Música e ação de tirar o fôlego são destaques de “Em Ritmo de Fuga”

⚠️ AVISO: Contém spoilers menores

“Em Ritmo de Fuga” representa uma nova fase na carreira de Edgar Wright. É seu primeiro roteiro escrito sem os habituais colaboradores, Simon Pegg e Joe Cornish, e também seu primeiro longa de grande porte passado nos Estados Unidos, o que soa relevante quando se fala do responsável por “Todo Mundo Quase Morto”, “Chumbo Grosso” e “Heróis de Ressaca”, comédias essencialmente britânicas. Mais centrado na ação e menos preso aos diálogos do que seus antecessores, o filme que chega aos cinemas com elenco de renome mundial parece conscientemente pretender uma fatia maior do público.

Diferente do que as aparências sugerem, porém, esse não é apenas um passo natural para um jovem cineasta em busca de outros mercados. Como Wright declarou em entrevistas, a vontade de comandar uma trama sobre assaltos a bancos surgiu há mais de 20 anos — quando, ainda mais jovem, sequer sonhava em realizar o trio de filmes citado acima ou “Scott Pilgrim Contra o Mundo”, que deram a ele projeção e uma série de admiradores fervorosos de seu estilo.

Diversas razões fizeram com que a ideia levasse algum tempo até se concretizar, mas a história de sua origem já traz alguns elementos interessantes para a discussão. Se na celebrada trilogia a diversão surgia do cruzamento entre gêneros (comédia romântica e zumbis, comédia e policial, comédia e ficção científica) e na adaptação dos quadrinhos canadenses, do visual de videogame e das referências à cultura pop, aqui o ponto de partida foi “Bellbottoms”, do Jon Spencer Blues Explosion, que o diretor imaginava como acompanhamento perfeito para uma perseguição em alta velocidade. “Baby Driver” ganhou vida a partir da relação instintiva com o que aquele ritmo provocava e, hoje, a música embala a impressionante sequência de abertura do longa.

Objeto de estudo de dezenas de artigos e análises em vídeo, a assinatura de Edgar Wright sempre teve um forte componente musical: exemplos são o ataque coletivo contra um zumbi em seu longa de estreia, coreografado com base em “Don’t Stop Me Now”, do Queen, e a luta de Scott Pilgrim contra o primeiro ex-namorado de Ramona, que se desenrola como uma verdadeira batalha de dança. O que antes ficava restrito a trechos curtos, com o intuito específico de produzir humor, agora tem pretensões mais amplas.

A assinatura de Edgar Wright sempre teve um forte componente musical

A decisão de acompanhar cada cena com um item dessa playlist não é uma afetação do diretor. Na trama, Baby (Ansel Elgort) sofre de um problema de audição e, para minimizar o ruído nos ouvidos, permanece conectado ao seu iPod o tempo todo. Ele é o motorista de fuga de um bando de criminosos liderado por Doc (Kevin Spacey) e seleciona cuidadosamente as faixas para cada missão. Uma vez dada a partida, ele dirige por música.

O diretor sabe encontrar o melhor de cada música, prolongando ou reduzindo sua permanência de modo a preservar sua intensidade

Wright toma essa característica e faz com que ela paute tanto as sequências de ação, como originalmente havia planejado, quanto os momentos de maior intimidade entre o garoto e sua nova namorada, Debora (Lily James). Assim, não se trata apenas de ver o mundo pelos olhos do protagonista, mas de ouvi-lo pelos seus ouvidos.

Na prática, essa proposta de se colocar na perspectiva do rapaz significa que até o deslocamento e o gestual dos demais atores em cena — assim como o percurso dos carros durante as escapadas pelas ruas de Atlanta — têm sincronia com a trilha, encarregada de ditar o ritmo. O diretor sabe encontrar o melhor de cada faixa, prolongando ou reduzindo sua permanência de modo a preservar sua intensidade e assegurar que cada uma delas tenha personalidade própria, não soe gratuita.

