- Cultura 12.ago.2017
“Valerian e a Cidade dos Mil Planetas” combina valores tradicionais e contemporâneos da space opera
Em desenvolvimento há oito anos, passion project de Luc Besson coloca lógica da globalização em ponto de crise
“Valerian e a Cidade dos Mil Planetas” parte de um momento histórico no mínimo estranho, com imagens de arquivo do primeiro encontro das corridas espaciais norte-americana e soviética, feitas em 1975 na primeira missão conjunta entre as nações. A cena é emblemática, com os dois astronautas representantes das antigas superpotências, conscientes do cenário de forte tensão que era a Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética na época, sorrindo um para o outro e se cumprimentando na conexão entre os módulos de suas espaçonaves, quase como se estivessem alheios a tudo que os cercava na época.
Embora seja de maneira indireta, é desse sentimento contraditório provocado por estas filmagens que o diretor Luc Besson busca nutrir essa nova space opera de sua carreira, uma adaptação da longeva série em quadrinhos francesa “Valerian e Laureline”. Desenvolvido ao longo de quase oito anos e sem dúvida um passion project do cineasta (em entrevistas ele declarou ter sido um leitor assíduo da obra de Pierre Christin e Jean-Claude Mézières quando criança), o longa é em seu núcleo um prosseguimento da lógica de sua introdução, que depois de mostrar História fantasia com as possibilidades previstas em seu gênero. Depois dos russos, os americanos passam a receber com a mesma harmonia todos os programas espaciais que buscam contato, incluindo de outras nações e até de outros planetas, até o conjunto de naves conectadas ser tão grande que a instalação é obrigada a sair da órbita da Terra e procurar seu próprio espaço, como um verdadeiro novo planeta a buscar um sistema para chamar de seu.
Que a metáfora da globalização não demore a vir à mente neste início não é lá uma grande surpresa – com tantos oficiais de diferentes espécies em cena, o longa acaba por se assemelhar em temática (mesmo que sem intenção) a “Star Trek” -, mas a forma pela qual o diretor e roteirista francês toca esse tema torna a proposta da produção intrigante. Pois se a princípio o filme passa uma mensagem de paz e união, ele logo em seguida já põe essa harmonia crise, registrando o desmantelamento de uma raça alienígena tribal pacífica pelo impacto da queda de uma gigantesca espaçonave em seu planeta natal. Dos apertos de mão oficiais representando paz ao desespero de criaturas em CGI em sobreviver ao seu apocalipse, da beleza simbólica ao horror imediato: é esta relação de contraste que “Valerian” põe como norte a guiar sua narrativa.
Daí em diante, o filme segue por um rota mais ou menos conhecida, filiando-se a convenções do gênero em um formato que mistura o tradicional com abordagens recentes da space opera. Valerian (Dane DeHaan) e Laureline (Cara Delevingne), os dois militares protagonistas da aventura, não seguem o perfil característico de personagens típicos dessas obras – os dois atores, muito bem entrosados entre si, não possuem o ideal físico exigido em produções do passado e carregam certo sarcasmo nas interações com o que está à sua volta – mas conduzem a história a partir de arcos e dinâmicas já muito consumadas no cinema ao qual se vincula, seja na pose de machão sedutor do mocinho, no esforço da heroína em lidar com diminuições feitas na hierarquia à qual orbita ou na relação de quase-sexualidade não bem resolvida entre os dois. Os mundos e criaturas à sua volta, enquanto isso, trazem esta alternância entre o velho e o novo traduzidos na extravagância dos cenários, cujo uso de cores berrantes não deixa de servir de esforço de renovação simples a designs de ambientes e figuras muito familiares ao espectador.
Os mundos e criaturas trazem alternância entre o velho e o novo traduzidos na extravagância dos cenários, com um esforço de renovação a figuras muito familiares ao espectador
Até aqui, “Valerian” pode soar como se aproximasse perigosamente dos resultados obtidos por “Ghost in the Shell” e “Tron – O Legado”, obras baseadas em produções influentes que sugeriam mais uma atualização do material original que uma necessária perseguição de novos valores em cima deste. Besson, porém, nunca chega a flertar com essa armadilha pois seu esforço em colocar em ponto de crise as bases da sociedade concebida por Christin e Mézières o afastam dessa possibilidade.
Pautando a narrativa na ação e na química entre DeHaan e Delevingne, o diretor alterna a história entre estes sets de execução complexa – feitos quase de desafio autoimposto pelo cineasta, a exemplo da intrincada sequência no mercado – com tramas que buscam trazer à tona uma problematização maior da metáfora central de globalização – a exemplo da personagem polimorfa interpretada por Rihanna, cujo breve arco no roteiro talvez seja a melhor síntese de todo o sentimento conflitante do longa com sua temática.
“Valerian” demostra muitas vezes ser movido apenas pela urgência da ação, uma medida que acaba pagando o preço no terceiro ato do filme
Dessa abordagem o filme tira bons momentos (especialmente da ação, um terreno conhecido e recorrente na carreira de Besson, este por sua vez um cineasta consagrado pela agilidade plástica de seus trabalhos), mas aos poucos ela também se mostra um tanto quanto danosa à estrutura da produção. Realizado como uma verdadeira confluência de arcos distintos da série em quadrinhos – o longa parece acontecer em blocos de histórias e não em uma narrativa fluída -, “Valerian” demostra muitas vezes ser movido apenas pela urgência da ação, uma medida que acaba pagando o preço no terceiro ato quando o filme sem razão aparente busca substituir este motor pelo do debate entre os personagens, resumindo todas as intenções do roteiro em falas verborrágicas e diálogos dolorosamente expositivos. A medida torna ainda mais aparente o inchaço da obra, cujo excesso de histórias e a longa duração de duas horas e vinte minutos ajudam a tornar a experiência um tanto quanto exaustiva.
O curioso, porém, é que essas fraquezas de “Valerian” soam como se fizessem parte das intenções de Besson com o material, com o cineasta na tela assumindo esse viés de projeto de estimação da obra com toda a intensidade. Que o filme aos poucos deixe afluir o relacionamento de Valerian e Laureline como conduíte maior da trama e opte por se encerrar com o casal protagonista isolado no espaço consumando seu amor ao invés de seguir com um fechamento próprio de sua temática principal são apenas alguns dos indícios desses erros “honestos” que a produção está disposto a cometer sem qualquer razão maior além de emocional – o que não diminui os problemas, mas talvez os ajude a suavizá-los.
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