- Cultura 2.jan.2019
“WiFi Ralph” mergulha na internet sem saber muito bem como tratar do assunto
Continuação de “Detona Ralph” amplia o escopo e o imaginário visual do mundo de seus personagens, mas tem dificuldade para tratar do tema além da referência
Conforme o mundo avança e as tecnologias se renovam a passo acelerado, torna-se uma afirmação cada vez mais inegável à sociedade que as novas gerações já nascem introduzidas e acostumadas às onipresentes plataformas digitais dos dispositivos móveis. É um ecossistema vasto, mas o qual nem todos reconhecem em amplitude ou em escala de poder, dado que esta exposição constante a sites desde cedo possibilita uma educação digital do qual pode se facilmente deturpar o processo. O fato, porém, é que esta porta já está aberta há um tempo, restando o desafio aos pais e demais responsáveis de mediar este contato por meios mais liberais (de “soltar a mão” e permitir à criança a navegação como bem queira por todos os recantos da web) ou regulatórios como de tentar restringir certos passos e intermediar esta introdução a seu jeito – uma balança que, convenhamos, não deixa de remontar aos dilemas mais básicos da paternidade.
Posto este dilema, é somente curioso que “WiFi Ralph” de alguma forma acabe sofrendo justo com esta questão. Continuação da animação de 2012 que serviu de ponto de partida simbólico para a atual fase das animações da Disney, o longa de Rich Moore e Phil Johnston resolve tomar uma decisão drástica em relação ao contexto das aventuras de Ralph (John C. Reilly) e Vanellope (Sarah Silverman) ao sair da casa de jogos onde os dois protagonistas vivem para mergulhar de cabeça no frenesi da internet; suas mudanças, porém, não se restringem apenas à renovação de cenário mas mexem com todas as estruturas deixadas por seu antecessor, o que inclui seus temas e mesmo sua posição perante as resoluções anteriores.
Estas medidas renovatórias, no caso, deixam de lado a fábula moderna sobre aceitação e conformismo do próprio eu do primeiro capítulo para tratar do estado de relações na contemporaneidade digital. É uma mudança suave, mas explícita na forma como a amizade dos protagonistas se reconfigura da camaradagem para laços quase fraternais e de dependência, algo que por sua vez se revela o principal ponto de conflito da nova aventura. Enquanto Ralph, enfim contente com a própria identidade, vive feliz a rotina como personagem dos arcades, Vanellope passa por uma ansiedade de sair e desbravar o mundo, uma ambição que há de ser materializada quando o dono do estabelecimento resolve comprar um roteador para acessar a internet e cria o ponto de fuga ideal à corredora de seu dia a dia monótono.
A relação dos protagonistas, no caso, soa mais familiar que de amizade na continuação pela postura com o qual Ralph tenta manter Vanellope dentro do “mundinho” ao qual ambos pertencem. Entre os dois filmes, o único ponto de contato distinto nas histórias a princípio é a relação que se tem com a rotina; se é ela quem leva o vilão a entrar em crise com a própria identidade no original, na sequência é ela quem leva a corredora a cansar da existência infantil e buscar novos cenários. As semelhanças, entretanto, param aí: aos olhos do roteiro de Johnston e Pamela Ribon, a crise de Vanellope é muito mais ligada à dos adolescentes, o que põe Ralph – depois de superada uma crise parecida com uma de meia-idade – na posição nem tão luxuriosa de um parente mais velho.
Entre o original e a sequência, o único ponto de contato distinto nas histórias é a relação que se tem com a rotina
Por este ângulo, “WiFi Ralph” não deixa de ser mais um projeto da Disney que de novo trabalha com a temática da libertação juvenil para o mundo, uma narrativa no qual o filme, imerso na internet e por consequência no tom de auto-consciência perante o universo, não deixa de satirizar em inúmeros momentos enquanto a segue sem questionar – todas as cenas que de alguma forma tocam nas princesas do estúdio, incluindo o momento musical, estão ali para tratar deste aceno. É no retrato da rede mundial de computadores e seus sites, porém, que as verdadeiras fundações da sequência se fazem notar, muito porque elas revelam este conflito interno do longa perante sua posição entre o mundo que quer mostrar e o público infantil ao qual se direciona.
Isto porque o longa no fundo vive uma situação entre a cruz e a espada quando em questões de introdução ao digital. Se o belo e criativo universo criado pela equipe de animação comandada por Moore e Johnston vive das referências e toma hábitos do cotidiano digital e das redes sociais como pressupostos da existência (e neste sentido é divertido atestar como para o estúdio o trabalho dos adultos ainda é visto num mesmo ambiente de escritório dos anos 60 ou 70), o arco da relação de Vanellope e Ralph – que mais pra frente se revela um sobre amizades tóxicas, com direito a um monstro gigantesco formado à partir de cópias de um Ralph imaturo e incapaz de permitir que a amiga viva a vida – se relaciona muito mais com temas modernos como da responsabilidades sobre a própria independência, uma noção que nem sempre se alinha ao jogo tão ingênuo de humor proposto. As narrativas não casam, afinal: se viver na rede é um hábito diário, como podem os protagonistas quererem uma rotina de ida e volta deste meio?
“WiFi Ralph” no fundo vive uma situação entre a cruz e a espada quando em questões de introdução ao digital
Como esta divergência é impossível de ser conciliada pelas origens de tais raciocínios, o filme resolve separar as duas partes, uma medida que explica a sensação de que a certa altura a história pareça se reiniciar em si mesma. Depois de praticar os fundamentos do primeiro ato, a animação literalmente parece estacionar a trama na metade para desenvolver todo um jogo de descobertas com o meio que subexiste na piada, uma ação que se por um lado rende momentos divertidos (as cenas no eBay são as mais engraçadas, mas toda a participação do algoritmo Yesss dublado por Taraji P. Henson rende alguns chistes até sádicos sobre nossos hábitos virtuais) vai também esgotando aos poucos a produção a uma narrativa autorreferencial sem propósito algum – e quando se retorna aos temas iniciais para encerrar a trama, a sensação de arrasto já se anuncia claramente ao espectador.
Estes abalos, de certa forma, se relacionam por sua vez com uma dificuldade maior que mora muito nesta dificuldade implícita da produção em querer se adequar a um cenário contemporâneo sem perder de vista a lição fabular mais tradicional do filme infantil. Se por um lado esta auto-consciência da animação por conta do seu tema maior (a internet) permite que ela faça comentários um pouco mais esclarecidos sobre a relação humana com o meio virtual, sua própria necessidade de atender demandas opostas a seus propósitos acaba por tornar a aventura um tanto insossa em suas ambições. Os problemas de “WiFi Ralph”, quem diria, nascem das ligações mequetrefes que faz entre estruturas vindas do passado e necessidades pungentes do presente.
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