- Cultura 20.dez.2019
“Jojo Rabbit” satiriza alienação do povo alemão e acena para perigos do neofascismo de hoje
Filme de Taika Waititi acompanha olhar de uma criança alienada que vê em Adolf Hitler um ídolo e seu amigo imaginário
Os tempos atuais são bastante estranhos politicamente. Vivemos em uma época em que ideologias perigosas do passado estão ressurgido, ao passo que muitos países veem suas populações abraçarem lados extremos com uma facilidade preocupante. É perceptível a perda de tato de parte da sociedade ocidental, algo que fica visível ao observarmos a dificuldade de lidar com ideais diferentes e respeitar conceitos básicos – e seminais para a convivência em sociedade – como os direitos humanos e também pela normatização desse extremismo.
A arte, como sempre, está aí para ser também um reflexo desses tempos. Em 2008, o alemão “A Onda” foi bastante elogiado por mostrar o retorno do fascismo no século XXI. O filme acabou prevendo um fenômeno sociopolítico que se firmaria no país apenas 10 anos depois. Agora, um dos filmes mais badalados da temporada também chega para refletir sobre o nazifascismo: “Jojo Rabbit”, de Taika Waititi, aborda o tema sob a perspectiva da alienação infantil e seus efeitos na formação humana do indivíduo.
Na história, o pequenino Jojo Betzler (Roman Griffin Davis), de apenas dez anos, vive no período de Adolf Hitler e sonha em se tornar um grande braço direito do ditador. Sua mãe, Rosie (Scarlett Johansson), o coloca em um acampamento infantil – uma espécie de grupo de escoteiros nazistas – para afastá-lo de casa, já que lá ela secretamente ajuda uma sobrevivente judia, que vive nas paredes da casa. Para apimentar a história, Taika Waititi, além de dirigir e escrever a adaptação do livro “Caging Skies” de Christine Leunens, também vive o melhor amigo imaginário de Jojo, que é ninguém menos que o próprio Adolf Hitler.
Waititi sempre foi um cineasta interessado no humor – seu último filme, “Thor: Ragnarok”, é reconhecidamente um dos mais satíricos do Marvel Studios. O estilo do diretor, porém, sempre possui uma carga política por trás das piadas. O próprio “Thor”, apesar de não ser um grande filme, tem uma interessante análise de luta de classes e emancipação da classe trabalhadora, além de falar da relação “pão e circo” nas arenas nas quais Thor e Hulk precisam digladiar com os mais variados seres. Em “Jojo Rabbit”, então, que já possui a política em sua camada frontal, isso não poderia ser diferente.
O filme aborda o tema do nazismo sob a perspectiva da alienação infantil e seus efeitos na formação humana do indivíduo
Inicialmente, o longo parece uma inocente sátira que constrói seu humor ao redor dos absurdos do pensamento de uma sociedade nazista. Isso tudo é abordado com leveza que se faz presente do roteiro, que trata tudo de forma infantilizada até as atuações do elenco, tão caricatas que fazem com que adultos e crianças não tenham comportamentos tão diferentes.
O mais interessante, porém, é ver como visualmente Waititi constrói esse universo no qual tudo é infantilizado e amenizado. Mesmo que por trás de tudo haja uma ideologia nefasta, o mundo nazista retratado em “Jojo Rabbit” faz com que os personagens enxerguem de forma adocicada até mesmo um assassinato.
O resultado disso obviamente é a desumanização do inimigo. Judeus, por exemplo, têm todas as suas características humanas substituídas no imaginário popular por elementos bestializadores, os quais fazem com que as crianças sejam educadas sob a lavagem cerebral nazista. Mas mesmo adotando este retrato tão caricato, o diretor ainda consegue sempre dar alguma complexidade a este universo satirizado: o General K de Sam Rockwell, por exemplo, sempre apresenta um olhar de tristeza ou desapontamento quando vê as crianças enaltecendo ideais nazistas, mesmo que consiga ocultar isso por suas falas.
O mais interessante é ver como visualmente Waititi constrói esse universo onde tudo é infantilizado e amenizado
Analisando como um todo, é justo enxergar “Jojo Rabbit” como um estudo do efeito da alienação das crianças, que influencia em sua formação como indivíduos a ponto de crescer sem o tato social, com dificuldades para identificar a própria realidade e o peso de uma ideologia maléfica em essência. No campo visual, o filme acompanha bem a jornada de desconstrução na mente de Jojo, partindo de uma estética propositalmente glamourizada, utilizando uma fotografia de luzes douradas e uma direção de arte que torna os cenários coloridos, vívidos, e chegando a um mundo muito mais cinzento conforme o protagonista passa a sair da bolha de seu lar e vê a realidade batendo à sua porta.
É interessante ver como essa narrativa, que parte de uma sátira extremamente bem-humorada, vai para algo muito mais sombrio, mesmo que as piadas continuem existindo. Taika Waititi as mantém pois elas fazem parte desse mundo que ele criou, mas elas param de perder o efeito e o sentido, já que o público acompanha a mudança de perspectiva de seu personagem. As piadas funcionam apenas enquanto a guerra ocorre longe do universo de “Jojo Rabbit”, apenas quando é algo externo a esse mundo utópico criado pelo governo nazista. Aos poucos, porém, o Hitler imaginário que acompanha o protagonista deixa de ser engraçado e passa a ser visto por nós como o que de fato é e sempre foi: um reflexo da lavagem cerebral feita pelo nazismo.
“Jojo Rabbit” consegue portanto ser um filme que, além de comentar de forma inventiva sobre um fenômeno do passado – vale lembrar que boa parte os alemães sequer sabia o que o governo nazista fazia com os judeus no começo do período hitlerista –, consegue também acenar para os perigos da normatização do extremismo do neofascismo no mundo atual.
Esta crítica é parte da cobertura do B9 no Festival do Rio 2019. Leia mais textos sobre o evento aqui.
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