“Fechamos um ciclo de resistência” diz protagonista de “Lembro Mais dos Corvos” sobre fim da Sessão Vitrine Petrobras
Junto de curta que é o 1° filme dirigido por uma mulher transexual brasileira lançado no circuito, longa será o último da parceria da Petrobrás com a Vitrine Filmes para aumentar divulgação da produção nacional
[ATUALIZAÇÃO: 10h30, 21/02] Matéria atualizada com esclarecimento de que a Sessão Vitrine não acabou oficialmente, mas perdeu o patrocínio da Petrobrás e, portanto, deixou de ser chamada de “Sessão Vitrine Petrobrás”[FIM DA ATUALIZAÇÃO]
Com o fim do patrocínio da Petrobras no cinema nacional, anunciado recentemente pelo presidente Jair Bolsonaro, meios importantes de divulgação cultural foram abalados. A Sessão Vitrine Petrobras, por exemplo, que distribuía novos trabalhos do cinema brasileiro a valores acessíveis de 12 e 6 reais, teve seu fim anunciado na manhã de ontem (19).
O baque do anúncio lamentavelmente chega em um dos momentos mais marcantes da história do projeto, que agora deve voltar a buscar novos patrocinadores para manter-se vivo. O filme “Tea For Two”, curta-metragem da talentosa Julia Katharine exibido antes da projeção do documentário “Lembro Mais dos Corvos” dentro da Sessão Vitrine Petrobrás, será o primeiro filme dirigido por uma mulher transexual brasileira a ser exibido no circuito nacional com sua estreia nesta próxima quinta-feira, dia 21 de fevereiro. As duas produções, porém, também serão as últimas da Sessão após dois anos atuando para ampliar a disseminação do cinema brasileiro entre o público.
É portanto um momento de enormes contrastes. Enquanto obras como “Tea For Two” e “Lembro Mais dos Corvos” (documentário de Gustavo Vinagre que fala justamente sobre Julia Katharine), que trazem membros da comunidade LGBTQ+ como tema ou força criativa, abrem caminho para um importante marco no cenário nacional, os espaços que ocupam parecem estar sendo encurtados pelo corte de verbas da atual administração. Ambos os realizadores, é claro, não receberam tão bem esta notícia.
O B9 teve a oportunidade de conversar com Vinagre e Katharine sobre suas obras e o atual momento do cinema brasileiro, e os dois cineastas demonstraram enorme tristeza e revolta com a atual situação do cinema nacional. As conversas, porém, não se limitaram ao caso do corte de verbas. Vinagre e Katharine falaram sobre suas influências cinematográficas, sobre as ideias que originaram suas obras e principalmente sobre o papel que acreditam ter, como artistas, na formação cultural do Brasil e até mesmo na resistência contra aqueles que não compreendem nem respeitam as minorias.
O cinema que conversa com as pautas sociais
“Meu cinema já era focado em personagens reais, faço filmes que utilizam pessoas como porta de entrada para um universo” afirma Vinagre sobre seu cinema, que deixa claro que vê na arte (e em especial nos filmes) um importante veículo para conectar o povo a realidades distantes do brasileiro de classe média cisgênero, como as minorias LGBTQ+: “Queria muito que as mulheres assistissem a uma mulher trans falando, de dentro de sua casa, por 80 minutos, como se fosse uma conversa. […] Queria tirar a trans de ambientes de rua, de prostituição, cenários nos quais costumam relegar essas minorias, e colocar em um ambiente comum, doméstico”.
Qual o espaço que o cinema feito por artistas como ele e Katharine ocupam na sociedade em um período no qual há uma ascensão de um pensamento ultraconservador? Segundo Vinagre, “O mundo está num momento de luta por direitos de pessoas trans, negras e demais minorias. Esse movimento vai contra o movimento encabeçado por figuras como Bolsonaro. Acho que meu filme tem a intenção de colocar o espectador no lugar de um amigo da personagem. […] O que ele tenta é trazer a convivência trans o mais próximo possível do espectador, para que ele possa se identificar com a Julia. É uma tentativa de criar empatia no espectador”.
É interessante observar, assim, que mesmo que se posicione em lado oposto ao de figuras importantes do cenário político e social atual, Vinagre ainda acredite na força de um cinema baseado não no conflito, mas na compreensão. Afinal, sua obra adota uma postura pacífica e tenta criar um diálogo entre os espectadores que não compreendem a situação de pessoas trans, especialmente em “Lembro Mais dos Corvos” que trafega entre o documentário e a ficção ao filmar uma longa entrevista com Katherine na calada da noite.
Quando perguntada se acredita que obras como a sua e a de Vinagre são parte de um movimento de resistência, Katharine é enfática: “Sendo o último filme da Sessão Vitrine Petrobras, acho que a gente fecha um manifesto de resistência. Há tanta coisa ruim acontecendo na nossa cultura, e eu tenho visto o filme como uma representação de um ato político de resistência. Eu fico bem feliz com isso”.
O cinema de Yasujiro Ozu e a arte como resistência
É comum em “Lembro Mais dos Corvos” Katharine comentar sobre sua cinefilia, sua relação com as locadoras, novelas e até mesmo seus diretores favoritos. Perguntada se pretende usar alguns dos artistas mencionados por ela no documentário como referência em trabalhos futuros, ela se diz surpresa com os paralelos que o público encontra entre seus trabalhos com cineastas que tanto admira: “Quando meu filme passou em Goiânia, ouvi muito que ele parecia com obras de Fassbinder e Almodóvar, mas confesso que não percebi isso quando realizei o “Tea For Two”. Eu busco um cinema mais próximo do de Ozu”.
A influência de Ozu, autor de obras como “Era Uma Vez Em Tóquio”, “Discurso de um Proprietário” e “Uma Galinha no Vento”, é clara no cinema de Katharine. Assim como o artista japonês, a brasileira busca retratar o trivial, o rotineiro, com uma narrativa que não almeja retratar grandes eventos, apenas criar um documento sobre a vida dos personagens retratados.
Quando perguntada sobre o papel da arte no atual cenário brasileiro, Katharine foi enfática: “Eu acho que a arte é a última ferramenta que temos de luta, de resistência. Acho que os que produzem arte no Brasil devem estar unidos, apoiando e divulgando os trabalhos uns dos outros. O governo não tem interesse nessa cultura, então é importante pensarmos em novos modelos de exibição, distribuição e produção.”.
O fim da Sessão Vitrine Petrobrás, claro, é um grande passo para trás na renovação do atual modelo: “Eu acho que a decisão de retirar o patrocínio da Petrobras vai ter um impacto muito forte. Estávamos em um processo de evolução, cada vez mais as pessoas estavam em contato com o cinema nacional. Eu não sei como vai ser daqui pra frente, mas fico muito triste, pois muitos grandes filmes não serão vistos por não haver uma janela para isso” ela encerra.
“Tea For Two” e “Lembro Mais dos Corvos” estreiam no circuito brasileiro no dia 21 de fevereiro, em sessão que projeta ambos os filmes em 27 estados brasileiros. Apesar de ser o primeiro filme dirigido por uma mulher trans a chegar às salas brasileiras, é também o último de uma longa parceria entre a Petrobras e a cultura brasileira.
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