaltar ao espectador o divórcio radical dos ambientes habitados por Howard e como seus choques tornam-se obstáculos para a concretização de seus planos megalomaníacos.
Nova York é parte integrante do filme porque seus personagens e situações movem todo o caos da vida de Howard

É a partir deste cenário tão opressivo também que “Joias Brutas” vai criar o pressuposto necessário para sua meta final com a história de Howard, trazendo o místico impossível de ser atestado para algo quase físico e palpável aos olhos do espectador. A chave está no diálogo do joalheiro com Garnett, representação mais próxima do real de sua aposta: mesmo um Sísifo fruto de um capital vil, Howard é também por consequência dono de uma crença inabalável, único capaz de converter com sua fé um cenário inviável em possível independente da narrativa em movimento ou do ambiente ao qual ele se sujeita. Neste ponto, talvez a discussão mais relevante sobre o filme seja a forma como este justapõe a diáspora africana com a judaica, na busca por pontos em comum que ressaltem ao público a finalidade comum da luta constante de diferentes marginalizados – uma manobra que não apenas respeita as formações distintas destes traumas, mas que encontra uma espécie de essência maior do sistema e seus submissos.

Sob este ângulo, faz todo sentido que os Safdie encerrem o filme sob o signo do caos, não apenas apresentando a implosão (literal e simbólica) de Howard a partir de sua conquista, mas as consequências de sua vitória aos outros. A própria natureza contraditória da existência do desfecho elétrico em um ambiente fechado, justaposta a um paradoxo de um triunfo moral (da família, da namorada, de Garnett) sob uma aposta que não significa nada além de mais dinheiro para abastados, é um curto circuito de reverberações tão fortes que só pode ser traduzido mesmo em um misticismo digno de elevação espiritual.

nota do crítico

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