Para impedir que o recurso se torne cansativo, como uma sucessão de videoclipes sem maior coesão e continuidade, ele se vale de suas habituais transições rápidas, que tornam tudo mais dinâmico, e coreografa a ação de tal forma que produz um senso de progressão constante na trama — o uso de efeitos práticos, em oposição aos digitais, também dá maior energia às manobras de carro.

Wright, preocupado em manter o ritmo acelerado, não deixa de lado os elementos mais tradicionais dos filmes de assalto a banco

Até quando as coisas se aquietam, já no segundo ato, o diretor de fotografia Bill Pope (parceiro de Wright em seus dois últimos filmes) encontra maneiras de inserir movimento nos planos mais simples. O exemplo mais claro é o momento em que o casal de protagonistas divide os fones de ouvido na lavanderia: um está sempre rodeando o outro enquanto a câmera passeia ao redor de ambos, como se todos fossem parte de uma mesma dança; em seguida, vemos uma dúzia de máquinas de lavar em funcionamento ao mesmo tempo, com movimentos circulares ritmados; e, finalmente, outro corte traz a imagem de um disco de vinil e nos lança para o próximo capítulo nas vidas dos dois.

Esse tipo de dinâmica se repete diversas vezes, dando a entender que as relações entre os personagens se alteram no embalo da trilha. Nada disso quer dizer que Wright, preocupado em manter o ritmo acelerado, deixa de lado os elementos mais tradicionais dos filmes de assalto a banco. O roteiro se dedica a acompanhar as reuniões dos bandidos, incluindo Darling (Eiza González), Buddy (Jon Hamm) e Bats (Jamie Foxx), e, assim, consegue alimentar também outros lados da personalidade de Baby.

Mais do que a premissa do “jovem introspectivo com deficiência auditiva que dirige ouvindo música” sugere, o protagonista se comporta de diferentes maneiras ao redor do filme. Se a ideia de fugir estrada afora com a namorada é uma constante, todo o resto se transforma — na verdade, até nesse sentido ele passa de alguém desconfortável ao lado dela, no início, para uma figura extremamente protetora, com o decorrer da trama. Algo semelhante pode ser dito sobre sua postura no trabalho: ele é extremamente focado durante a preparação das missões, sempre pronto para seguir ordens, mas se diverte dançando e dublando as faixas que escuta quando está sozinho no carro e se revela capaz de tomar decisões por vontade própria quando as circunstâncias exigem.

Edgar Wright ainda procura o melhor tom para sua voz — mas o que ele tem dizer agora já parece empolgante o suficiente

Parte dessas mudanças são acompanhadas por respostas na mesma medida dos parceiros-transformados-em-vilões. Eles são figuras instáveis que carregam os momentos mais divertidos (Bats e o tiroteio ao som de “Tequila!”, do Button Down Brass) e tensos (o surto final de Buddy, motivado pelo amor incontrolável por Darling) do filme. Spacey cumpre seu papel como ameaça silenciosa, função a que parece ter se acostumado recentemente, mas a virada do personagem no terceiro ato não convence plenamente.

É também no desfecho que “Em Ritmo de Fuga” enfrenta problemas para amarrar as pontas. Justamente em seu trecho mais agudo, o filme perde um pouco do ritmo e passa a construir a ação de maneira convencional. Não há nada no segmento final tão interessante visualmente quanto a perseguição a pé na virada do ato anterior, por exemplo. Na sequência dentro do estacionamento, a música deixa momentaneamente de ser parte integral dos acontecimentos em tela e dá lugar a soluções que parecem deslocadas, fora de lugar.

Nada disso compromete o resultado, porém. Embora o terço final do filme seja sua obra mais simples, certas decisões do diretor (como usar “Brighton Rock”, do Queen) servem para preservar a sensação de espontaneidade mesmo quando tudo é, na realidade, exaustivamente coreografado. Com excelentes créditos no passado e uma longa carreira pela frente, Edgar Wright ainda procura o melhor tom para sua voz — mas o que ele tem dizer agora já parece empolgante o suficiente.